Sem motivos para celebrar, movimento indígena questiona a data e prefere tratar como “Abril Indígena” (Arte: Natã Miguel Lima)

Comemorado em 19 de abril, o Dia do Indígena marca no Brasil a luta antiga pela sobrevivência de milhares de indígenas, que, desde a colonização, vem perdendo direitos básicos e terras. Entre os dias 4 e 14 de abril deste ano, mais de sete mil indígenas se reuniram no acampamento Terra Livre, em Brasília, com o objetivo de pressionar o governo contra projetos que violam os direitos dos povos originários, como o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que regulamenta a exploração de recursos em reservas. Esse foi o maior número de participantes em 18 anos de história de luta e reflete a situação limite vivida pelos indígenas no atual cenário político do país.

A supressão de direitos e demais pautas devem nortear o debate público em todas as esferas sociais e, sem dúvidas, ocupar papel de destaque dentro das universidades. Ao longo dos anos, a perspectiva acadêmica e científica vem sendo acrescida pelos saberes tradicionais de forma compartilhada e por meio da representatividade com o ingresso de indígenas nas salas de aula e à frente delas.  

Reinaldo Duque acredita que a descolonização do pensamento acadêmico só é possível por meio do diálogo com os saberes tradicionais e outras formas de conhecimento (Foto: Sebastião Junior)

O professor do Departamento de Ciências Básicas da Vida (DCBV) do campus da UFJF em Governador Valadares, Reinaldo Duque, ressalta que não se trata de fazer pesquisas com os indígenas ou realizar ações assistencialistas, mas de promover a extensão numa concepção dialógica e participativa. “A ideia é pensar e elaborar juntos com o povo da aldeia Krenak, a partir de suas próprias demandas, que possam ter sua história contada por eles mesmos.” O campus GV já nasceu em meio a uma região marcada pela presença indígena na Bacia do Rio Doce e vem, por meio de diversos projetos, confirmando a importância dos saberes tradicionais para a academia.

Duque está ligado a dois projetos de destaque em GV: o eixo “Povos e Comunidades Tradicionais” do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e o “Pluriversidade dos Povos e Comunidades Tradicionais do Watu”, por meio do Núcleo de Agroecologia (Nagô), do qual é coordenador. O nome do projeto honra a entidade sagrada Watu, que representa o Rio Doce para os Krenak. 

Sobre o Núcleo de Agroecologia, o docente expressa que o objetivo é “criar espaços de experimentação pedagógica, interculturais e inter epistêmicos, ao organizar cursos de extensão ministrados por mestres indígenas, quilombolas e camponeses”. Outra iniciativa, dentro do Nagô e do CRDH, é a prestação de serviço especializado em assessoria técnica, jurídica e de comunicação por meio do projeto Aminharmrá: Comunicação Intercultural e Assessoria às Organizações Indígenas Krenak, coordenado pelo professor João Vitor Moreira. 

“Se destruir o meio ambiente, se matar os rios sagrados, todos nós vamos esta ameaçados de uma grande extinção”, assegura Shirley Krenak (Foto: Arquivo pessoal)

O contato com os povos tradicionais por meio do professor Reinaldo Duque vem se intensificando no campus e extrapola as temáticas específicas dos projetos, proporcionando uma possibilidade de formação para alunos, profissionais de educação e outros interessados no tema. O curso de História e Cultura Indígena, em parceria com o Instituto Shirley Krenak, é um dos exemplos nesse sentido. Liderança feminina e ativista global, Shirley criou o instituto para fomentar a educação indígena nas escolas e entidades não indígenas e vê na aproximação com a Universidade uma forma de reforçar a luta dos povos indígenas nos ambientes educacionais, desenvolvendo ações positivas voltadas para a proteção das terras.

“Nós residimos às margens do rio que hoje não é mais doce, entre Conselheiro Pena e Resplendor”, informa sobre a localização de seu povo. Conhecidos como botocudos do Vale do Rio Doce, a ativista indígena considera o termo pejorativo e prefere que os Krenak sejam lembrados como borum, que significa a essência do ser humano. Somente durante a pandemia, em 2020 e 2021, o curso convidou 16 lideranças indígenas de dez etnias diferentes do país e de quatro regiões brasileiras: Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste para a realização de lives. 

“Reconhecer os saberes dos povos tradicionais é reconhecer que nós somos os guardiões do universo sagrado; é reconhecer os direitos dos povos indígenas e o quanto somos importantes para manter vivo todo esse ecossistema para potencializar todos os outros biomas para que não haja a extinção da humanidade”, reflete a líder. 

Mas as ações desenvolvidas não estão relacionadas apenas aos Krenak, e Maria Eliana Vieira conta como é importante o reconhecimento étnico dos Pataxós da aldeia Nova Coroa Pataxó, na Bahia, por meio dos projetos. Segundo ela, a Universidade tem ajudado nesse processo, sobretudo junto às benzedeiras, parteiras e mulheres com ancestrais puri na região. 

Eliana Pataxó é representante da Associação de Terapeutas Voluntários das Culturas Tradicionais (Foto: Arquivo pessoal)

“A autoidentidade é uma potencialidade das circularidades dos projetos da Roda de Terapias Tradicionais e Saberes da Terra; cada vez que realizamos um encontro, nós percebemos que as pessoas começam a se identificar com os seus próprios ancestrais”, frisa. No momento, ela está na cidade de Ubaporanga, Minas Gerais, inaugurando a Oca Tokmã Kahap, um projeto de valorização da cultura indigena, após ter sido descoberta na região uma urna funerária indígena de mais de 400 anos.

Valor antropológico

Outra frente de atuação da UFJF é a parceria com os Apyãwa – conhecidos pelo etnônimo Tapirapé –, que começou em 2019, com a criação de uma equipe de Arquitetura e Antropologia, a partir do convite feito por lideranças da Terra Indígena Urubu Branco, de Mato Grosso, à professora Letícia Zambrano, da Faculdade de Arquitetura, que coordena o projeto de extensão, em colaboração com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, voltado ao estudo preliminar para a construção de um museu na aldeia principal da terra indígena. O desenho e a estrutura do museu são inspirados na máscara apyãwa conhecida como Cara Grande (Tawã) e no diadema usado pelos pajés.

Integrante da iniciativa, a professora Elizabeth Pissolato diz que há um interesse e envolvimento crescente de estudantes da Universidade nas formas sociais, práticas de vida e filosofias indígenas. “Nossos estudantes têm reconhecido, como acontece também em nível global, o papel crucial que os modos de vida e o pensamento indígena vem assumindo, especialmente para a garantia das florestas e das condições de habitabilidade na terra, não só nas terras indígenas, mas em todo o planeta.” Ela reitera que já foram defendidas teses e dissertações com foco nas práticas, história e cosmologia de povos como os Xakriabá, os Huni kuin, os Karitiana, os Guarani Mbya, os Maxakali.

Elizabeth Pissolato, durante visita de campo à aldeia apyãwa de Tapi’itawa, no Mato Grosso, em março de 2020 (Foto: Letícia Zambrano)

Vale destacar também o projeto de pesquisa com o Movimento das Mulheres Indígenas no Brasil, que reúne pesquisadores da pós-graduação, estudantes da graduação e da iniciação científica da UFJF, e também pesquisadoras e sábias indígenas. “O projeto visa acompanhar a organização das Mulheres Indígenas na elaboração de suas formas políticas, que nunca se descolam das experiências destas mulheres nas aldeias em que vivem”, destaca Elizabeth. 

A antropóloga lembra os ataques recentes, sob o atual governo, que atingem tanto as populações indígenas, desrespeitadas em suas escolhas e direito de autodeterminação, quanto os biomas, como a Amazônia, que vem sofrendo acelerado desmatamento, poluição pela mineração, e muitas outras ameaças com os projetos de leis em discussão. Em sua opinião, ainda é preciso avançar em uma política institucional capaz de atrair estudantes indígenas para a nossa universidade, que tem mostrado ser uma experiência muito rica em outras instituições do país. 

Interlocução de saberes

Para a professora do curso de Ciência da Religião do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF, Maria Cecília Simões, é preciso não somente incentivar a entrada de estudantes indígenas na universidade, mas garantir a sua permanência e reconhecer os saberes tradicionais como objetos de pesquisa.

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Maria Cecília destaca, ainda, a atuação de projetos do campus Governador Valadares (GV) junto aos povos daquela região para que a academia repense sua relação com os indígenas. “É fundamental que a universidade fale com e não somente sobre os indígenas, buscando espaços de diálogo, aprendendo com esses povos e se colocando ao lado deles na luta. Valorizar o indígena é interpelar nossos olhares com novas cosmovisões e cosmopolíticas. E, enquanto universidade, não podemos ter a falsa ideia de que, acolhendo e reconhecendo esses estudantes, estaremos atuando como ‘salvadores’. Tudo indica – o aquecimento global, as tragédias climáticas e ambientais, crise e esgotamento de recursos naturais – que somos nós, com nosso meio de vida predatório, que precisamos ser salvos”, afirma. 

Exposição na Reitoria

A Galeria do Espaço Reitoria do campus de Juiz de Fora recebe a exposição “Todo dia e̵r̵a̵  é dia de ̵í̵n̵d̵i̵o̵ indígena”, que conta com trabalhos de 19 artistas. Resultado de um edital da  Pró-Reitoria de Cultura (Procult), a mostra é como um tributo às vozes que se levantam, em todo o país, em prol da resistência de uma cultura que precisa ser preservada. A visita pode ser feita de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, respeitando os protocolos de biossegurança da UFJF, com uso obrigatório de máscara. 

Relembre: Dia Internacional dos Povos Indígenas: Iniciativas levam cultura e saberes dessas comunidades para a UFJF-GV

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