A guajajara Aliria Wiuria: “por que não estudar a literatura indígena?” (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo Censo da Educação Superior, o número de universitários que se autodeclararam indígenas aumentou de cerca de 7 mil em 2010 para 57.706 em 2018, último dado conhecido. O crescimento é reflexo das políticas de cotas e da valorização identitária dos povos tradicionais, entre eles, indígenas e quilombolas. Declaram-se indígenas no Brasil 0,42% da população – 817.963 indivíduos -, de acordo com o Censo Populacional de 2010. Pouco mais da metade desse total são moradores de terras indígenas, registrados em 309 etnias. Dez povos concentram a maior parte desta população: Tikúna, Guarani Kaiowá, Kaingang, Terena, Makuxí, Tenetehara, Yanomámi, Xavante, Potiguara e Sateré-Mawés.

Apesar do crescimento, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ainda é incipiente o ingresso de indígenas pelos grupos A, A1, D e D1, dos quais também fazem parte pretos, pardos e quilombolas. As informações ajudam a fomentar as discussões a respeito da representatividade dos povos originários no ambiente acadêmico, tanto nos cursos de graduação quanto os de pós.  

Em 2017, Aliria Wiuira Benicios de Carvalho entrou para o Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Segundo perfil étnico-racial levantado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp), entre 2017 e 2020, dos 3.099 alunos de mestrado e doutorado da UFJF, somente sete eram indígenas.

Aliria afirma que, em muitas universidades, onde apresentou trabalhos e ministrou palestras, tais presenças são quase nulas. Os obstáculos políticos e sociais são muitos: o preconceito por parte da sociedade e a adaptação cultural são dois deles, bem como as oportunidades disponíveis para que crianças, adolescentes e adultos indígenas possam estudar. 

Foi pensando na oportunidade dos filhos estudarem que o pai de Aliria, descendente da etnia Timbira, e a mãe, Guajajara, decidiram se mudar com a família da cidade de Imperatriz, no Maranhão, para o estado do Piauí. “As escolas, na região das aldeias, eram difíceis. Precisávamos fazer grandes deslocamentos para estudar. Por isso, nos mudamos. Me formei em Letras/Português na Universidade Estadual do Piauí (Uespi) e nunca imaginei que iria estudar a literatura indígena”, comenta Aliria. 

O interesse pela transmissão dos saberes tradicionais de seu povo, por meio das narrativas orais e dos cantos levaram a guajajara – como ela mesmo se define, devido à convivência com os descendentes de sua mãe – até o objeto de sua pesquisa na pós-graduação. “Antes de 1500, indígenas já poetavam e cantavam neste território. Percebi que meus estudos ainda têm pouco espaço na academia, pois tratam de uma literatura que foi deixada à margem, apagada. Felizmente, ela tenta resistir. Aos poucos, a voz indígena vai se pronunciando e a literatura é uma forma de resistência a esse silenciamento imposto”, ressalta.

No doutorado, sob orientação da professora Silvina Liliana Carrizo, ela estuda as cantigas e narrativas indígenas da Festa do Moqueado, típica da etnia Guajajara, também conhecida como Festa da Menina-Moça, ritual de passagem da fase adolescente para a vida adulta das meninas. “Vi a UFJF como um espaço onde eu poderia plantar essa escrita. O Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários tem como foco a literatura afro-brasileira. Pensei: por que não estudar a literatura indígena?” 

Políticas de cotas para indígenas

No âmbito da graduação, a obrigatoriedade da adoção da Lei de Cotas foi estabelecida pelo Decreto Federal nº 7.824, de 11 de outubro de 2012, que incluiu os indígenas no grupo B de cotistas. Já em outubro de 2021, o Conselho Superior (Consu) aprovou a reserva de 50% de vagas para ações afirmativas em Programas de Pós-Graduação da UFJF. Serão contemplados grupos compostos por pessoas negras, trans (transgêneros, transexuais e travestis), com deficiência (PcD), refugiadas, solicitantes da condição de refugiado e imigrantes humanitários. Além desses, pessoas oriundas de povos e comunidades tradicionais.

Tendo feito mestrado na UFJF e entrado no doutorado em 2017, Aliria não participou de processos seletivos com porcentagens para cotistas. Ela acredita, no entanto, que tais políticas podem contribuir para maior presença indígena nas universidades, o que movimenta as engrenagens do sistema tanto nos cursos de graduação quanto das pós, com a inclusão de oficinas, disciplinas e leituras de autores indígenas, a serem adotados até mesmo nas seleções de mestrado e doutorado.

“A importância das cotas e das políticas de ações afirmativas oportunizam que os indígenas ocupem lugares que antes lhes foram negados, levando em consideração sua história, todas as situações de opressão e silenciamento. Como mulher indígena e pesquisadora na área da Literatura, percebo que nós, povos indígenas, vestidos por nossas culturas e tradições, estamos chegando às universidades. Vejo o espaço acadêmico e a pesquisa científica como lugares de atuação em favor da causa indígena. Nosso trabalho não é mera realização pessoal ou profissional, mas uma ação que promove mudanças”, observa a doutoranda.

“A importância das cotas e das políticas de ações afirmativas oportunizam que os indígenas ocupem lugares que antes lhes foram negados” (Foto: Arquivo pessoal)

Outras ações foram fundamentais para garantir a permanência de estudantes indígenas no ambiente acadêmico. Foi através de um convênio entre a Secretaria de Estado de Educação do Amazonas (Seduc/AM) e a UFJF que Alva Rosa Lana Vieira, cujo nome indígena é Yepario, oriunda do povo Tukano, se tornou, em 2017, a primeira indígena a defender uma dissertação no Programa de Pós-Graduação Profissional – Mestrado em Gestão e Avaliação da Educação Pública, da Faculdade de Educação (Faced) da UFJF. O trabalho de dissertação de Alva Rosa buscou definir um modelo de gestão compartilhada entre as instâncias federal, estadual e municipal para a educação escolar indígena, pesquisa que reverbera em sua atuação como professora da rede estadual e em seu curso de doutorado em Educação na Ufam. 

Ela aponta que não existe diferença no que tange à representatividade indígena em universidades do Sudeste, como a UFJF, ou do Norte, como a Ufam, mesmo com esta sendo localizada em uma região com o maior índice de população indígena. “A representatividade indígena na academia é uma luta por uma universidade mais plural, buscando igualdade e oportunidade para todos, inclusive os indígenas. Lutamos por uma universidade que, no seu corpo de gestão, técnica e docente, estejam os indígenas também. Assim, a partir de suas presenças na academia, os próprios indígenas poderão contar suas histórias, às suas maneiras, sem ser coloniais. É preciso descolonizar a pesquisa”, afirma Alva Rosa. 

Órgão acolhe denúncias de discriminação e racismo

Ligada à Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas visa o combate a quaisquer tipos de discriminação e violência contra grupos minoritários, incluindo os estudantes indígenas. A Ouvidoria, liderada pela professora da Faculdade de Medicina Danielle Teles da Cruz, acolhe as demandas pertinentes à política de ações afirmativas e busca, sempre, a negociação dos conflitos por meio do diálogo entre as partes envolvidas. É possível agendar um atendimento presencial na Ouvidoria Especializada por meio do telefone (32) 2102-3380 ou pelo e-mail ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.edu.br. Qualquer demanda ou manifestação também pode ser registrada na Plataforma Fala.Br.

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