Considerada a maior festa folclórica do mundo, o carnaval abrange todas as áreas da sociedade. Na pesquisa, professores e alunos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) corroboram, por meio de estudos e análises, a transfiguração da folia de uma festa introduzida no Brasil por europeus em uma das mais fortes manifestações da identidade cultural do país. A celebração foi uma das primeiras a dar visibilidade à cultura afro-brasileira, às marchinhas carnavalescas e à representação das mulheres na festividade. No entanto, novos temas e reivindicações sociais também colocam a folia em meio a polêmicas. Das fantasias que escancaram estereótipos ao nu que esconde visões camufladas enraizadas na sociedade, a festa de Momo desperta o interesse acadêmico em diversas áreas do saber.
O Núcleo de Pesquisa em Comunicação, Esporte e Cultura (Nupescec), do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Comunicação (Ppgcom), desenvolve pesquisas com temas da cultura brasileira, especialmente futebol e carnaval, ambos com importância na formação da identidade do brasileiro. O professor e coordenador do Nupescec, Márcio Guerra, explica que, assim como o futebol, o carnaval é uma das paixões do brasileiro e faz parte da história do país e de seu povo. “A identidade do brasileiro é formada pelos portugueses que trouxeram sua cultura da colônia, os índios que já estavam aqui e os negros escravizados. Somos nenhum deles e todos eles ao mesmo tempo e, por conta disso, nós temos algumas características que nos diferenciam um dos outros. Essas características fazem parte do sentido do homem cordial, não no sentido literal da palavra, homem gentil, mas sim no sentido do coração”, explica. “O brasileiro age muito mais com o coração e seus instintos do que com a razão, sendo que o carnaval e o futebol provocam essas emoções e fazem com que sejam uma paixão nacional. Nesse sentido esses são temas que se destacam como objetos de estudo para o nosso grupo”, avalia.
Estereótipos e representações
Com a mudança de comportamento das gerações, as propagandas carnavalescas buscaram se inovar, trazendo discussão sobre estereótipos. A mestranda do PPgcom, Bárbara Nunes, que também faz parte do Nupescec, analisa em seu trabalho a mudança da vinheta de carnaval da Globo em 2017. “Depois de 26 anos, a Globeleza, personagem famosa da emissora, tem nova ‘roupagem’, ela vem vestida, representando várias manifestações culturais carnavalescas do Brasil, como maracatu, axé, frevo e o próprio samba. Desse modo, meu trabalho tem o intuito de estudar o porquê dessa mudança e o que está por trás dela.”
A representação feminina no carnaval têm sido assunto de discussões sobre a mudança de comportamento da sociedade. Para a mestranda, o papel da mídia é um dos fatores importantes no processo de desconstrução do estereótipo feminino. “Por mais que ainda seja pouco, a mudança dessa vinheta, historicamente conhecida por exibir o corpo nu da Globeleza, desmistifica o papel da mulher nesse contexto, historicamente estereotipada como submissa e sub-representada pela mídia e que reafirmava a mulher negra relacionada ao prazer sexual ou ao trabalho”, conclui.
Pluralidade de estilos
Uma das características do carnaval é a pluralidade de estilos, de formas e de raça. Observar como o negro é representado nos enredos das escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro é o objetivo da pesquisa do mestrando Rafael Rezende, do Ppgcom da UFJF. O estudo tem como objeto de análise as narrativas sobre os negros em quatro desfiles cariocas: Kizomba, a festa da raça (Vila Isabel, 1988), Orfeu, o negro do carnaval (Viradouro, 1998), Candaces (Salgueiro, 2007) e Você semba lá… Que eu sambo cá! O canto livre de Angola (Vila Isabel, 2012).
“São observados particularmente os aspectos peculiares que tornaram as agremiações cariocas tão importantes, com destaque para a forma como dialogam com a sociedade. Como parte desse cenário, meu estudo se dedica ao estudo da contribuição do negro para a cultura brasileira e de sua inserção no processo de construção da identidade nacional”, explica Rezende.
A pesquisa partiu da hipótese da elaboração dos enredos sobre a influência da conjuntura a ela correspondente, ao passo que cada desfile também influencia o contexto social no qual se insere. “Em síntese, os resultados alcançados indicam que, apesar de suas evidentes particularidades, as narrativas investigadas não se esquivam de dramas e problemas sociais históricos. Prevalece, porém, o otimismo, a esperança, a exaltação da vida – como forma de enfrentar a morte – e a busca pela elevação da autoestima do negro”, observa.
A polêmica das marchinhas
Considerada por muitas pessoas a trilha oficial do carnaval, as marchinhas são manifestações musicais muito presentes nessa festa popular. Muito antes de os sambas de enredo e os trios elétricos baianos se tornarem as estrelas dessa festa, eram as marchinhas que alegravam os foliões.
O doutorando em Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ricardo Maciel, defendeu a dissertação “A arquitetura do João de Barro: música popular e profissionalismo artístico”, no mestrado, em 2015, pela UFJF. A pesquisa foi sobre a profissionalização artística dos músicos populares situados na década de 1930, momento de consolidação da indústria musical no Brasil. Para o doutorando, atualmente as marchinhas perderam espaço. “Nas décadas de 30, 40 e 50, elas eram o estilo mais associado ao carnaval; contudo, a partir dos anos 60, elas perderam espaço, enquanto outros ritmos tiveram ascensão. Hoje, ainda existe produção de marchinhas e muitos concursos ainda ocorrem, mas nada comparado ao que já foi”, relembra Maciel.
No entanto, as marchinhas estão no centro da mais nova polêmica relacionada a músicas carnavalescas. Isso porque elas podem ser consideradas machistas e homofóbicas se interpretadas ‘ao pé da letra’. Para Maciel, trata-se de um fato social relevante por despontar novos atores sociais no horizonte político. “A polêmica surge, pois mulheres, gays e negros, citados na maioria das marchinhas, alcançaram mais visibilidade e passaram a apresentar pautas para a sociedade. Acredito que eles têm razão em reivindicar contra as letras; contudo, é impossível censurar as marchinhas, pois elas são parte da herança musical brasileira e parte importante do carnaval”, afirma.
Além disso, o doutorando aponta que em algumas marchinhas é necessário levar em conta o aspecto duplo das letras. “Algumas letras são de fato machistas, racistas e homofóbicas; no entanto, elas abriram espaço para falar de certos grupos quando não havia meios para essa discussão. Ainda que de forma limitada e às vezes ridicularizando, as marchinhas abriam espaços para gays, lésbicas e negros figurarem como tipos sociais visíveis. E dessa forma o carnaval se tornou mais democrático.”