Os primeiros sinais são comuns: febre, calafrios, dor de cabeça, fadiga, mal-estar e tosse. Em uma consulta médica, esses sintomas são frequentemente atribuídos a gripes, viroses ou à dengue. Contudo, o que muitos desconhecem é que essas manifestações também podem indicar a presença de uma zoonose mundial pouco divulgada: a febre Q.
Causada pela bactéria Coxiella burnetii, a doença é transmitida aos seres humanos principalmente pela inalação de partículas de poeira contaminadas por animais infectados, como ovelhas, cabras e gado. Apesar de sua seriedade, a doença ainda é pouco conhecida na prática médica, conforme revela uma pesquisa de pós-doutorado em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Um artigo com resultados da pesquisa foi publicado recentemente no periódico Scientia Medica.
Mais de 90% dos médicos não conhecem a doença
O estudo, conduzido pelo farmacêutico e doutor em saúde, Igor Meurer, durante o pós-doutorado em Imunologia e Doenças Infecto-Parasitárias, é pioneiro na avaliação do conhecimento médico sobre a febre Q, sendo o primeiro desse tipo registrado em nível internacional. A pesquisa foi concluída em março de 2024, sob a supervisão da professora do Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFJF, Elaine Soares Coimbra.
A investigação envolveu 254 médicos atuantes em três níveis de atenção à saúde: hospitais, consultórios e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Dos profissionais entrevistados, 236 (92,9%) desconheciam a febre Q. Além disso, 228 (89,7%) não tinham conhecimento clínico, epidemiológico e laboratorial sobre a doença. Dos 26 médicos que afirmaram ter algum conhecimento, apenas 18 acertaram pelo menos uma questão específica na avaliação, e apenas três (16,6%) desses 18 obtiveram um aproveitamento superior a 50% no questionário.
Os dados foram coletados por meio de um questionário estruturado com 25 questões, divididas em duas seções: uma sobre dados demográficos, profissionais e acadêmicos (8 questões), e outra sobre a febre Q, NTD (Neglected Tropical Diseases) e Saúde Única (One Health), que aborda a integração da saúde humana, animal e ambiental (17 questões).
“Realizamos o questionário presencialmente para garantir que os médicos não recorressem a ajuda externa, como a internet. A construção estratégica do questionário visava avaliar o real conhecimento sobre a febre Q. Os resultados foram surpreendentes”, afirma Meurer.
O que se sabe sobre a doença?
A febre Q é uma zoonose causada pela bactéria Coxiella burnetii. Esta bactéria é notoriamente resistente ao ambiente e uma única célula pode desencadear a infecção em humanos. A principal via de transmissão é a inalação de aerossóis contaminados por restos placentários, lã ou fezes de animais infectados, como bovinos, caprinos e ovinos. A infecção é comumente associada a atividades ocupacionais que envolvem contato com esses animais, como as desempenhadas por veterinários, pecuaristas e trabalhadores de matadouros e frigoríficos.
De acordo com Meurer, a doença pode se manifestar de duas formas: aguda e crônica. Na forma aguda, os sintomas são similares aos da dengue e da influenza. Na forma crônica, a doença pode evoluir para condições graves, como endocardite, osteomielite e infecções vasculares, podendo até levar ao óbito. Além disso, a febre Q tem sido relacionada à síndrome da fadiga crônica. “O quadro clínico da febre Q se assemelha ao de outras febres agudas e, devido ao desconhecimento por parte dos profissionais de saúde no Brasil, é possível que casos da doença não sejam diagnosticados corretamente e, consequentemente, tratados de forma inadequada.”
O diagnóstico da febre Q é realizado por métodos sorológicos, sendo a Imunofluorescência Indireta o padrão de referência, além de técnicas moleculares como a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR). Durante a pesquisa, o pesquisador ainda menciona outras pesquisas que indicam o patógeno presente no Brasil. Por exemplo, uma delas observa uma soroprevalência de 22% em comunidades quilombolas no Paraná, 4,8% em pacientes com suspeita de dengue em Minas Gerais e 23,8% em bovinos de abatedouros em São Paulo.
“Os estudos evidenciam a necessidade urgente de maior divulgação sobre essa zoonose nas faculdades de Medicina, programas de residência e entre os médicos em geral. Além disso, é importante a inclusão da febre Q na lista nacional de doenças de notificação compulsória, o que permitiria uma melhor compreensão da situação epidemiológica no Brasil”, pontua.
Manifestação da doença em Minas Gerais
O tema da pesquisa de pós-doutorado também foi explorado por Meurer durante o doutorado, com um estudo pioneiro no Brasil que investigou o número de casos da febre Q em pacientes com suspeita de dengue em Minas Gerais. Na época, a tese revelou que, entre os pacientes que fizeram parte do estudo, 5,72% apresentaram anticorpos anti-Coxiella burnetii nas amostras de soro, o que significa que tiveram uma exposição prévia ao agente causador da febre Q. O estudo mostra também que os bovinos estão então entre os principais animais relacionados à transmissão da bactéria aos seres humanos.
A tese também destaca que 20 municípios de Minas Gerais, entre os 126 que fizeram parte da pesquisa, tiveram pelo menos um paciente com exposição prévia ao patógeno causador da doença, sendo eles: Arcos; Belo Horizonte; Belo Vale; Brumadinho; Campos Gerais; Cristina; Divinópolis; Igarapé; Lima Duarte; Mariana; Oliveira; Pedro Leopoldo; Rio Piracicaba; Sabará; Santa Bárbara; Santana do Deserto; São José da Barra; Sarzedo; Três Corações; e, Varginha.