
Professora do Departamento de Nutrição, Michele Netto, acredita que a transformação de hábitos alimentares passa pelas políticas públicas, mas, especialmente, por meio da educação para a saúde (Foto: Alexandre Dornelas)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, em 2025, 2,3 bilhões de adultos estejam acima do peso, sendo 700 milhões de indivíduos com obesidade, um dos mais graves problemas de saúde do mundo. No Brasil, essa doença crônica vem aumentando muito nos últimos anos, saltando de 11,8% em 2006 para 24,3% em 2023. Os dados são do Vigitel, sistema de vigilância de fatores de risco para doenças crônicas, que aplica a pesquisa por telefone nas 26 capitais do país e no Distrito Federal.
Vários fatores devem ser observados ao tratar a obesidade, entre eles, alimentação, atividade física e estresse. Nesse sentido, chama a atenção o fato de somente 31,9% da população consumir regularmente frutas e hortaliças. Ainda de acordo com a OMS, a orientação é incluir cinco porções diárias desses alimentos, distribuídos entre as refeições. Na mesma medida, segundo a pesquisa, preocupa a frequência do consumo de ultraprocessados – 17,7% dos entrevistados disseram ter consumido cinco ou mais grupos de alimentos ultraprocessados no dia anterior à entrevista.
Segundo a professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Michele Pereira Netto, a relação dos ultraprocessados com o desenvolvimento de doenças vem sendo evidenciada em diversas pesquisas e, para frear seu consumo, é preciso uma combinação de estratégias. A proibição de certos itens em cantinas e nas merendas, a taxação mais elevada para comercialização dos ultraprocessados ou ainda a nova rotulagem dos alimentos, que evidencia os altos teores de açúcar, gordura e sódio, são políticas importantes, mas que devem vir acompanhadas de educação. Isso porque, “isoladas, todas elas terão uma limitação de seu efeito.”
Grande parte da população faz suas escolhas relacionadas ao custo dos alimentos e embasada em hábitos. Construí-los ou modificá-los leva tempo. “Não adianta proibir o consumo, se a gente não explica quais são as estratégias de substituição, e se a família não dá o exemplo aos filhos”. Mais do que popularizar o termo ultraprocessados, é preciso traduzir que isso significa “descascar mais e desembalar menos”. Veja na entrevista completa explicando por que eles fazem mal à saúde.
O que são alimentos ultraprocessados?
Alimentos ultraprocessados são formulações industriais prontas para consumo, feitas com ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em casa como carboximetilcelulose, açúcar invertido, maltodextrina, frutose, xarope de milho, aromatizantes, emulsificantes, espessantes, adoçantes, entre outros. Salgadinhos de pacote, refrigerantes, bebidas adoçadas, macarrão instantâneo, biscoitos recheados e a maioria dos chocolates são exemplos de ultraprocessados.
Por que os ultraprocessados fazem mal à saúde?
Em função dos ingredientes que os compõem, os alimentos ultraprocessados são nutricionalmente desbalanceados. A formulação desses produtos e sua apresentação, que geralmente é feita em grandes quantidades, incentivam o consumo excessivo e a substituição da comida de verdade.
Os ultraprocessados estão na contramão do que esperamos de uma boa alimentação, que envolve o consumo de alimentos de verdade, com regularidade e com atenção, em ambientes apropriados e com companhia
Muitos dos ingredientes são sintetizados em laboratório e têm como função aumentar o tempo de prateleira, ou seja, estender a duração dos produtos, além de dar cor, sabor, aroma e textura. Essas últimas características os tornam extremamente atraentes e acabam estimulando o consumo excessivo. Normalmente, esses produtos também são feitos para serem consumidos a qualquer hora e lugar, incentivando o ato de comer sem atenção. Todos esses fatores promovem o alto consumo de calorias.
Dessa forma, os ultraprocessados estão na contramão do que esperamos de uma boa alimentação, que envolve o consumo de alimentos de verdade, com regularidade e com atenção, em ambientes apropriados e com companhia. Além disso, as formas de produção, distribuição, comercialização e consumo dos ultraprocessados também afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente.
Quais doenças podem estar ligadas ao seu consumo?

Nutricionistas, como profissionais da saúde, contribuem para o esclarecimento da população quanto aos riscos ligados a uma alimentação desbalanceada (Foto: Alexandre Dornelas)
Existem muitos estudos sobre a relação do consumo de ultraprocessados e o surgimento de doenças e os resultados são alarmantes. O sobrepeso e a obesidade em adultos estão entre as doenças mais estudadas e com alto nível de evidência. Além do excesso de peso, uma grande exposição a alimentos ultraprocessados foi associada ao aumento do risco de doenças cardiometabólicas como hipertensão, diabetes e dislipidemias (alterações de colesterol), de transtornos mentais, entre eles, ansiedade e depressão, de alguns tipos de câncer, doença renal, distúrbios do sono e de mortalidade.
Crianças e adolescentes também correm riscos com o elevado consumo de alimentos ultraprocessados. Vários estudos demonstram associação com transtornos de saúde mental, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, doenças cardiovasculares, distúrbios do sono, síndrome metabólica e potenciais efeitos cancerígenos.
Qual a diferença entre ultraprocessados e processados?
Alimentos processados são produtos relativamente simples, fabricados essencialmente com a adição de sal, açúcar ou, ainda, outro ingrediente de uso culinário como óleo e vinagre. As técnicas de processamento desses produtos se assemelham a técnicas culinárias, podendo incluir cozimento, secagem, fermentação, acondicionamento dos alimentos em latas ou vidros e uso de métodos de preservação como salga, salmoura, cura e defumação. Já os ultraprocessados sofrem mais modificações em relação a sua “versão original” e são adicionados de substâncias para aumentar seu tempo de prateleira e realçar “artificialmente” o sabor e outras características.
Qual a maneira mais fácil de identificá-los na hora da compra?
O Guia Alimentar para População Brasileira descreveu uma forma prática de distinguir alimentos ultraprocessados de alimentos processados: basta consultar a lista de ingredientes que, por lei, deve constar dos rótulos de alimentos embalados que possuem mais de um ingrediente.
Um número elevado de ingredientes (cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias (gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos) indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados.
Uma demonstração simples está presente no Guia sobre escolhas adequadas: “opte por água, leite e frutas no lugar de refrigerantes, bebidas lácteas e biscoitos recheados; não troque comida feita na hora (caldos, sopas, saladas, molhos, arroz e feijão, macarronada, refogados de legumes e verduras, farofas, tortas) por produtos que dispensam preparação culinária (sopas “de pacote”, macarrão “instantâneo”, pratos congelados prontos para aquecer, sanduíches, frios e embutidos, maioneses e molhos industrializados, misturas prontas para tortas); e fique com sobremesas caseiras, dispensando as industrializadas”.
Existem ultraprocessados mais ou menos perigosos?
Não existe essa categorização. A melhor maneira de se proteger é pensar na alimentação de uma forma mais integral e seguir a chamada regra de ouro “prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”.
Qual o percentual de ultraprocessados na alimentação do brasileiro? Esse número tem aumentado?
Na última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017–2018) no Brasil, os alimentos ultraprocessados representaram quase 20% das calorias consumidas. Entre os anos 2008 e 2018, o consumo desses produtos pelos brasileiros teve um aumento médio de 5,5%.
Países em desenvolvimento como o Brasil estão mais suscetíveis ao maior consumo de ultraprocessados? Explique um pouco sobre a relação entre cultura, desenvolvimento socioeconômico e alimentação.
Existe uma relação de mercado, que influencia o consumo de uma forma geral e não seria diferente com os alimentos ultraprocessados. Países como Inglaterra e os Estados Unidos têm um consumo superior ao nosso, isso porque a expansão comercial começou por lá e vai migrando à medida em que precisa ou deseja ampliar o mercado consumidor e o lucro. Assim, os países em desenvolvimento são potenciais mercados consumidores a serem conquistados.
É importante destacar que transformações culturais levaram a mudanças nas nossas práticas alimentares e isso incentivou grandes corporações de indústrias de alimentos a investirem no mercado brasileiro. Com a presença dessas grandes corporações, ampliaram as estratégias para maior consumo de alimentos ultraprocessados.
A pirâmide alimentar ainda é uma referência para a alimentação saudável? Quais estratégias para uma alimentação balanceada?
Não. A pirâmide não é mais utilizada. Vou citar cinco recomendações importantes:
– Para evitar os ultraprocessados (muito disponíveis e cheios de propaganda), faça compras de alimentos em mercados, feiras livres, feiras de produtores e em outros locais com variedade de alimentos in natura ou minimamente processados, dando preferência a alimentos orgânicos da agroecologia familiar.
– Para reduzir os custos com alimentação, dê preferência por legumes, verduras e frutas da estação e produzidos localmente e, quando comer fora de casa, prefira restaurantes que servem “comida feita na hora”.
– Desenvolva, exercite e partilhe habilidades culinárias; valorizando o ato de preparar e cozinhar alimentos.
– Planeje a compra e os cardápios e compartilhe a responsabilidade sobre a alimentação com todos os membros da família.
– Converse e oriente crianças e jovens sobre a publicidade para que entendam que ela serve essencialmente para aumentar a venda de produtos, e não informar ou, menos ainda, educar as pessoas.
Recentemente, o governo federal aprovou recentemente uma redução no percentual de alimentos ultraprocessados permitidos na merenda escolar das escolas públicas. O limite, que era de 20%, passou para 15% em 2025 e, no ano seguinte, cairá para 10%. Como as políticas públicas podem ajudar?
Ações de regulação como medidas fiscais para desestimular a compra de alimentos ultraprocessados, proteção do ambiente escolar contra a alimentação prejudicial à saúde, imposição de limites à publicidade de alimentos não saudáveis direcionada a crianças e a adoção de uma rotulagem nutricional clara, que alerte os consumidores quanto à presença de ingredientes nocivos a saúde da população são estratégias que podem ajudar, mas ainda é preciso maior esforço para que se tenha impacto e redução no consumo.
