Pesquisador Marcelo da Silveira apresenta estudo na Conferência Internacional: Punição nas Periferias Globais, de Oxford. (Foto: Carolina de Paula)

A polícia e o judiciário reproduzem a desigualdade existente no Brasil desde a fundação do país. Esse é o diagnóstico do professor Marcelo da Silveira Campos, do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em conjunto com os pesquisadores Marcos César Alvarez e Fernando Salla, da Universidade de São Paulo (USP), Campos escreveu um dos capítulos do “Handbook of Crime and Inequality”, a ser lançado em agosto com trabalhos de docentes brasileiros e de países como Inglaterra e Canadá. Com o título: “Crime, Punishment and Inequality in Brazil: reflections from the Global South” (em tradução livre “Crime, Punição e Desigualdade no Brasil: reflexões do Sul Global”), o estudo foi apresentado na Segunda Conferência Internacional – Punição nas Periferias Globais, realizada no começo do mês de julho pelo Centro de Criminologia da Universidade de Oxford, na Inglaterra. 

Marcelo Campos também é pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos em Violência e Direitos Humanos (Nevidh) da UFJF. Em entrevista à equipe de Divulgação Científica da Diretoria de Imagem Institucional da UFJF, ele fala sobre a desigualdade no Brasil e as ações reiteradas para a manutenção dessa conjuntura. 

UFJF: Você, junto a dois professores da USP, apresentou um trabalho em um seminário da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Sobre o que exatamente foi a exposição?  

MC: A apresentação foi realizada em um evento internacional com diversos pesquisadores nesse tema – crime e punição – do mundo todo. Havia trabalhos sobre países como Brasil, Argentina, México e Irã. Então foi um evento bastante interessante de pensar essa questão – crime e punição em uma perspectiva global. Foi um convite para os três autores e eu fui incumbido de fazer essa apresentação representando o nosso capítulo, que vai sair em um handbook sobre desigualdades. Essa publicação sairá no próximo mês. É um trabalho, do ponto de vista internacional, bastante inovador. 

UFJF: É possível dizer que há na comunidade científica internacional uma atenção maior sobre os estudos criminais do Sul Global? 

MC: Me parece que a partir dos anos 1980, sobretudo 1990, aumenta o interesse sobre como o Sul Global produz conhecimento a partir do seu contexto específico, colocando até teorias internacionais de criminologia em xeque. Como exemplo, apontamos que o Brasil tem um alto índice de presos e presas, mas não exatamente como os Estados Unidos e a Inglaterra. O estado penal não é igual nos três países. Isso se justifica por questões como uma abolição da escravidão recente, por sermos uma república bastante nova, um regime de justiça criminal com muitos antecedentes de autoritarismo e até com o início das universidades no Brasil, que tem a ver com a Medicina e o Direito, quando há a presença de ideias influenciadas pela teoria racialista, de que a desigualdade seria inerente à sociedade e colocada na própria lei. 

Essas teorias estão presentes já nos primeiros códigos – instaurando a desigualdade jurídica e reforçando a desigualdade social. O artigo tem, basicamente, dois eixos: os dados sobre quem no Brasil é preso, em termos de desigualdades racial, de gênero, de tipo de crime e, por outro lado, a ideia de que essas teorias evolucionistas continuam nos códigos criminais durante a República. 

UFJF: Então podemos afirmar que os sistemas policial e judiciário perpetuam uma lógica existente desde a constituição da nação brasileira?

MC: Exatamente. Nós chamamos no texto de “Reprodução das Desigualdades” e “Reprodução da Dominação”. São dois objetivos que reproduzem a dominação e a continuidade da desigualdade. Um é a aplicação da lei de uma forma desigual. O outro fator é a influência da desigualdade na concepção das formulações das leis e códigos criminais. Portanto, temos um duplo processo de instauração da desigualdade: baseada no ponto de vista de classe, raça e gênero nas práticas do sistema de justiça criminal e, ainda, na formulação de leis de um ponto de vista desigual desde o início da República até a atualidade. 

UFJF: A política antidrogas tem papel efetivo na manutenção dessa desigualdade? 

MC: Certamente. Esse foi o tema da minha tese de Doutorado (“Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo”). Nós temos 30% da população carcerária brasileira presa por drogas em uma política que prometia, a partir de 2006, diminuir o número de presos por esse motivo. Na época, esse número era menor – a gente saltou de 12% para 30% em 2020, com uma lei aprovada para diminuir esse número. 

Isso acontece por vários fatores. Um deles é pela política antidrogas ter acabado com a pena de prisão, mas seguir a criminalizar o usuário, de acordo com o Artigo 28 do Código Penal. E, ao mesmo tempo, aumentou a pena mínima para o tráfico de drogas. Quando no Brasil se acaba com uma pena, reforça-se outro tipo de pena. Houve um não deslocamento para a saúde pública, mas sim um deslocamento para a prisão, ainda que a prisão não seja mais o objetivo da própria lei. 

UFJF: Voltando ao trabalho sobre o sistema criminal do Sul Global, outra questão abordada é a mudança nas dinâmicas de crime e punição nesses países ao longo das décadas. Quais foram essas mudanças?

MC: No início, na transição para a República e o período pós-Abolição da Escravatura, temos os primeiros códigos criminais do Brasil. Nesses códigos, tentou-se colocar igualdade no tratamento penal no país. Ao mesmo tempo, os formuladores tiveram a influência dessas ideias racialistas e evolucionistas sobre a criminalidade. Então desde o início, por exemplo, as prisões dos chamados vagabundos, bêbados, prostitutas, estavam previstas nos códigos criminais e sempre fazendo o papel de articular a desigualdade. Esse é o primeiro momento que marcamos no texto. 

O segundo vem com a instalação do Estado Novo (1930-1945), um período de início da expansão das favelas nos grandes centros e a formação das primeiras milícias paramilitares, esquadrões da morte – grupos extralegais para colocar ordem nesses territórios. Nos anos 1960 e 1970 há uma espécie de continuidade disso, mas os estudos têm foco no aumento da pobreza. Não exatamente sobre crime e punição, mas sobre marginalidade social. Na virada da década de 70 para a de 80, começam os grupos organizados. Nesse contexto final da ditadura, tem início o Comando Vermelho (CV). No texto, articulamos esse momento como uma virada para a chegada dos grupos organizados e o varejo de drogas. Nos anos 1990 houve a expansão desse mesmo modelo, mas agora muito mais articulado, em São Paulo, sobretudo com o Primeiro Comando da Capital (PCC). 

Os anos 80 e 90 marcam o surgimento desses grupos, o estudo sobre eles e o advento dos chamados Estudos Prisionais. Então é aí que começa nesta grande área – Crime e Punição – o foco no Brasil e os estudos sobre as prisões. E nos anos 2000, a gente identifica três grandes tendências: uma nos estudos sobre políticas públicas e segurança, a segunda é sobre violência e sociabilidades e, por último, os estudos sobre prisão.

Pesquisa está alinhada aos ODS da ONU

A Coordenação de Divulgação Científica da Diretoria de Imagem Institucional, em parceria com a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp), está promovendo uma estratégia de fortalecimento das ações de pesquisa da Universidade, mostrando que estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Os ODS são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. 

A pesquisa apresentada nesta matéria está alinhada com os ODS 5 (Igualdade de gênero), 10 (Redução das desigualdades) e 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes). Confira a lista completa no site da ONU.