Um estudo publicado no American Journal of Public Health revelou que as chances de uma mulher sofrer ferimentos mais graves, mesmo usando o cinto de segurança, é 47% maior que no caso dos homens. Isso porque os equipamentos não foram projetados pensando no corpo das mulheres, que têm estatura e estrutura óssea diferente. Outro artigo, divulgado na Nature Medicine apontou que diferenças sexuais em padrões moleculares podem aperfeiçoar o desenvolvimento de remédios para alívio da dor e depressão. Não faltam exemplos para demonstrar que o gênero na ciência importa, e que a diversidade e ações que promovam a equidade de gênero são essenciais para trazer novos olhares e desenvolver uma ciência de excelência.
Para celebrar o Dia da Mulher, iniciamos neste 8 de março uma série de matérias, lançadas ao longo do mês, demonstrando alguns desses feitos e iniciativas para colocar em prática o quinto dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU): alcançar igualdade de gênero, fortalecer políticas para a promoção da equidade e o empoderamento de mulheres e meninas em todos os níveis. Também lançamos nas redes sociais a campanha “Mulheres que inspiram”. A partir da indicação do público, serão compartilhadas algumas histórias inspiradoras da comunidade acadêmica da UFJF.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), as mulheres são maioria em grande parte dos segmentos. Entre estudantes de graduação, elas já estão em maior proporção há alguns anos. O percentual hoje, segundo número da Pró-Reitoria de Graduação, é de 55% (11.413), contra 45% (9.390) de homens. Na pós-graduação, também estão em maior volume, um movimento que se intensificou nos últimos dez anos. Segundo dados da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp), das 3.880 pessoas com matrículas ativas em programas de pós-graduação, 2.013 são mulheres (52%) e 1.867 homens (48%). Elas também representam o maior volume de bolsistas (Capes, CNPq, Fapemig e bolsas próprias), ficando com 54,5% (455) das bolsas, contra 45,5% (380) deles.
“O fazer científico não é um empreendimento isolado, mas social e cumulativo. Mais do que nunca, enquanto empreendimento coletivo, a ciência se beneficia da diversidade.”
Alice Abreu
Entre os servidores técnico-administrativos em educação, 53% são mulheres (744) contra 47% de homens (659), conforme levantamento da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe). O percentual vai se inverter apenas entre docentes efetivos: do total de 1.757, 52,7% – ou 926 – são homens e os demais 47,3% – 831 – mulheres. Mas ao olhar com profundidade para a carreira científica a longo prazo, os números, até então equilibrados, tornam-se discrepantes.
Os dados sobre as bolsas de produtividade do CNPq recebidas na instituição – que é a bolsa de mais prestígio do sistema e um importante parâmetro para avaliação da evolução da carreira no ensino superior –, mostram que a instituição conta com 135 docentes com esta modalidade, sendo apenas 26% mulheres. De 2015 para cá, enquanto elas cresceram de 31 para 35 bolsistas, os homens saltaram de 69 para cem.
Segundo a diretora da Comissão de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento da ONU do GenderInSITE (programa internacional para promover a equidade de gênero na ciência), Alice Abreu, é preciso olhar para a estrutura do sistema, já que um fenômeno muito comum é que, em momentos decisivos da carreira acadêmica, muitas mulheres desistem, ocasionando uma real perda de talentos nas universidades. “Não é à toa que os estudos sobre mulher e ciência falam no ‘cano que vaza’. Se no acesso (de mulheres ao ensino superior e pós-graduação) o Brasil parece ter progredido de forma importante, na questão das mudanças estruturais estamos ainda engatinhando.”
Na palestra “Trazendo a interseccionalidade para a ciência”, a pesquisadora destaca que a igualdade de gênero traz benefícios para a pesquisa e inovação, melhora a qualidade e relevância da pesquisa, atrai e mantém talentos e assegura que todos possam maximizar seu potencial. “O fazer científico não é um empreendimento isolado, mas social e cumulativo. Mais do que nunca, enquanto empreendimento coletivo, a ciência se beneficia da diversidade. É preciso impulsionar mudanças estruturais nas instituições científicas para promover uma igualdade de gênero em universidades, laboratórios e demais centros de pesquisa.”
Nos primeiros anos da pandemia da Covid-19, esse cenário de desigualdade ficou ainda mais evidente, conforme mostrou levantamento realizado em 2020 pelo Movimento Parent In Science. Segundo a pesquisa, 52,6% das pesquisadoras mulheres com filhos não conseguiram submeter artigos conforme planejado. Entre as mulheres negras com filhos, esse índice é ainda maior: sobe para 53,5%. Já entre homens com filhos, o percentual dos que não conseguiram produzir é de 34,7% e homens sem filhos, 24%. Números que dão visibilidade para as dinâmicas do cuidado e evidenciam sobre quem a sobrecarga incide mais intensamente.
Apesar de algumas medidas pontuais à época, como extensão de prazos para submissão de trabalhos e avaliação de produção científica de períodos estendidos, muitas ações retrocederam, como aponta a integrante do Parent in Science e pesquisadora do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFJF, Zélia Ludwig.
“É preciso que sejam abertos editais com programas que permitam que as mulheres possam realizar suas pesquisas, equipar seus laboratórios, participar de eventos nacionais e internacionais, criar redes de colaboradores, participar de programas de capacitação em grandes centros de pesquisas nacionais e internacionais. É necessário convidar e aceitar a presença das mulheres nos comitês de avaliação e nos espaços de tomada de decisão e poder. Muitas vezes o trabalho e a contribuição das mulheres na ciência não têm a visibilidade que deveriam.”
Para a pesquisadora, é preciso ir além do debate, com a realização de levantamento de dados sobre a desigualdade para subsidiar iniciativas em comitês de avaliação e promover a criação de políticas públicas mais eficazes. “As agências de fomento, as entidades, instituições, universidades e a sociedade como um todo precisam se unir de forma efetiva para combater as questões estruturais que contribuem para as desigualdades de gênero e étnico-raciais. Problemas como o racismo, o sexismo, a violência contra a mulher, o preconceito, a falta de respeito precisam ser combatidos por todos. Toda a sociedade precisa estar comprometida com essas mudanças. E é preciso entender que as diferentes trajetórias são escritas de formas diversas.”
O teto de vidro está embaçado
Os números referentes à trajetória docente também apontam para o fenômeno do “teto de vidro” segundo o qual haveria uma barreira invisível impedindo que as mulheres chegassem a postos com maior poder de decisão, às principais bolsas e a cargos de liderança, já que as dinâmicas da carreira acadêmica supostamente seriam iguais para todos os gêneros. Mas para a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e professora do Departamento de Psicologia, Juliana Perucchi, já tem “folhas e lama neste teto”. “As mulheres estão em muitas desvantagens em relação aos homens que, por sua vez, lançam mão de uma série de privilégios. E, não estamos tratando apenas de salários menores para mulheres em mesmas funções e carreiras executadas por homens ou violência sexual, para ficar nos exemplos mais conhecidos.”
A pesquisadora, que tem refletido sobre as desigualdades de gênero na academia, destaca que as estruturas são complexas e interpõem vários e diferentes elementos que precisam ser alvo de investimento do estado por meio de políticas públicas intersetoriais. “Cabe a nós, universidades federais, produzir conhecimento e tecnologia para isso. Mas, tudo começa olhando para si. Perceber a misoginia institucional que atravessa as instituições universitárias e acadêmicas pode ser um bom começo.”
Mudanças na estrutura para mudança no imaginário
Apesar de as mulheres integrarem boa parte da comunidade científica em todo o mundo, a ciência ainda está muito associada a ideias e pesquisas desenvolvidas por homens no imaginário. E não é um fenômeno só do Brasil. Desde os anos 1960, um estudo feito nas escolas públicas dos Estados Unidos pede que crianças desenhem uma pessoa que trabalhe como cientista. A ideia é analisar a percepção delas sobre a ciência, verificar os estereótipos associados e a compreensão que têm da área. Nos primeiros anos de estudo, a representação de mulheres cientistas era raridade, menos de 1%. Hoje, chega a 28%, mas um índice ainda muito baixo.
Este imaginário, contudo, não está restrito às crianças. “A ciência, assim como a política, pode ser compreendida como um espaço social historicamente construído como masculino, embranquecido, impondo barreiras, mais ou menos visíveis, à entrada de novos integrantes. As experiências masculinas, cis, brancas, heterossexuais são associadas a pautas universais de quem faz a ciência, constitutivas da normatividade, da lógica, do padrão ‘do quem’ da ciência”, analisa a professora da Faculdade de Direito e uma das diretoras da Associação dos Professores do Ensino Superior (Apes-JF), Joana Machado.
E dentro desta normatividade, a maternidade aparece como uma experiência “guetificada”, como produtora de pautas específicas. “Ainda que hoje muitas mulheres mães consigam construir carreiras acadêmicas promissoras, fazer ciência, seguem tendo que, na dimensão individual, lidar com o que acaba sendo lido como obstáculo à sua permanência no campo, a maternidade – as tarefas de cuidado culturalmente atribuídas quase de forma exclusiva a mães. Em outras palavras, é como se a maternidade precisasse ser mantida em um armário para aceitação e permanência desse agente científico.”
“É como se a maternidade precisasse ser mantida em um armário para aceitação e permanência desse agente científico.”
Joana Machado
A professora também observa violências muito frequentes que permeiam as estruturas na academia. “Ao retornarem de períodos de licença maternidade, um direito duramente conquistado, não raro são brindadas com a atribuição de tarefas administrativas, disciplinas e horários enjeitados por colegas, como se estivessem em dívida. A maternidade segue sendo uma experiência considerada exógena à academia, no máximo tolerada e desde que discreta, vaga, abstrata. Enquanto não for compreendida como uma realidade concreta, própria de quem também faz ciência, nunca será devidamente acolhida. Sem esse acolhimento, a permanência de mães na ciência estará sempre ameaçada.”
Falta de reconhecimento
Historicamente afastadas desse imaginário na pesquisa e liderança, é sintomático que somente em 2019, há apenas quatro anos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) tenha instituído sua primeira premiação em nome de uma mulher cientista, o prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher, lembra a coordenadora geral da Associação de Pós-Graduandos da UFJF, Dalila Varela Singulane. Segundo ela, apesar dos avanços no ingresso de mulheres na pós-graduação e entre bolsistas, ainda há um abismo de desigualdade em áreas tradicionalmente ligadas ao gênero masculino, como nas Engenharias, Exatas e Ciências da Terra. “Esta situação é causada pelo enraizado pensamento patriarcal, que em geral reserva aos homens os papéis mais ligados ao pensamento lógico, racional e de liderança enquanto as mulheres ficam mais restritas às áreas relacionadas ao cuidado, afeto e subserviência.”
Para a diretora de Mulheres do DCE-UFJF , Leiliane Germano, a permanência das mulheres é outro fator que precisa ser pensado dentro das iniciativas para promover equidade nas instituições. “Para isso é importante se perguntar: estamos tendo mais mulheres na universidade, mas as mesmas estão tendo condições de permanecer e ter uma vida acadêmica igual a dos homens? As alunas mães estão tendo políticas de assistência suficientes caso engravidem? As mulheres que estão entrando estão se formando dentro do tempo esperado? Lanço essas questões para refletirmos o quanto a vida da mulher no Brasil é perpassada por vários fatores sociais que muitas vezes a permitem entrar em uma universidade pública, mas a impedem de se formar ou de exercer a profissão que escolheram plenamente.”
Dalila e Leiliane também fazem coro sobre a necessidade de olhar para a interseccionalidade ao pensar políticas públicas. “É necessário observar que o machismo é muito maior se a situação envolve mulheres negras e indígenas. É urgente que políticas públicas sejam ampliadas para que esses grupos, principalmente as mulheres, possam entrar, permanecer na pós-graduação e ocupar espaços de poder”, diz Dalila. Para Leiliane, “só vamos ter realmente um espaço de equidade quando houver discussões que se aprofundem em todas as questões que atravessam a vida das mulheres e isso envolve desigualdade social, permanência na universidade de forma tranquila e segura, acesso à informação, combate à violência contra mulher.”
Relembre: A ciência precisa delas