A luta antirracista não se constrói em um único mês. Mas, em novembro, quando celebramos o Dia da Consciência Negra, o chamado à reflexão e à ação se intensifica. É um momento de reconhecer a contribuição fundamental da população negra para a formação da identidade brasileira e, ao mesmo tempo, reafirmar o compromisso de enfrentar o apagamento histórico e o racismo estrutural que ainda atravessam nossa sociedade, um trabalho contínuo e coletivo.

A partir desse compromisso, publicaremos uma série de matérias, apresentando projetos, pesquisas, iniciativas da UFJF e muitas vozes que têm atuado na promoção da equidade racial. Traremos a discussão sobre a saúde da população negra, os desafios na efetiva aplicação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, o racismo institucional no sistema de saúde, o pacto narcísico da branquitude na academia, a condição de mulheres negras em diáspora, entre outros temas fundamentais para compreender e enfrentar as iniquidades que ainda persistem.

Mulheres migrantes negras em diáspora

Projeto Mulheres Migrantes Negras em Diásporas no Brasil reúne dez mulheres de diferentes nacionalidades (Foto: Arquivo pessoal)

As desigualdades vividas por mulheres migrantes negras são atravessadas por múltiplas opressões: racismo, sexismo, xenofobia, desigualdades de classe, barreiras linguísticas e precarização do trabalho. Todas essas dimensões são reforçadas por dinâmicas históricas da colonialidade. É nesse contexto que foi desenvolvido o projeto Mulheres Migrantes Negras em Diásporas no Brasil: Cartografia das Opressões, que tem em Juiz de Fora um de seus núcleos. Financiado pelo CNPq, o projeto é desenvolvido em parceria com as universidades UFJF, UFB, UERJ, UFAC, UFRGS, UFPE e UnB. Na UFJF é coordenado pela professora da Faculdade de Enfermagem da UFJF, Zuleyce Maria Lessa Pacheco e tem como vice-coordenadora a professora Iêda Maria Ávila Vargas Dias. Em Juiz de Fora, dez mulheres migrantes negras participam da pesquisa: cinco da Venezuela, duas de Guiné-Bissau, duas da República Democrática do Congo e uma de Moçambique. Elas têm entre 28 e 56 anos, 80% são casadas e metade possui ensino superior.

 “Estas mulheres revelaram os muitos entraves que enfrentaram ou ainda enfrentam, como dificuldades na comunicação, sendo o aprendizado da língua portuguesa um desafio. Por este motivo, são muitas vezes mal assistidas nos serviços de saúde, suas crianças sofrem bullying na escola, elas sentem muita falta da terra natal e de seus familiares, possuem dificuldade em validar seus diplomas universitários, de entrarem no mercado de trabalho e de adaptação cultural. Para quase todas a migração foi um processo muito difícil, por isso carregam traumas na memória por conta das dificuldades que passaram nesta diáspora”, afirma Zuleyce.

O trabalho reúne pesquisa, arte, narrativas de vida e educação popular para compreender, visibilizar e enfrentar as desigualdades vividas por essas mulheres. Desde novembro de 2024, o núcleo local vem realizando oficinas de fotografia, escrevivências, rodas de conversa e atividades de análise imagética que compõem a metodologia do projeto.

“A perspectiva interseccional empregada em nosso estudo parte do reconhecimento de que a mulher migrante negra e sua vivência devem ocupar lugar central na análise. Nosso objetivo geral é desvelar as opressões de classe, raça/etnia, nacionalidade, status migratório e orientação sexual vivenciadas por mulheres migrantes negras em diáspora no Brasil, à luz das interseccionalidades. Buscamos, assim, subsidiar a elaboração de políticas públicas que garantam os direitos humanos dessa população, articuladas a processos de educação permanente em saúde para profissionais da atenção primária do SUS”, explica a professora Zuleyce.

A metodologia adotada pelo projeto deriva do Projeto Vidas Paralelas (PVP) e combina oficinas participativas, dinâmicas de partilha, criação artística, produção fotográfica, escrevivências, círculos de cultura de Paulo Freire e análises orientadas pela partilha do sensível. Mais do que uma técnica de pesquisa, trata-se de um processo formativo que valoriza a experiência das participantes como fonte legítima de conhecimento: “O foco do Vidas Paralelas é a construção de narrativas e olhares que denunciam desigualdades ao mesmo tempo em que fortalecem vínculos, promovem autoestima e estimulam o protagonismo político dessas mulheres”.

Carta de Direitos e mobilização nacional

Zuleyce: ” “Estas mulheres revelaram os muitos entraves que enfrentaram ou ainda enfrentam”. (Foto: Divulgação)

A etapa atual do projeto envolve a construção, pelas próprias participantes, de uma Carta de Direitos das Mulheres Migrantes Negras. O documento será integrado às cartas produzidas por outros núcleos do país e apresentado em um Encontro Nacional em Brasília, entre 24 e 27 de novembro. O encerramento das atividades coincidirá com a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, quando a Carta será oficialmente protocolada.

A iniciativa também estrutura uma Rede de Mulheres Migrantes, fortalecendo vínculos entre grupos de pesquisa e movimentos sociais. Oficinas, cineclubes, exposições e rodas de cuidado integram o processo de construção coletiva. O projeto pode ser acompanhado pelo Instagram @negrasemdiaspora, onde são publicadas séries audiovisuais como “Meu Idioma, Minha Voz”.

Liga Acadêmica possui foco na saúde da população negra

Natan: “A falha está na formação. É reflexo de um racismo estrutural que nega essas discussões dentro da universidade” (Foto: Twin Alvarenga)

Enfrentar uma lacuna histórica nos currículos dos cursos de saúde no que se refere à atenção à população negra é um dos principais objetivos da Liga Acadêmica de Saúde Integral da População Negra (Laspon), que completou seu primeiro ano de atuação na UFJF. Criada no ano passado, a liga surgiu da percepção de que as universidades ainda tratam de maneira superficial uma temática central para o país: mais de 55% dos brasileiros se identificam como negros, e a maior parte dessa população depende do Sistema Único de Saúde. Apesar disso, temas relacionados à saúde integral da população negra permanecem ausentes ou pouco explorados nos currículos dos cursos da área da saúde.

Segundo Natan Rodrigues Frederico, presidente da Laspon e estudante de Medicina, muitos estudantes desconhecem até mesmo a existência da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que orienta ações de promoção da equidade racial no SUS. Para ele, essa falta de informação compromete diretamente a qualidade da assistência. “Fala-se pouco sobre saúde da população negra na universidade. A Laspon nasce para preencher essa lacuna e reconhecer a importância do tema na nossa formação”, afirma.

No primeiro ano de funcionamento, a liga concentrou-se em atividades formativas internas e em ações abertas à comunidade acadêmica (Foto: Divulgação)

A liga reúne estudantes de diversos cursos, como Fisioterapia, Farmácia, Enfermagem, Medicina, Nutrição, Odontologia, Serviço Social e Psicologia, e aposta na construção multiprofissional como eixo para compreender e atender as demandas dessa população. Natan destaca que a ideia de saúde integral envolve reconhecer a diversidade interna do próprio grupo, a partir da interseccionalidade. “A população negra não é homogênea. Precisamos considerar os recortes de raça, gênero, classe e território, e cada profissão deve estar preparada para identificar as necessidades específicas de cada pessoa.”

Ao refletir sobre os motivos que afastaram esse debate da formação em saúde, Natan aponta diretamente para o racismo estrutural. Ele argumenta que a ausência do tema nas disciplinas, nos materiais didáticos e na formação prática é consequência de um processo histórico que silencia discussões sobre desigualdade racial. “A falha está na formação. É reflexo de um racismo estrutural que nega essas discussões dentro da universidade.” Na prática profissional, essa falta de preparo se traduz em diagnósticos atrasados, tratamentos inadequados e dificuldades de comunicação com usuários do SUS, especialmente quando estudantes e futuros profissionais não reconhecem sinais clínicos específicos em corpos negros. Ele exemplifica que, na dermatologia, quase todos os livros apresentam apenas peles brancas, o que limita o reconhecimento de diversas doenças. O mesmo vale para áreas como nutrição, psicologia e serviço social, que lidam com impactos sociais e subjetivos que afetam de forma distinta a população negra.

No primeiro ano de funcionamento, a liga concentrou-se em atividades formativas internas e em ações abertas à comunidade acadêmica. O grupo ainda não atua diretamente em hospitais ou unidades básicas de saúde, o que, segundo Natan, é uma decisão estratégica. Ele ressalta que muitos espaços de prática profissional ainda não estão preparados para receber estudantes que tragam esse debate, uma vez que muitos profissionais também não receberam formação específica sobre o tema. Por isso, o foco inicial é a formação, a construção de repertório crítico e o fortalecimento do diálogo com a comunidade universitária. A meta, agora, é estruturar parcerias com o Hospital Universitário e com a Atenção Primária à Saúde de Juiz de Fora para ampliar a presença da liga nos serviços de saúde nos próximos anos.

Os desafios enfrentados pela Laspon, contudo, vão além de questões institucionais. Para Natan, a resistência à pauta racial nas universidades revela a força do racismo estrutural no Brasil. Essa postura, segundo ele, desconsidera evidências científicas sobre os determinantes sociais da saúde e ignora o compromisso ético de formar profissionais preparados para atender quem mais precisa. A negação das desigualdades também gera adoecimento físico e mental na própria população negra. “Para quem é negro, a negação dessas dores é adoecedora. Sentir-se invisível, não considerado digno de assistência, afeta profundamente a saúde mental. É como se tirassem a humanidade dessas pessoas.”

A liga segue expandindo suas ações, fortalecendo debates e formando uma nova geração de profissionais que compreendem que discutir raça não é criar divisão, mas promover equidade. “Quando a gente traz esse debate, trazemos investimento e espaço para discussão, buscando uma sociedade que olhe para o futuro. E olhar para frente é pensar em uma assistência em saúde mais completa.”

Gestantes e a cor da dor

Giovanna: é preciso nomear o racismo contra gestantes negras durante o pré-natal realizado na Atenção Primária à Saúde (Foto: Carolina de Paula)

Avaliar a percepção de racismo de gestantes negras durante o pré-natal realizado na Atenção Primária à Saúde, no âmbito das Unidades Básicas de Saúde, é o objetivo central da pesquisa desenvolvida pela aluna do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Giovanna Machado Cassimiro, enfermeira e mestranda em Saúde Coletiva. Para a pesquisadora, trata-se de uma investigação que não nasce apenas de um interesse acadêmico, mas de uma trajetória profundamente marcada pela vivência como mulher negra, militante e comprometida com a compreensão das desigualdades que atravessam populações em situação de vulnerabilidade social.

A motivação que a conduz a esse tema é também pessoal: há nove meses, durante o parto de seu filho em um hospital público de referência em Juiz de Fora, ela vivenciou múltiplas violências obstétricas que tornaram o parto uma emergência e tiveram repercussões, inclusive, na saúde do bebê. Reconhecendo a dimensão racial daquela violência e compreendendo as condições estruturais que a permitiram, ela decidiu “tirar o curativo da ferida de uma vez só”: voltar-se para sua dor e transformá-la em produção de conhecimento e ação política.

Atualmente, o trabalho se encontra na fase de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP). Após essa etapa, e mediante autorização da Prefeitura de Juiz de Fora, terá início o contato com as Unidades Básicas de Saúde previamente sorteadas. Será solicitada a listagem de gestantes em acompanhamento nessas unidades para que, por meio de um processo de aleatorização (etapa necessária em estudos epidemiológicos) seja possível selecionar aproximadamente 300 gestantes que irão compor a amostra. Com as participantes definidas, serão aplicadas a Escala de Percepção e Discriminação em Saúde – Versão Pessoal, além de um questionário sociodemográfico. A posterior análise dos dados buscará evidenciar não apenas padrões de discriminação, mas também como o racismo se infiltra nas práticas cotidianas do pré-natal, afetando o acesso, a qualidade da assistência e os desfechos maternos.

As desigualdades raciais na mortalidade materna no Brasil demandam avaliação cuidadosa e sistemática. O inquérito Nascer no Brasil II (2021-2023) aponta que mães negras morrem aproximadamente duas vezes mais do que mães brancas. Apenas no ano de 2022, 67,1% das mortes maternas eram de mulheres negras, segundo o Relatório Técnico do Observatório da Saúde Pública. Há outras pesquisas que mostram mulheres negras mais expostas a abuso físico, intervenções não consentidas, negligência e discriminação, além de carregarem o peso de estereótipos racistas (como a ideia de que sentem menos dor e, portanto, recebem menos analgesia) que  impactam negativamente na qualidade da assistência. Outro estudo revela que mulheres negras têm 35% menos chance de iniciar o pré-natal até a 12ª semana de gestação e menor probabilidade de completar seis ou mais consultas quando comparadas a mulheres brancas.

A pesquisa é orientada pela professora e diretora de Ações Afirmativas, Danielle Teles, que ressalta a importância da diversidade para a produção científica na universidade. Segundo ela, “as ações afirmativas e o ingresso de pessoas negras na instituição proporcionam novos olhares sobre os objetos de pesquisa e possibilitam a construção de uma ciência mais diversa, sensível e comprometida com a realidade brasileira”.

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