A cobertura da mídia sobre a morte do ator americano Robin Williams, em 2014, por suicídio, é associada ao aumento de 10% nos casos de autoextermínio nos Estados Unidos, durante cinco meses avaliados, conforme estudo da revista científica British Medical Journal. A mídia, à época, não seguiu orientações que poderiam evitar o acréscimo, como o excesso de atualizações sobre o tópico e o fornecimento de dados que geraram a identificação dos leitores com a situação do ator de “Uma Noite no Museu” e “Sociedade dos Poetas Mortos”.
O estudo é um dos artigos citados pelo psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina Alexander Moreira de Almeida para fundamentar críticas a determinadas formas de abordagem sobre suicídio, adotadas pela mídia, seja em notícias ou ficção. Entre os pontos, cita estudos que associa o aumento do número de autoexecução quando há ênfase pela mídia nos métodos empregados pela pessoa para se matar e quando há glamourização do autoextermínio ao ser retratado, entre outros aspectos, como um ato de coragem ou de solução para os problemas. A explicação, restrita a uma única causa, sobre a retirada da vida também prejudica a compreensão da complexidade do tema, pois o autoextermínio é influenciado por diversos motivos e pode ser evitado.
O psiquiatra orienta outras formas de abordagem e o enfoque em fatores de proteção e de prevenção ao suicídio, tais como o ensino de habilidades socioemocionais, que permitam capacitar a resolver problemas e a fomentar a resiliência, especialmente em adolescentes. “O melhor modo de prevenir é tornar as pessoas mais capazes de lidar com os desafios normais da vida. Muitas vezes isso é esquecido”, destaca. A divulgação de relatos de superação de momentos de sofrimento psíquico está também entre esses métodos de fortalecimento. Em tempos de redes sociais, as recomendações também podem ser adaptadas a essas plataformas. Saiba mais na entrevista, abaixo, com o pesquisador, que é coordenador do Programa de Transtornos Ansiosos do Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário (HU/UFJF-Ebserh) e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes/UFJF):
Portal da UFJF: Gostaria que abordasse as quatro medidas mais efetivas para combater o suicídio conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Alexander Moreira de Almeida: A OMS trouxe uma diretriz sobre medidas eficazes para a prevenção de suicídio. Isso é muito importante porque as pessoas, na boa intenção, fazem coisas que podem ser, na realidade, ineficazes ou, pior, podem ser prejudiciais, como, por exemplo, quando se fica enfatizando demais números de suicídio: “Está aumentando cada vez mais”, “Há uma epidemia de suicídio”. Queremos advertir que, na realidade, os estudos mostram que isso aumenta o risco de suicídio. Então, o que existe de eficaz? Primeiro, limitar acesso a meios letais, desde armas de fogo, venenos, qualquer coisa que possa ser utilizado para o suicídio. Segundo, a cobertura responsável da mídia, ou seja, fazer uma abordagem adequada [esse ponto é detalhado ao longo da entrevista]. Outro muito importante: fomentar as habilidades socioemocionais e de resolução de problemas. Não devo enfatizar apenas os fatores de risco, os problemas que todos enfrentamos. Se enfatizo isso, posso piorar a situação. A ênfase tem que ser em desenvolver a nossa resiliência, a nossa capacidade de enfrentar problemas. Então, o melhor modo de prevenir é tornar as pessoas mais capazes de lidar com os desafios normais da vida. Muitas vezes isso é esquecido. Por último, identificar, tratar e acompanhar as pessoas com comportamentos suicidas, isto é, com pensamento de suicídio ou tentativa. Elas têm que ser identificadas e tratadas por profissionais adequados. Um risco agudo de suicídio é uma emergência médica, precisa ser avaliado adequadamente e ter todo o acompanhamento. Também há demonstrações de eficiência, por exemplo, quando alguém que tentou suicídio e foi para um pronto-socorro, é realizado um seguimento dessa pessoa sobre o tratamento – ou seja, aonde ela foi, como tem se tratado, um acompanhamento. Isso é capaz de reduzir a taxa de reincidência.
“A ênfase tem que ser em desenvolver a nossa resiliência, a nossa capacidade de enfrentar problemas.” Professor e psiquiatra Alexandre Moreira
Focando na cobertura da mídia, quais são os erros mais frequentes? E por que eles são danosos? Havia uma ideia equivocada, no passado, de que não se podia falar nada sobre o assunto. E aí houve um outro extremo, quando se fala de modo irresponsável. Há evidências de que a cobertura inadequada da mídia aumenta o risco de suicídio na população como um todo. Para termos uma ideia, o seriado “Treze Razões Por Que” (“Thirteen Reasons Why”) fez várias coisas que não deveria, como oferecer razões que justifiquem o suicídio e abordar os meios usados pela pessoa. Quanto mais o público se identifica com quem morreu, maior o risco de contágio. Pesquisa publicada na Jama Psychiatry mostrou que, nos três primeiros meses após o início da série, houve 94 mortes a mais por suicídio, nos Estados Unidos, do que seria esperado. O que não se deve fazer em termos de cobertura? Evitar publicar manchetes sobre suicídio. Evitar destacar números: “cada vez maior” etc. Evitar abordar como algo monocausal, do tipo: “a pessoa perdeu o emprego e se matou”, “foi estuprada e se matou”. Por que isso é falso? Porque a maioria que perdeu emprego, foi estuprada ou teve outro sofrimento não se matou. Há outros fatores além daquilo. Também não normalizar o suicídio como uma solução: “Ah, é impossível lidar com esse mundo, é muito normal pensar em morrer”. Alguns vão romantizar o comportamento: “A pessoa tem a coragem de se matar, de dizer não a esse mundo opressor”. Esse é um caso clássico do Efeito Werther. Werther é um personagem de um livro de Goethe, que é um escritor alemão famoso, com aquela visão romântica do século XIX. Werther teve uma desventura amorosa e, por amor, se mata. Houve uma epidemia de suicídio, na Europa, a partir do caso desse livro. As pessoas se matavam da mesma forma, segurando o livro, usando a roupa do personagem… Percebeu-se a importância dessa abordagem. Outro exemplo clássico envolve o metrô de Viena (Áustria). As pessoas estavam se jogando na linha do trem. A mídia cobria isso o tempo todo, e os casos foram se multiplicando, cada vez mais, até que houve um acordo da mídia para não fazer mais divulgação desses casos.
Quando se noticia, não se deve falar que é suicídio? Como não voltar a ser um tabu?
Qual é a utilidade de ficar mostrando que as pessoas estão se jogando no metrô de Viena? Nenhuma. Essa já é a primeira questão. O que deve ser feito? Basicamente, quando há o caso de se noticiar, é evitar que o termo “suicídio” apareça nas manchetes, não descrever o método usado, não ficar dando muitos detalhes sobre as razões e não ficar ofertando atualizações da notícia o tempo todo. E sem glamourização, enquadrando como um ato de coragem. O que tenho que fazer basicamente? Há o Efeito Papageno, que é o inverso do Efeito Werther. Papageno é um personagem da [ópera] “Flauta Mágica”, de Mozart, em que a pessoa também passava por uma dificuldade, pensava em suicídio e se recupera. Então, claro, vale dar notícias sobre os problemas que o suicídio podem acarretar na saúde pública. Mas o mais importante: a maioria que passa por dificuldades não pensa em suicídio, e a maioria daquelas que pensa não tenta. E a maioria das que tenta não acaba morrendo. Ou seja, encontra formas mais saudáveis de lidar com o problema. Isso é o fundamental. O mais eficaz, portanto, é dar exemplos de pessoas que superaram as dificuldades de modo saudável e divulgar as estratégias eficazes de enfrentamento. A pessoa, por exemplo, buscou tratamento, apoio na família, no grupo social, na sua religiosidade, em sentido existencial, ou seja, vários aspectos positivos utilizados por ela para poder resolver, superar, o problema. E, por fim, a mídia deve divulgar onde buscar ajuda, os locais de tratamento. Deve-se oferecer uma modelagem positiva e não negativa. Quando se relata o caso de uma pessoa que teve um problema, ficou mal e se matou, pode-se estar modelando uma estratégia negativa de solução do problema. Por outro lado, quando se apresenta o que a maioria das pessoas faz, que é conseguir superar, pode-se induzir comportamentos positivos. E mais: ressignificar os problemas, mostrar que faz parte ter problemas, que todos nós vamos enfrentá-los. A própria definição de saúde mental pela OMS é a capacidade de lidar com o estresse normal da vida, de ter uma vida produtiva, de contribuição para o mundo. Saber que faz parte da vida ter problemas, que eles são esperados e que somos capacitados a lidar com eles. Perceber que tenho os recursos para lidar e que preciso aprimorá-los. Isso é o mais importante. Quando há uma ênfase nos fatores de risco, como ter pais com depressão, alguém da família que faleceu de suicídio ou estar desempregado, a pessoa pode pensar: “Tenho tudo isso! Então vou morrer?” Provavelmente não, porque ela tem ou pode desenvolver vários outros fatores que a protegem. Em resumo, é preciso melhorar os fatores de risco, diminuindo-os, mas, principalmente, fomentar os fatores de proteção. Essa é a ideia fundamental.
Noticiar suicídio na mídia, por um lado, pode ser importante para que haja movimento de políticas públicas para a área.
Sem dúvida, é preciso dizer que o suicídio é um problema de saúde pública. Mas há uma diferença no grau de alarmismo gerado, quando se fala que é uma epidemia, que o mundo moderno está levando a isso. É falso. Relatório da OMS mostrou que, no mundo, a taxa de suicídio caiu 36% entre 2000 e 2019. Está havendo um aumento apenas nas Américas, de 17%. E, no Brasil, especialmente entre adultos jovens e adolescentes. Ou seja, talvez eles estejam menos capacitados para lidarem com os desafios da vida. O que a gente pode fazer para fortalecer os adolescentes? O que está frequentemente acontecendo hoje, na educação dos nossos filhos e alunos, é que nós estamos os protegendo, às vezes, demais, e não os capacitando para enfrentar os desafios inevitáveis da vida. Se os protegemos demais, quando eles forem enfrentar os desafios reais da vida, eles não estarão preparados.
“Temos uma capacidade de enfrentamento muito maior do que imaginamos. Como ela se desenvolve? Enfrentando as situações gradualmente, tendo apoio, divulgando modelos de enfrentamento positivo.”
O que poderia ser feito especificamente para fortalecê-los?
Felizmente, há várias coisas, uma delas é serem expostos a situações desafiadoras, progressivamente e com apoio. Quando somos expostos a uma situação desafiadora e recebemos algum apoio, aprendemos a lidar. Quando se aprende, desenvolve-se mais resiliência e é possível lidar em um nível mais difícil. Ou seja, expor-se gradualmente a desafios. Se algo gera ansiedade, então vamos remover o estressor? Não necessariamente. É fundamental aprender a lidar com ansiedade, com situações desafiadoras. Se a criança ou o adolescente não está conseguindo fazer algo, em vez de assumirmos e fazermos por ela, devemos apoiá-la para que ela mesma o faça. Algo que todos nós aprendemos, ao longo da nossa vida, é que, muitas vezes, achamos que não teríamos capacidade de lidar com um problema, mas, depois, olhamos para trás e vemos que fomos capazes. Temos uma capacidade de enfrentamento muito maior do que imaginamos. Como ela se desenvolve? Enfrentando as situações gradualmente, tendo apoio, divulgando modelos de enfrentamento positivo. Outro ponto importante é fomentar as habilidades sociais. Hoje em dia, sabemos que os jovens estão com muitos problemas nessa área. Ficam muito fechados dentro de casa, no quarto, no computador, no celular e, muitas vezes, os pais permitem isso. A adolescência é o período quando devem desenvolver habilidades sociais e só as desenvolvem ao praticá-las efetivamente, em momentos de convívio em casa e fora dela, e assim ampliar a rede social de apoio desse adolescente. Outro ponto é o uso saudável de redes sociais, as quais não são um problema em si. Ele surge quando a pessoa fica em excesso e vendo coisas que não são muito boas. É preciso regular a quantidade e a qualidade do que está sendo visto, o que é uma diretriz de prevenção de suicídio em adolescentes pela própria OMS. Por fim, também é importante conhecer sobre saúde mental, identificar e fomentar os fatores que ajudam a pessoa a ficar melhor, como atividade física, convívio social, envolvimento religioso-espiritual, hobby, lazer. Saber sobre saúde mental é ainda identificar quando estou precisando de ajuda. Se estou constantemente triste, desanimado, ansioso, preocupado com comportamentos que não consigo ter controle, como drogas, pornografia, internet, seja o que for. Se isso está se mantendo por semanas ou meses e estou tendo dificuldade de lidar com isso, então devo necessariamente buscar um profissional, um psicólogo, um médico, para fazer avaliação, tratamento. Na depressão, a pessoa se vê com menos capacidade de lidar com problemas, devido à baixa autoestima, e ainda enxerga o problema com uma lente de aumento. Então o percebe como muito grande e sua capacidade de enfrentamento como diminuída. É importante saber que essa distorção na percepção ocorre na depressão. Com tratamento, há melhora.
Há algumas críticas sobre ter o foco da resolução no indivíduo, de ele ter capacidade de lidar com problemas, sendo que, às vezes, há um entorno social que traz dificuldades. Você também percebe isso?
Isso é importante, o problema é olhar só um lado. É claro que causas sociais importam e precisam ser trabalhadas. Não há dúvida nenhuma. A questão é que só as causas sociais não explicam os problemas. Por exemplo, houve uma diminuição da desigualdade social no Brasil, nos últimos 20 anos, mas um acréscimo da violência e da taxa de suicídio. Assim, fica claro que não é só essa questão social que tem que ser trabalhada. Enquanto indivíduo, não posso ficar esperando a sociedade mudar pra eu poder mudar a minha posição, no que está ao meu alcance mais direto, no que posso fazer para lidar com a situação adversa. As duas coisas se complementam: não posso ficar só esperando a mudança social acontecer e não trabalhar o indivíduo. Até porque a sociedade influencia mas não determina o indivíduo. A reação frente a uma situação depende fundamentalmente dele. O psiquiatra Vitor Frankl, por exemplo, que esteve em campo de concentração nazista, mostra que é errado dizer que, em uma situação extrema, tal como o campo, todo mundo se comporta igualmente. Isso é falso, é um desrespeito com quem o vivenciou. Ele fala que, “ao contrário de todo mundo virar bicho, tanto os porcos quanto os santos se revelam”, porque cada um reage de forma diferente à mesma situação, por mais abominável que seja um campo de concentração nazista. É claro que tem que acabar com o campo, mas mesmo lá, cada um reage diferentemente de acordo com a visão de mundo e de si mesmo.
Saiba mais
Vídeo com a aula do professor Alexander Moreira no Curso de Preparação para a Campanha Setembro Amarelo da Associação Brasileira de Psiquiatria, sobre o tema “O que se deve ou não dizer sobre suicídio na mídia e nas campanhas de prevenção?”
Conferência do professor Alexander Moreira na UFV sobre como conciliar vida acadêmica e saúde mental (a partir de 26mi30)
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