“Não existe pensamento filosófico que não passe por uma decisão de estilo.” Com esse argumento, o doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Danilo Souza Mendes de Vasconcellos bebeu nas fontes de Clarice Lispector, Adélia Prado, Joaquín Torres García e Oscar Niemeyer para produzir a tese “Os entrelugares da religião: teoria e epistemologia a partir de Mark C. Taylor”. Com menção honrosa do Prêmio Capes de Teses de 2024, o trabalho debate não só a obra do teólogo estadunidense Mark C. Taylor, mas o modo de se fazer pesquisa em Ciência da Religião.
Desde a graduação, Vasconcellos se dedica a cruzar religião, literatura e arte. Manuel Bandeira e Martin Heidegger; Rubem Alves e Gianni Vattimo – seus projetos colocam a filosofia do norte global frente a frente com artistas do sul. No doutorado, não foi diferente. Ao se debruçar sobre o pensamento de Mark C. Taylor, autor ainda não traduzido no Brasil, o recém-doutor coloca no papel a principal premissa defendida pelo teórico objeto de estudo: a religião é mais interessante nos lugares menos óbvios.
“Isso significa que, num mundo que se organiza em redes complexas, o campo socialmente delimitado para a religião, enquanto uma esfera dentre outras na cultura, é insuficiente para captar seus sentidos, significados e sua amplitude de maneira coerente”, explica na introdução do trabalho.
O doutorado, assim como o mestrado, tiveram orientação do professor Frederico Pieper Pires. “Já no início de sua trajetória de pesquisa, ele revelou uma combinação muito importante: rigor ao tratar das fontes e textos, bem como uma abordagem e escrita muito criativas”, apontou o docente sobre o aluno.
Estudar academicamente religião não é tarefa fácil, conforme define Piepper. “Como abordar adequadamente o fenômeno religioso sem incorrer num discurso teológico e, ao mesmo tempo, sem reduzir a especificidade dessa experiência humana?” Nesse sentido, para o orientador, a tese contribui com o cenário brasileiro de pesquisa, trazendo reflexões epistemológicas que indicam possibilidades contemporâneas de estudo da religião a partir de clássicos.
Leia a entrevista completa de Danilo Vasconcellos para o IdTESES
Quem é Mark C. Taylor e quais são suas principais obras?
Mark C. Taylor é um teólogo e filósofo estadunidense, professor do Departamento de Religião na Universidade de Columbia, em Nova York. Ele assume certa proeminência nos Estados Unidos por recepcionar nos estudos de religião a filosofia pós-estruturalista, sobretudo o pensamento de Jacques Derrida.
Destaco três obras suas como principais: Erring: a Postmodern a/Theology [Errância: uma a/teologia pós-moderna], na qual ele faz uma desconstrução das principais bases da Teologia para propor novos fundamentos desconstrutivos; After God [Atrás de Deus], na qual Taylor propõe uma teoria complexa da religião; e Critical Terms for Religious Studies [Termos críticos para os estudos de religião], obra organizada por Mark C. Taylor, na qual diversos autores e autoras repensam criticamente importantes termos ligados aos estudos de religião, como sacrifício, corpo, experiência e até o próprio termo religião. Acredito que este último livro seja o mais conhecido do público brasileiro, apesar de Mark C. Taylor não ter sido traduzido para o português ainda.
Como você construiu sua trajetória acadêmica e por que escolheu estudar a obra de Mark C. Taylor?
Desde minha primeira graduação, em Teologia, sempre fui muito interessado nas relações entre religião e arte, sobretudo literatura. Mas sempre me incomodei com um tipo específico de aproximação, aquele que prevê, de antemão, que a arte é uma resposta humana a um problema religioso.
Quando o professor Frederico Pieper, meu orientador de mestrado e doutorado, me apresentou Mark C. Taylor, intui que ali haveria uma chance de eu resolver esse incômodo, investigando a relação entre religião e arte em uma chave não teológica, isto é, articulando elementos históricos e discursivos sem pressupor que existiria no ser humano uma vontade intrínseca de contato íntimo com deuses. Acredito que cheguei na obra de Mark C. Taylor buscando justamente isso: um jeito de pensar religião e arte a partir da Ciência da Religião, e não da teologia.
Paralelamente a esse interesse, também busquei pensar teoricamente as relações entre religião e política, tema de minha pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal da Paraíba, que estou finalizando agora.
Você diz que a principal tese de Mark C. Taylor é de que a religião é mais interessante nos lugares em que ela é menos óbvia. Que lugares são esses?
A religião, via de regra, é tratada em seus “lugares” tradicionais: igrejas, terreiros, mesquitas, sinagogas, templos etc. Mark C. Taylor se propõe a pensar sobre a religião nos lugares onde se pensa que ela não está: nas passarelas de moda, nos projetos de arquitetura, nos palcos e telas da cultura pop, nos congressos de divulgação científica, nas exposições de artes plásticas etc. Nesses lugares, a religião é mais interessante porque ela se faz presente nas brechas, nos vãos que permaneceram abertos.
Como é possível perceber a religião fora dos espaços tradicionalmente reconhecíveis?
A religião é identificável nestes pontos por meio de um olhar treinado, justamente o olhar do/da cientista da religião. Por exemplo, há uma cena do filme O poço, de 2019, em que o protagonista está à beira da morte, ensanguentado, e olha para cima procurando alguma esperança. A posição da câmera e a iluminação da cena remetem diretamente à arte sacra sobre a crucificação de Jesus. Essa associação pode passar despercebida por um espectador comum, mas não passa por um cientista da religião.
Meu foco na tese foi apresentar isso de modo teórico, mas outras pesquisas já têm apresentado esse tipo de relação na prática. É o caso da excelente tese de doutorado de Raquel Turetti Scotton “Ô Abre Alas! Os pretos-velhos e as pretas-velhas vão passar! Ancestralidade e resistência nos sambas de enredo do carnaval carioca (2018 a 2020)”. A religião está também no sambódromo, um lugar nada óbvio para ela.
Em uma analogia ao jornalismo, você parece, assim como nós, interessado em saber “o que”, “onde” e “como”, entre outras perguntas que levam por questionar os estudos feitos na Ciência da Religião. Por que isso é importante? Acredita que é preciso outras formas de entender as religiões ou de produzir ciência na contemporaneidade?
Acredito que essas três perguntas foram fundamentais na minha tese: o que é religião? Onde está a religião? Como estudar a religião? No meu ponto de vista, essas são as questões mais fundamentais para a Ciência da Religião.
É certo que, para a maioria de nós, pesquisadores/as da área, essas questões estão pressupostas e não precisam ser debatidas a todo momento – assim como um biólogo não discute em todas as pesquisas o que é vida. O que tentei captar com a tese é a articulação intrínseca entre essas questões: quando trocamos a resposta sobre “o que é religião?”, trocamos também o modo como a estudamos.
Acredito que um dos pontos que deve diferenciar a Ciência da Religião de outros campos de estudo, como a sociologia, a antropologia, a história e a filosofia, que também podem estudar a religião, é a abordagem não redutiva de seu objeto.
Para fazer Ciência da Religião na contemporaneidade, acredito que devamos ter um olhar que busca compreender as religiões em seus contextos, relações e historicidade – e não dizer que elas são fruto de um problema externo a elas, como a situação econômico-social, as necessidades psíquicas por segurança, ou mesmo o nível de desenvolvimento intelectual.
Você usa da literatura e das artes para explicar conceitos filosóficos da tese. Por que a escolha? Como essas áreas estão conectadas?
Um dos grandes filósofos da modernidade, Søren Kierkegaard, apontava que forma e conteúdo estão intrinsecamente conectados: no fim das contas, um determina o outro. Esse é um pensamento que carrego sempre comigo, até mesmo quando penso em meu estilo pessoal. Quando comecei a escrever a tese, percebi que, por seu conteúdo, sua forma não poderia seguir a tradição filosófica de um tratado. Se o estilo determina o conteúdo, eu não poderia deixar de me aproximar das artes – justamente o lugar onde a forma é o conteúdo. Imagine como seria diferente se, em vez de usar seu traço marcante, Van Gogh pintasse um girassol de forma usual. Então, me aproximei das artes, por um lado, para dar voz a artistas do sul global, como Clarice Lispector, Adélia Prado, Joaquín Torres García e Oscar Niemeyer, e por outro, para transmitir ao leitor que não existe pensamento filosófico que não passe por uma decisão de estilo. Podemos tentar suprimir o estilo ou abraçá-lo. Eu optei pelo segundo.
Você diz que há silêncios culturais na obra de Taylor. Quais são eles?
Mark C. Taylor faz coro com um tipo de pensamento muito importante na história da filosofia, a desconstrução, que abriu caminhos para que diversos autores e autoras tirassem do centro da discussão questões puramente abstratas e recolocassem a ética neste lugar. Entretanto, em sua obra há muitos silêncios: ao buscar os lugares da religião, Taylor se volta majoritariamente a produções culturais do norte global, ignorando a arte de povos nativos americanos, por exemplo.
A insistência [do autor] em privilegiar artes eurocentradas me impeliu a fazer uma crítica a ele a partir da decolonialidade: é importante pensar em nossos artistas e em nossos povos e não apenas repetir os discursos que ajudaram a legitimar a invasão de nossas terras.
Por que é importante apontar a perspectiva decolonial na Ciência da Religião?
A decolonialidade me parece ser o passo que a desconstrução (citada acima) não consegue dar por ainda estar muito comprometida com o norte global e seus projetos de poder. Acredito que o grande desafio decolonial hoje na Ciência da Religião seja pensar teorias da religião que não partam do modelo epistemológico europeu, que coloca a racionalidade como centro de qualquer instituição, inclusive das religiões. Isso inclui levar a sério e refletir sobre metodologias do sul global para o estudo das religiões e dar voz a discursos marginalizados sobre o que é religião. Hoje, esse último ponto me interessa bastante.
Danilo Souza Mendes de Vasconcellos
Faz estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba. Doutor e mestre em Ciência da Religião na UFJF, com bolsa Capes. No doutorado, pesquisou a relação entre teoria da religião e epistemologia da Ciência da Religião a partir da filosofia de Mark C. Taylor. No mestrado desenvolveu, sob orientação de. Frederico Pieper, na linha de pesquisa de Filosofia da Religião, pesquisa sobre linguagem religiosa. Dedica-se, também, a pensar os lugares entre literatura, filosofia e religião e as possibilidades epistemológicas desses encontros. É bacharel em Teologia, pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro, e em Filosofia pela UFJF.