“A educação, sozinha, não faz as coisas todas, mas, sem ela, as coisas todas não podem ser feitas. O bem do trabalho da educadora, do educador, é exatamente saber que pode fazer alguma coisa e insistir, não deixar que a educação descanse, fustigar, catucar a educação para que ela possa possibilitar o cumprimento de alguns dos nossos deveres.”
(Paulo Freire)

Antes mesmo de entrar no ensino superior, de escolher o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Leonardo Silva Andrada já tinha em mente qual seria sua profissão. A mãe foi professora de música durante a vida toda e o pai também esteve nas salas de aula por um período. Fora de casa, no ensino médio, a influência veio de um professor de História. E, já na faculdade, o estilo de aula de um professor de Antropologia fez com que a vontade aflorasse, mesmo que inconscientemente.

Para Andrada, momento é de precarização da carreira de professor e das condições de trabalho e de ensino  (Foto – Carolina de Paula/UFJF)

Desde 2010, Andrada é docente do curso de Ciências Sociais, no Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A partir de 2017, tornou-se atuante na Associação dos Professores de Ensino Superior (Apes) da UFJF. Esteve presente na diretoria entre 2020 e 2022, e, no dia 30 de setembro deste ano, foi empossado presidente da entidade, que hoje tem em torno de mil associados.

Neste 15 de outubro, Dia do Professor, Andrada reflete sobre o papel da docência na sociedade e da Apes, como entidade de defesa de interesses dos docentes de ensino superior. “A nossa associação é uma das entidades locais do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Estamos aqui para lutar, por exemplo, pela remuneração dos professores, que é uma de nossas reivindicações recentes, além da garantia de reposição dos orçamentos das universidades.”

Qual a reflexão que podemos fazer sobre os cortes orçamentários recentes no cotidiano do corpo docente da UFJF?
Uma das nossas lutas atuais é a questão salarial. Não estamos pedindo aumento de salário, mas a reposição da inflação. Outra reivindicação é a garantia da recomposição dos orçamentos das universidades. Quando o governo corta recursos, as nossas condições de trabalho são precarizadas e isso se reverte em um serviço oferecido à população de má qualidade. O cidadão não tem noção disso. Por exemplo, quando falta recurso para a Farmácia Popular, ou para a Clínica Odontológica, ou para quaisquer serviços oferecidos dentro da Universidade, esse cidadão não tem ideia do que faz com que tais serviços fiquem ruins. Temos que operar em um cenário em que a Universidade está trabalhando com um orçamento que representa metade do que era empregado em 2015. A Universidade tenta ampliar o atendimento à comunidade, aumentar o número de vagas, mas operando com um orçamento que, anualmente, é reduzido. Por isso, temos feito malabarismos para manter a instituição funcionando, porque sabemos a relevância que a UFJF tem para a cidade. A gente, como professor, tem essa tarefa, o compromisso de dedicação ao bem público e à formação de cidadãos. Isso está muito acima de questões particulares-financeiras. Do ponto de vista da retribuição, outras funções, no mercado privado, que dependem até de menos tempo de dedicação e formação, poderiam ser inclusive melhor remuneradas. Mas a gente tem essa conexão com o papel da universidade pública.

Se você pegar o que eram as aulas de Ciência Política em décadas atrás, os textos escritos e publicados nessa área, vai ver que eram os mesmos temas. Vivíamos um outro momento da sociedade e não havia o risco de, por exemplo, alguém me filmar dentro de sala de aula e dizer que o que estou fazendo é doutrinação.

Mesmo sendo presidente da Apes, o senhor continua atuando como docente no curso de Ciências Sociais. Essa situação crítica atual se reflete em sala de aula?
Sempre tomo muito cuidado, principalmente porque sou da área de Ciência Política. Nos tempos bicudos que estamos vivendo, me preocupo porque as pessoas acham que o que fazemos dentro de sala de aula é militância política. Se você pegar o que eram as aulas de Ciência Política em décadas atrás, os textos escritos e publicados nessa área, vai ver que eram os mesmos temas. Vivíamos um outro momento da sociedade e não havia o risco de, por exemplo, alguém me filmar dentro de sala de aula e dizer que o que estou fazendo é doutrinação. Então, repito: tomo muito cuidado para que minhas tarefas como professor e militante não se misturem. Mas, ao mesmo tempo, pela minha concepção do que é ser professor, do que é ser cidadão e de para que servem as Ciências Sociais, também não posso deixar de focar na formação dos alunos e futuros cientistas sociais. As questões da sociedade de agora são assuntos das aulas. É por isso que me dedico à minha formação permanente, porque quero desempenhar meu papel da melhor maneira possível. Uma das disciplinas que ofereço é Pensamento Social Brasileiro e as aulas trazem uma reflexão sobre o que é o povo e a cultura brasileira, sobre governos e projetos de desenvolvimento. Dentro dela, textos da década de 70, por exemplo, ajudam a refletir sobre o Brasil que temos hoje.

Acredito que ficou evidente como são inviáveis os projetos que pretendem acabar com as aulas presenciais e transformar tudo em on-line. É uma dinâmica completamente diferente. Não há possibilidade de trocas de experiências, de socialização e de outros elementos que fazem parte da vida de uma universidade quando se está em casa com uma câmera ligada.

No meio de tudo isso, ainda vivemos a pandemia da Covid-19. Como está a saúde mental dos nossos docentes, a partir da sua observação?
Existe um sentimento de alívio ao poder voltar a circular e encontrar com as pessoas sem tanto terror. Mas, durante todo o período do Ensino Remoto Emergencial (ERE), esse sempre foi um tema bastante recorrente em nossas reuniões, em conversas privadas. Havia um sofrimento com o isolamento, um medo constante para consigo e para com familiares. As pessoas estavam morrendo como moscas. Então, no começo de todo o processo do ERE, muitos de nós estavam apavorados. Tenho 25 anos de magistério e me preocupo em dar uma boa aula. Dizia para meus alunos: passei em um concurso para ser professor e agora terei que virar youtuber? Nas minhas primeiras aulas, claro que patinei, mas depois encontrei uma dinâmica que funcionasse para mim e para os alunos. Dava aula ao vivo, e depois disponibilizava as gravações. Mas foi pesado sair de sala de aula e perder o contato. Acredito que ficou evidente como são inviáveis os projetos que pretendem acabar com as aulas presenciais e transformar tudo em on-line. É uma dinâmica completamente diferente. Não há possibilidade de trocas de experiências, de socialização e de outros elementos que fazem parte da vida de uma universidade quando se está em casa com uma câmera ligada. Felizmente, pudemos superar o período mais crítico e catastrófico, mas, de fato, deixou um saldo bastante negativo para a saúde mental dos professores.

O senhor acredita em um sistema de ensino híbrido?
Ele pode ser funcional se não for usado como subterfúgio para eliminar progressivamente a presença do professor, se for garantido que será mantida a presença física e os processos de socialização que garantem o aprendizado. Se fosse equivalente, não precisava ter professor. O papel do docente vai além de repetir o que está escrito nos livros. Um professor consegue identificar pelo comportamento do aluno se a aula está funcionando, se a turma está acompanhando. Nós, que temos um envolvimento com a atividade docente, nos preocupamos muito com isso. O modelo híbrido pode cumprir um determinado papel, principalmente considerando que a vida universitária vai para além das salas de aula, com atividades extracurriculares. Neste sentido, o sistema híbrido cumpriria um papel importante.

A Universidade está ficando vazia, por conta dos cortes de bolsas e auxílios. (…) Moro ao lado do campus e faço o caminho do ICH para casa sempre. Antes da pandemia e dos cortes, nos horários pós-aula, via-se uma legião de estudantes andando em direção aos pontos de ônibus ou às repúblicas do bairro São Pedro. Hoje, as aulas terminam e é um vazio. É uma cena muito triste.

E como observa o comportamento dos nossos alunos neste retorno?
É nítido o impacto que a pandemia teve, mas é impossível falar sobre o retorno presencial dissociando da situação dos cortes orçamentários. A Universidade está ficando vazia, por conta dos cortes de bolsas e auxílios. Estamos perdendo alunos porque eles não conseguem se manter na Universidade. Moro ao lado do campus e faço o caminho do ICH para casa sempre. Antes da pandemia e dos cortes, nos horários pós-aula, via-se uma legião de estudantes andando em direção aos pontos de ônibus ou às repúblicas do bairro São Pedro. Hoje, as aulas terminam e é um vazio. É uma cena muito triste. E outro aspecto que levanto é que muitos só tiveram contato presencial com a Universidade na metade do curso, o que dificulta o comportamento deles dentro de sala de aula. Então, eles também passaram por adoecimentos variados, em uma fase da vida na qual precisam de convívio, de troca, de consolidação de referências e valores. Por fim, como membro de uma entidade política, lido também com os estudantes ligados ao movimento estudantil e percebo que esses jovens também têm tido dificuldades, porque eles não passaram por esse aprendizado de dividir tarefas, de militar. Enfim, a pandemia e o isolamento social, por dois anos, levaram nossos estudantes a não viverem processos que conduzem ao amadurecimento.

Me esforço muito para deixar claro para meus alunos como é enorme a responsabilidade de estar em uma instituição pública, tanto a minha, como servidor, quanto a deles, como alunos. Parte do salário dos trabalhadores deste país é destinada à manutenção deste espaço. Então as pessoas precisam ter muito clara a responsabilidade que elas têm com a sociedade em geral.

Diante de tudo isso, o que significa ser professor para o senhor?
Ser professor hoje é continuar apegado a um valor mais alto de contribuição com a formação de cidadãos para a sociedade, para muito além da formação específica profissional. É imprescindível saber que a formação técnica é uma parte da nossa tarefa. A outra, a formação global como membro de uma sociedade. Me esforço muito para deixar claro para meus alunos como é enorme a responsabilidade de estar em uma instituição pública, tanto a minha, como servidor, quanto a deles, como alunos. Parte do salário dos trabalhadores deste país é destinada à manutenção deste espaço. Então as pessoas precisam ter muito clara a responsabilidade que elas têm com a sociedade em geral. O papel dos professores de uma universidade pública é ter a noção de que ele é mantido como funcionário da sociedade, para a qual ele deve lutar. Nas condições que vivemos agora, essa é uma tarefa árdua, porque vivemos um momento muito difícil, de intensa precarização da nossa carreira e das nossas condições de trabalho. Mas precisamos seguir com nosso papel de formadores para que as pessoas reconheçam nosso trabalho.