O debate entre a laicidade legal e real foi um dos principais temas discutidos na mesa-redonda “A laicidade do Estado vista pelas Ciências Humanas e Sociais”, que ocorreu na manhã desta quarta-feira como parte da programação da 73ª Reunião Anual da SBPC, sediada virtualmente pela UFJF neste ano. O evento, coordenado pelo professor José Raimundo Maia Neto (UFMG), buscou traçar paralelos entre as motivações e impactos da influência religiosa no país, de maneira a ampliar as discussões sobre um tema que atravessa a sociedade brasileira desde os tempos do Império.
Reconstituindo o tópico em uma visão histórica, a pesquisadora Maria Lygia Quartim de Moraes (Unicamp) buscou analisar a partir de aspectos sociológicos a questão da laicidade em si. O termo, que se refere etimologicamente àquilo que é do mundo, e não da perspectiva clerical, só começou a ser empregado depois da união entre Estado e Igreja nos primeiros séculos. Ela cita que algumas pessoas atribuem que até mesmo Cristo teria sua visão sobre a laicidade, a partir da frase “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”
Da mesma maneira, as rupturas de Lutero e Calvino na Reforma Protestante contribuíram para que essa relação somente fosse revisitada no período da Revolução Francesa, que dissociou de vez ambas esferas. Desta forma, as escolas do país se transformaram na perspectiva de formar cidadãos sob a ótica da liberdade, sem influências da religião. Maria relembra que a partir do ideal de Althusser, de que tanto as escolas quanto a religião são aparelhos ideológicos, é possível perceber que a junção de ambas as faces podem gerar diversas consequências sociais.
Já o pesquisador Luiz Antonio Constant Rodrigues da Cunha (UFRJ) abordou, em perspectiva histórica, a laicidade por meio do enfoque nas Ciências da Educação. Relembrou que num primeiro momento, no início do século XIX, a religião era considerada importante para a formação geral dos estudantes, mas não era realizada na escola pública. Ainda no período do Império, o ensino religioso foi admitido como obrigatório, mas na constituição de 1891 este dispositivo foi revogado, tornando o ensino novamente laico.
Cunha também destaca que este período de laicidade durou pouco tempo, tendo em vista que neste período de quatro décadas, uma nova onda confessional ressurgiu e obteve uma enorme vitória a partir de um decreto assinado por Getúlio Vargas. O documento, promulgado em 1931, previa a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas primárias, secundárias, normais e profissionais.
“Uma insuficiência no tratamento que a história da educação faz sobre essa questão é omitir, ou pelo menos atenuar, a íntima aliança entre a Igreja Católica e o Fascismo, tanto na Europa como aqui no Brasil. No país, essa ligação teve a participação de uma instituição que foi catalisadora dessa reação, sendo o primeiro partido de massa em âmbito nacional: a Ação Integralista Brasileira, um partido fascista.”, considera o pesquisador.
A junção de ambos os movimentos ficou explícita numa plataforma de dez pontos da “Liga Eleitoral Católica”, uma organização interpartidária voltada para a eleição dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte, que chegou a obter cerca de 70% de adesão dos parlamentares à época. Cunha considera este movimento como a “primeira bancada religiosa da história no parlamento brasileiro”, traçando um paralelo com as atuais bancadas evangélicas.
O professor Emerson José Sena da Silveira (UFJF) trabalhou a questão da laicidade a partir da visão das Ciências da Religião. Ele explica que por mais que ela seja irmã das outras ciências humanas, como as Ciências Sociais e a Filosofia, seu reconhecimento acadêmico teve início na década de 1970 no Brasil. Ele também comemorou o reconhecimento das Ciências da Religião como uma área autônoma pela Capes, algo que somente aconteceu em 2017.
Dentro desta ciência, existem diversos olhares sobre a laicidade, mas que sempre circulam ao redor de reconhecer sua importância intrínseca. Além disso, é necessário lembrar que o método científico sempre é aplicado nessas análises. Por mais que o estado laico tenha sido promulgado na instituição da República, ele relembra que os ataques ao tema nunca cessaram.
“Nos últimos anos, assistimos a um crescimento da influência religiosa cristã, em especial de poderosos grupos evangélicos e católicos reacionários e conservadores. A reação desse grupo dentro do aparato estatal tem restringido na prática direitos de minorias, e enfraquecido os valores republicanos de impessoalidade, justiça, igualdade e equanimidade de direitos”, diz Sena. Por fim, destacou sua crítica ao modus operanti do governo atual, a partir do risco institucional na indicação de um ministro ao Superior Tribunal Federal “terrivelmente evangélico”.