A principal rua do centro de Juiz de Fora será tomada neste sábado, 29 de janeiro, por aquelas e aqueles que muitas vezes não puderam andar livremente pela cidade. No Dia Nacional da Visibilidade Trans, a Associação de Travestis, Transgeneres e Transexuais de Juiz de Fora (Astra-JF) organiza a primeira Marcha da Visibilidade Trans, que vem demarcar um espaço que há muito vem sendo batalhado no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo.
A Astra-JF tem origem no Centro de Referência da Promoção da Cidadania LGBTQI+, programa de extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) que funciona desde 2019 e deu origem ao projeto TranSolidariedade, em vigor entre março de 2020 e agosto de 2021. O objetivo inicial foi de atender às demandas da população de travestis e mulheres trans trabalhadoras sexuais da cidade de Juiz de Fora no período pandêmico.
O professor da Faculdade de Serviço Social e um dos fundadores do Centro, Marco José Duarte, conta que a Astra-JF surgiu a partir do encontro entre pessoas que pensam na Universidade como local de estudo, formação, produção de conhecimento, e também de extensão junto à sociedade. “Isso revela a potência política na luta por cidadania das sujeitas que são consideradas abjetas, anormais, aberrações, pecadoras. Fico muito satisfeito que o trabalho realizado em um ano e cinco meses com elas, para elas e a partir delas tenha produzido, com a auto-organização delas, esta institucionalidade, para mostrar a força que vem destas meninas, que tem expectativas de vida de até 35 anos”, exalta.
A transativista preta Dandara Felícia, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, concorda que a principal atuação da Astra é a auto-organização política de travestis, transgeneres e transexuais de Juiz de Fora. “Percebemos que havia uma necessidade de fazer isso, visto que outras organizações tinham o problema de inserir as pessoas trans nas suas lutas políticas. Também pretendemos fazer programas e projetos que ampliem o nível de escolaridade dessas pessoas, a fim de que a gente possa inseri-las cada vez mais no mercado de trabalho de uma maneira menos precarizada”, destaca a coordenadora do Centro.
Dandara Felícia, que trabalha no Hospital Universitário (HU), também é co-fundadora do Centro de Referência da Promoção da Cidadania LGBTQI+ da UFJF. Em entrevista ao podcast Encontro A3, ela e o mestrando em Serviço Social e advogado Julio Mota de Oliveira falaram sobre a importância da primeira marcha trans juiz-forana em celebração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans e da participação da UFJF nas suas trajetórias enquanto ativistas. Julio Mota conta, por exemplo, que teve seu primeiro contato com as questões LGBTQIA+ a partir do ingresso no curso Relações de Gênero e Sexualidade da Faculdade de Educação (Faced) da UFJF, primeira especialização do estado de Minas Gerais na área, então coordenada pelo professor da Faced e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed), Anderson Ferrari.
Da primeira turma desta especialização, Julio Mota, de 27 anos, passou a atuar como advogado voluntário do Centro de Referência LGBTQI+. “Convivi com indivíduos diversos, com experiências múltiplas, que me ajudaram e ajudam a me reconhecer enquanto sujeito e que me apresentaram meu lugar no mundo. O meu envolvimento com a defesa dos direitos das pessoas trans se deu quando me deparei com a realidade de uma parcela da população que é extremamente marginalizada e desprovida de acesso aos direitos humanos mais básicos, como a vida, o nome, a saúde, a educação e o trabalho”, lembra Mota, destacando ainda conquistas históricas que tiveram, como a elaboração e aprovação do Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da População LGBTQIA+ junto à Secretaria Especial de Direitos Humanos de Juiz de Fora e a aprovação pelo Ministério da Saúde, em junho de 2021, da implantação do processo transexualizador via Sistema Único de Saúde (SUS), executado pelo HU/UFJF.
Data para celebrar e promover mudanças
Instituída em 2004, tendo como marco a primeira vez em que pessoas trans e travestis foram ao Congresso Nacional em ato organizado, a data de 29 de janeiro se tornou icônica na luta de travestis, transexuais e transgeneres pelo reconhecimento às identidades e pelo combate à transfobia, realidade que muitas vezes afasta pessoas trans do ambiente educacional ou de trabalho. “São sujeitos na luta por uma cidadania a elas negada, tanto em políticas como em direitos, haja visto a transfobia estrutural em nossa sociedade – uma realidade cruel, que leva as pessoas trans a abandonarem a escola, a terem dificuldades de inserção no mercado de trabalho, de acesso aos serviços de saúde, além do próprio risco de vida”, reforça Marco José Duarte.
Apesar de a transfobia ser crime no Brasil desde 2019, o país se mantém no topo da lista dos assassinatos a pessoas trans e travestis pelo 13º ano consecutivo.
Apesar de a transfobia ser crime no Brasil desde 2019, o país se mantém no topo da lista dos assassinatos a pessoas trans e travestis pelo 13º ano consecutivo. De acordo com relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globais levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos registrados ocorreram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil. Desde 2008, pelo menos 4.042 pessoas trans e de gêneros diversos foram mortas no país.
Durante a pandemia, entre outubro de 2020 e setembro de 2021, o relatório aponta que houve 125 mortes deste tipo. O dado, entretanto, diverge do levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) onde foram reportados 175 transfeminicídios e 80 mortes só no primeiro semestre de 2021.
Infelizmente, não trabalho diretamente com a população trans e travesti, pois não há investimento por parte do Estado em políticas públicas para ações de promoção da cidadania de pessoas LGBTQIA+ – Brune Brandão
Números que assustam e que refletem a falta de investimentos públicos para a proteção desta parcela da sociedade. Brune Coelho Brandão tem 30 anos e é doutoranda em Psicologia, aliás a primeira mulher trans doutoranda na história da UFJF. Atualmente, trabalha como analista social em um programa de mediação de conflitos em uma comunidade juiz-forana com altos índices de violência e criminalidade. “Infelizmente, não trabalho diretamente com a população trans e travesti, pois não há investimento por parte do Estado em políticas públicas para ações de promoção da cidadania de pessoas LGBTQIA+. É um ‘deixa morrer’, como diria Michel Foucault. Essa é uma grande frustração pessoal: não poder atuar diretamente na área que me especializei de forma remunerada. Todas as minhas ações foram de caráter voluntário”, explica Brune, que tem traçado o caminho profissional da docência. “Faço isso por acreditar em uma universidade mais diversa e por entender que, neste espaço, talvez encontre um pouco mais de liberdade de atuação. A diversidade não pode parar no corpo discente”.
Brune lembra que sua transição de gênero ocorreu durante a graduação no curso de Psicologia, do Instituto de Ciências Humanas (ICH), da UFJF. Ela conta que, apesar de alguns contratempos, foi bastante acolhida, mas que teve problemas relacionados à rede do Sistema Integrado de Gestão Acadêmica (Siga), listas de chamadas e carteirinhas de estudante. “Acompanhei algumas reuniões e reajustes nesse processo. A Universidade foi se adequando a essa realidade para garantir nossos direitos básicos, como o uso do nome social e, no meu caso, do banheiro feminino, que são o mínimo que se espera”.
Em 2017, o Conselho Superior (Consu) da UFJF aprovou o uso do nome social em históricos escolares, diplomas e certificados de conclusão de curso emitidos pela Instituição. A decisão do Consu ampliou a Resolução 06/2015, que assegurava, aos servidores docentes e técnicos-administrativos e aos estudantes, o direito ao uso do nome social nos registros, documentos e atos da vida funcional e acadêmica no âmbito na UFJF.
Contudo, Brune sabe que ainda, dentro da Universidade, existe uma espécie de disputa pela hegemonia branca, masculina e cishetero. “Existem pequenas bolhas na Universidade que nos fazem respirar, mas ainda há muita desvalorização de nossas pesquisas. As pessoas cis querem nos tutelar pelo conhecimento e dizer por nós. As ações afirmativas vêm suprir um pouco esse processo”, afirma Brune, que teve participação ativa no primeiro projeto de extensão da UFJF exclusivamente voltado para pessoas trans. O Visitrans foi desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas e Práticas em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde da UFJF, coordenado pela professora do curso de Psicologia Juliana Perucchi e tinha por objetivo fomentar uma rede de troca de experiências e vínculos entre as pessoas travestis, transgeneres e transexuais de Juiz de Fora.
Luta coletiva
Para garantir os direitos exigidos pelos movimentos sociais e organizações coletivas, propondo e articulando políticas, a UFJF conta com a Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf). A ouvidora especializada em ações afirmativas e professora do departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina, Danielle Teles da Cruz faz questão de destacar que grande parte das conquistas do universo LGBTQIA+ são oriundas do protagonismo da população que representa a letra T da sigla.
A reserva de vagas é importantíssima pois fortalece os caminhos de luta contra a transfobia. Quando falamos da população T, estamos falando de corpos que são negligenciados e violentados cotidianamente – Danielle Teles
Prova disso está na aprovação, em outubro do ano passado, da reserva de 50% das vagas para ações afirmativas em Programas de Pós-Graduação da Universidade. Entre os contemplados pela nova política de cotas para os cursos de mestrado e doutorado, estão pessoas negras, oriundas de povos e comunidades tradicionais, com deficiência (PcD), refugiadas ou solicitantes da condição de refugiado e imigrantes humanitários, e pessoas transgeneres, transexuais e travestis. “A reserva de vagas é importantíssima pois fortalece os caminhos de luta contra a transfobia. Quando falamos da população T, estamos falando de corpos que são negligenciados e violentados cotidianamente, que são expulsos dos lugares de direitos e de conquistas e que ocupam narrativas de morte e de dor. A reserva de vagas demonstra o compromisso da Instituição com esses corpos e suas demandas, abre a possibilidade da construção de um longo caminho para uma sociedade mais diversa, inclusiva, respeitosa e democrática”, ressalta Danielle.
A Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas trata-se de um importante espaço de participação social, no qual todas, todos e todes podem e devem se manifestar. Em casos de atos transfóbicos ou de incitação à transfobia, é preciso que haja denúncia por parte das pessoas que vivenciaram ou presenciaram a ação. Danielle explica que as denúncias podem ser feitas de forma anônima ou sigilosa e que todas são encaminhadas para o que a ouvidoria chama de “unidade apuradora”. Para os casos de atendimento psicológico, são necessários encaminhamentos para a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (Proae) ou para a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe). “Em situações de violência e desrespeito, a vítima está em situação de vulnerabilidade e fragilidade. Muitas vezes não consegue ter forças o suficiente para denunciar e tomar as medidas cabíveis. Portanto, não precisa ser trans ou travesti para fazer a denúncia. Quem presencia qualquer ato discriminatório deve assumir a responsabilidade de acolher e tomar a atitude de denunciar”, reforça Danielle.
Os contatos com a Ouvidoria Especializada podem ser realizados via e-mail (ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.edu.br) ou através da plataforma FalaBr. Em decorrência do cenário epidemiológico, os atendimentos presenciais ou telepresenciais devem ser solicitados via e-mail. Sempre que requerido, será guardado o sigilo da identificação do manifestante. Também é possível enviar sugestões ou elogios, para que a Universidade saiba se as políticas estão no caminho certo e que podem servir de exemplo para outras instituições.
Por uma Universidade mais plural
Em processo de transicionamento, o funcionário terceirizado da UFJF Rafael Kaio conta que trabalhou em várias outras empresas ao longo de sua vida profissional e que se sentiu acolhido na Pró-Reitoria de Extensão (Proex), onde atua diretamente no projeto da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (Intecoop). Há cinco meses, Rafael faz terapia e tratamento hormonal pelo SUS e acredita que as mudanças em seu corpo foram formas de reconhecer-se enquanto homem trans. “Noto que as mulheres trans têm conseguido mais espaço que os homens, ao menos no que diz respeito à representatividade. Nosso caminho é um caminho de portas fechadas. É difícil estar no mercado de trabalho”, declara Rafael, que também é estudante de Biomedicina da Faculdade Presidente Antônio Carlos (Unipac). “Meu sonho é sermos mais respeitados, que todos os trans sigam sua transição sem qualquer tipo de julgamento. É o mínimo que pedimos: que a sociedade respeite nossos direitos”.
Para a ouvidora especializada em ações afirmativas da UFJF, a inclusão de pessoas trans e travestis na Universidade, sejam elas discentes ou docentes, servidores ou terceirizados, se trata de um direito e não de concessão de privilégios. “Ganhamos coletivamente ao possibilitar a perspectiva futura de uma universidade e, por conseguinte, uma sociedade mais equânime, justa e democrática. No ambiente universitário, ganhamos em diversidade, pluralidade de ideias, inclusão, respeito, representatividade, criatividade e inovação. A diversidade, em todos os seus sentidos, possibilita combater a cultura do medo, pensar fora da caixa, ter novas perspectivas, aprender novas habilidades, opor-se ao preconceito de qualquer natureza. Todos esses elementos são primordiais para qualificação e aprimoramento do ensino, da pesquisa, da extensão e da gestão”, finaliza Danielle.
O programa abaixo está disponível nas principais plataformas de podcast, como Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts, Castbox, Radio Public, Pocket Cast e Spotify.