O 3º Encontro de Saberes da UFJF concluiu com o módulo “Cultura Quilombola: resistência em festa”, destacando a congada e o jongo, danças tradicionais de comunidades quilombolas (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Conta a lenda que um grupo de escravizados, durante uma capina, em meio a tanto sofrimento, viu Nossa Srª do Rosário. Ela lhes disse que a liberdade viria. Contentes com a boa nova, começaram a dançar, batendo o cabo das enxadas entre si. A tradição se perpetuou na Comunidade Quilombola Colônia do Paiol, em Bias Fortes (MG), dando origem à congada, manifestação cultural que envolve, entre outros elementos, dança com bastões em alusão aos cabos de enxada, música, religiosidade e identidade.

Neste último fim de semana, a UFJF recebeu uma mestra da congada, a Zezé, Maria José Franco Santana, como convidada para dar aula no módulo “Cultura Quilombola: resistência em festa”, parte do 3º Encontro de Saberes da UFJF, ocorrido de sexta, 24, a domingo, 26.

Ao lado de Zezé, também ensinaram a mestra Fatinha do Jongo, Maria de Fátima da Silveira, de Pinheiral (RJ); e o mestre Jefinho do Tamandaré, Jefferson Alves de Oliveira, de Guaratinguetá (SP); com a abertura do grupo Nzinga, de Juiz de Fora, formado por mulheres negras contadoras de história.

Eles explicaram sobre formação e desafios de seus povos, saúde, educação e cultura, em especial, sobre o jongo e suas variações de toque de tambor e dança entre as comunidades. Zezé, que é também professora e pedagoga na Colônia do Paiol, frisou como, através da educação, em escola na própria comunidade, crianças conheceram a história de seus ancestrais e participam da congada. “Como é lindo ver uma criança me perguntar: tia Zezé, quero ter o cabelo como o da senhora. Como faz?’”.

Veja fotos do 3º Encontro de Saberes da UFJF.

Conhecer para amar

“Como é lindo ver uma criança me perguntar: tia Zezé, quero ter o cabelo como o da senhora. Como faz?’”, conta a mestra da congada (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

“As pessoas precisam conhecer para entender. Elas só amam o que conhecem. Que possamos então amar”, conclama Zezé, que está cursando o mestrado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF.

Como se sabe, muitas manifestações culturais, originadas principalmente pelos povos pretos escravizados, são ainda pouco conhecidas e, pior, discriminadas. O jongo, que é considerado por alguns como o “pai do samba”, já foi proibido.

Mas será que foi totalmente liberado ou a resistência ao som de um tambor ainda ecoa? Essa postura afeta as próprias comunidades tradicionais. No entender da professora Carolina Bezerra, do Colégio de Aplicação João XXIII da UFJF e coordenadora deste módulo do Encontro, o jongo, na Colônia do Paiol, deixou de ser dançado pela discriminação – raiz da vergonha entre a população mais jovem. Porém, com o fortalecimento da conexão com a terra, a congada e o maculelê brotaram fortes na Colônia.

Uma das formas de tornar as manifestações conhecidas e cultivá-las, além de na própria comunidade, é levá-las a espaços consagrados pelo saber científico, como as universidades, tal como é o caso deste módulo sobre Cultura Quilombola. No contato com outras formas de ver o mundo, as ervas daninhas do preconceito podem ir se desfazendo a cada batida, canto e fala.

Essa é uma das frentes de atuação de Zezé e outras mestras do saber ancestral em parceria com pesquisadores. A mestra conta que a formação de redes mineiras de comunidades quilombolas, como a Sapoqui, foi fundamental para se organizar, conhecer seus direitos e lutas similares. Na própria Colônia, foi estabelecida a Associação Aquipaiol, em que é secretária.

É preciso ainda vencer obstáculos envolvendo aplicação de recursos na escola da comunidade, cuidados com a saúde da população negra e posse de terra. “Não mexe com terra, não, Zezé, ou você vai levar tiro”, conta o que ouviu.

Há muitas formas de se proteger, sobreviver e resistir. Em sua comunidade, são trabalhados aspectos da tradição do cuidado familiar da saúde, da congada, do maculelê e da gastronomia local, tendo como o carro-chefe o “frango com ora-pro-nóbis”, planta que pode ser encontrada no Jardim Botânico da UFJF, onde parte das atividades do Encontro ocorreu.

Voz feminina no jongo

“Basta ouvir o tambor e deixar, porque o corpo fala”, define Fatinha (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Fatinha do Jongo é uma das principais referências dessa arte no Brasil. Sua voz pôde ser escutada no Encontro e quem não compareceu pode ouvi-la no álbum “Jongo do Vale do Café”, lançado em setembro de 2023, nas plataformas digitais de música.

“Basta ouvir o tambor e deixar, porque o corpo fala. Qualquer pessoa pode dançar o jongo. Para nós, não é só dançar por dançar, tem que viver o jongo, é muito além”, explica Fatinha. Embora não esteja associado a uma religião, o jongo possui uma dimensão sagrada, sem uma cisão, comum na compreensão de mundo ocidental, entre o terreno material e o espiritual, como destacou Carolina Bezerra.

No jongo da comunidade de Fatinha, há o canto do ponto, acompanhado de dois tambores. A roda responde fazendo coro, e um casal dança no centro, em sentido anti-horário, contornando o círculo. “A gente canta para a terra, a natureza, o vento, a Lua. Há uma saudação inicial ao tambor e, no final, uma despedida dele”, conta a artista.

Em Pinheiral, o jongo é dançado ao som de dois tipos de tambores: o candongueiro e o tambor grande. O uso de um terceiro, chamado de crivador, acabou se perdendo quando um mestre teve problemas na mão. Esse aspecto levantou a questão sobre não só o registro das manifestações culturais ancestrais, como também obstáculos para repassá-las a novas gerações. Mas, através de projetos, sua comunidade ensina crianças, promove eventos em escolas e festas, abordando a história do povo negro, e ergueu uma biblioteca com obras de seus escritores e outras referências.

“O jongo é uma bandeira de luta do povo preto. Através do jongo, conseguimos estar em espaços que não costumávamos estar, como universidades”, ressalta Fatinha, que já se apresentou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e no Rock in Rio.

Jongo como metáfora

Jefinho do Tamandaré apresentou um gurumenta criado por seu avô (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

A Sala São Paulo – outro espaço consagrado à classe alta, predominantemente branca, e à cultura erudita – também já recebeu o jongo, desta vez com Jefinho do Tamandaré. No Encontro de Saberes, ele explicou sobre um tipo de ponto no jongo que é em forma de adivinha, chamado de gurumenta, entre outros aspectos.

O mestre jongueiro apresentou um gurumenta criado por seu avô. Levou 20 anos para desvendarem o lençol a que se referia nos versos cantados: “Comprei um lençol que custou 7 milhão/ Cobriu 7 cidades / E arrastou ponta pro chão”. Jefinho explica que o jongo, patrimônio imaterial brasileiro, trabalha bastante com metáforas até por uma razão estratégica. Quando escravizados dançavam e cantavam, não era apenas para festejar, mas para conversar, planejar fuga, lamentar e cantar saudades da África.

Para quem via de fora, como fazendeiros, o significado poderia parecer algo inocente, apenas festivo. Mas para quem era de dentro sabia do que se tratava. “Isso há 300 anos, sem escola, sem nada. Olha que maravilha”, ressaltou.

O jongo, portanto, como tem frisado os mestres do Encontro, é uma ação social. É cantado e dançado em casamentos, aniversários, batizados, dias de santos juninos e julinos, em uma roda, ritmado por tambores específicos, palmas e dança. Os cantos recebem o nome de ponto, e cada comunidade quilombola foi construindo seu modo de praticá-lo.

E o lençol? Além de apontar a resposta, no jongo, é preciso dizê-la também em versos. Foi assim que um amigo do avô fez. Já a plateia no Encontro de Saberes tentou: suspeitou que se referia a rio, chuva, amor e outras opções. Na verdade, o avô do alto de uma serra, via a cerração chegar como um lençol que cobria as cidades. “O número 7 é de conta de mentiroso, então já tinha uma dica”, ri Jefinho.

3º Encontro

Fatinha do Jongo e Jefinho do Tamandaré durante o 3º Encontro dos Saberes (Foto: Carolina de Paula/UFJF)

Com o módulo “Cultura Quilombola: resistência em festa”, o 3º Encontro de Saberes da UFJF – campus Juiz de Fora chega ao fim. A iniciativa é um curso gratuito tanto para graduação quanto para pós-graduação, sendo também como uma atividade de extensão, por ser oferecido à comunidade externa. As atividades ocorreram no Instituto de Ciências Biológicas (ICB), no Jardim Botânico da UFJF e na Oca JF – Espaço de Mediação, Negociação e Cultura.

Esta edição foi organizada em três módulos: “Povos Indígenas: na brisa da cura”, de 22 a 24 de setembro; “Sociobiodiversidade: salvaguarda dos saberes tradicionais”, de 20 a 22 de outubro; “Cultura Quilombola: resistência em festa”, de 24 a 26 de novembro. Em Governador Valadares, o curso foi oferecido de 18 de agosto a 27 de outubro.

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