Para Cláudia Viscardi, as universidades têm papel transformador em prol de país mais igualitário (Arte: Carolina de Paula/Gian Rezende)

“Desejo que os jovens continuem a esperançar. Que acreditem na ciência e na educação como instrumentos de transformação social para todos e todas.” A aspiração é da pesquisadora Cláudia Viscardi, representando a Humanidades em homenagem ao Dia Nacional da Ciência e do Pesquisador Científico, celebrado em 8 de julho. Esta matéria encerra a série que abordou a trajetória de pesquisadores da UFJF para cada uma das três grandes áreas do conhecimento. Já foram divulgadas histórias de cientistas da Saúde e das Ciências Exatas e Tecnológicas

Professora do Departamento de História, Cláudia Maria Ribeiro Viscardi é servidora da Universidade há mais de três décadas, e confessa que sempre quis ser professora. Também já assumiu funções administrativas, como a Pró-Reitoria de Pesquisa da UFJF, entre 2002 e 2006. “Na vida acadêmica, eu fiz de tudo um pouco”, avalia. A trajetória acadêmica da docente também conta com dois estágios pós-doutorais no exterior, na Manchester Metropolitan University, na Inglaterra (2007-2008) e no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (2015-2016), além de uma passagem como visitante na Fundação Casa de Rui Barbosa, entre 2011 e 2013. 

As temáticas centrais do trabalho científico de Cláudia Viscardi sempre foram as relações entre Estado e sociedade, o associativismo e os processos políticos institucionais. Seu projeto de mestrado – Diferentes Atores em Papéis Diversos: A Barganha Política no Palco da Gestão Participativa em Juiz de Fora (1982-1988) – foi focado no século XX. No doutorado, a professora descobriu seu período histórico de predileção, entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. 

A tese teve o tema Teatro do Absurdo: A Nova Ordem do Federalismo Oligárquico, que deu origem ao primeiro livro de Cláudia, “O Teatro das Oligarquias”. Na obra, a professora investiga e contesta a chamada Política do café com leite, de alternância de poder no Executivo Nacional entre os estados de Minas Gerais e São Paulo ao longo da Primeira República. A conclusão é que a reportada parceria entre as elites dos dois estados não teve a função estabilizadora que lhe é atribuída e só aconteceu na fase final do regime, nos últimos anos antes da Revolução de 30, quando o gaúcho Getúlio Vargas ascendeu à Presidência da República. Sobre esse período histórico, a historiadora também deu entrevista à série documental “Guerras do Brasil.doc” (2018), dirigida por Luiz Bolognesi e disponível na Netflix. 

“O livro O Teatro das Oligarquias me tornou conhecida no meio acadêmico. Recentemente lancei um livro em que reuni minhas pesquisas no campo da história social. Saiu no ano passado pela UFJF. Entre eles, publiquei minha tese de titular, em que estudei o federalismo oligárquico”, destaca. Atualmente a pesquisadora tem dois projetos em curso: uma biografia do jurista Francisco Campos (1891-1968), autor da Constituição do Estado Novo, além de um estudo sobre os processos eleitorais da Primeira República. 

“Tinha sonhos e ia atrás deles”

A relação de Cláudia Viscardi com a UFJF começou antes do ingresso como estudante no curso de História. Durante a infância, ela foi aluna do Colégio de Aplicação João XXIII em um período fundamental da história nacional e, consequentemente, do ensino público: a Ditadura Militar (1964-1985). “Meus professores se esforçaram em me conferir um ensino de qualidade, fundamental para a minha formação. Me sentia constrangida a expressar o que pensava, mas isso era comum no período. Quando olho para o passado me surpreendo ao pensar que a disciplina que mais gostava e em que eu tinha melhor desempenho era Matemática. E fui para Humanas”, recorda. 

Como o João XXIII não contava com turmas de Ensino Médio no período, Cláudia cursou parte do segundo grau no Colégio Academia. Na época, a sua família não tinha condições financeiras de arcar com a mensalidade de um colégio particular, mas uma rede de apoio a auxiliou a ingressar na escola. “Sou de família muito pobre, mas que tinha duas vantagens: éramos brancos e espíritas. Tais fatos abriram portas em um país racista e segmentado socialmente. Fomos muito ajudados e poupados de situações desafiadoras que meus vizinhos e amigos sofreram”, relata.

Na sequência, a jovem fez um intercâmbio para os Estados Unidos com ajuda do AFS (antigo American Field Service, uma das principais organizações de intercâmbio cultural do mundo) e da família americana que a acolheu, com quem segue a manter laços afetivos. “Meu pai vendeu um carro velho também para pagar a passagem. Viajei com menos de 110 dólares no bolso e tenho esse registro em meu primeiro passaporte”, conta. 

Em solo americano, aconteceu o encontro definitivo com a área de Humanidades. Até aquele momento, Cláudia planejava cursar Engenharia, mas se encantou por uma disciplina de Estudos Sociais. Por conta do desempenho positivo, ela ganhou uma bolsa para fazer faculdade no estado em que vivia, Minnesota. Apesar da insistência da família americana, Cláudia resolveu voltar ao Brasil. O ano era 1981 e mudanças estavam à espreita no horizonte brasileiro. De volta ao país, a jovem ingressou na graduação em História da UFJF. “As coisas se anunciavam mais prósperas para o país e eu sentia muita falta dos meus afetos daqui. Não tive dúvidas em voltar. Fiz graduação em História de forma quase intuitiva”, lembra. 

Concluído o primeiro ano de faculdade, aos 24 anos, Cláudia foi aprovada em um concurso público para a Universidade. Com base na própria memória, ela afirma que, quando criança, já queria seguir a carreira acadêmica. Mesmo assim, questiona essas lembranças por dever profissional. “Como historiadora, sei que a escrita de si é sempre idealizada. Pensamos nosso passado a partir de nosso presente. Na minha memória, imagino que sempre quis ser professora, pois era assim que brincava na infância. Mas também quis ser astronauta e trocadora de ônibus”, diverte-se. 

Referência nos estudos históricos, Cláudia Viscardi participou de documentário sobre guerras do Brasil (Imagem: Reprodução)

Sobre a graduação em História, a professora lembra que no período o curso ainda não era voltado para a pesquisa e não existiam bolsas de iniciação científica. Cláudia chegou a lecionar para turmas do Ensino Fundamental e também se sustentava dando aulas de inglês. Mas já almejava ser docente na educação superior. “Fui para o mestrado por incentivo de um professor, o Ignácio Delgado, que na época cursava o mestrado. Não tinha muita ideia, na ocasião, sobre o que seria a vida de uma pesquisadora. Tinha sonhos, como toda jovem, e ia atrás deles”, salienta. A professora fez mestrado em Ciência Política (1986-1990), pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorado em História Social (1994-1998), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

“Nossa principal função é formar recursos humanos”

Em sua trajetória profissional e acadêmica, Cláudia Viscardi também foi presidente da Seção Regional Minas Gerais da Associação Nacional de História (ANPUH), na gestão 2012-2014, além de ter ocupado outros cargos na entidade. Atualmente, a docente é coordenadora da Rede Internacional de Pesquisadores “Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em português” e membro de outras três redes internacionais de pesquisa. Com uma vasta experiência, a conquista que mais lhe orgulha  é ver ex-orientandos se destacarem em suas carreiras. “Nossa principal função é a formação de recursos humanos. Então fico feliz quando reencontro um aluno que me diz que fui importante para ele em algum momento.” 

Bolsista de produtividade 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Cláudia avalia que os cortes orçamentários estão entre os “imensos” desafios para quem segue a carreira científica hoje no Brasil, junto com a falta de perspectiva de futuro para os alunos, os negacionismos científicos e a fragilidade das instituições. 

“Me sinto realizada pelo que fiz e ainda posso fazer. Mas não se trata só de mim. Adoro a minha instituição e me sinto muito comprometida com ela e com o bem-estar de meu país. Quero muito bem aos meus alunos. Então posso dizer que, diante de tantos desafios e dissabores, não me sinto realizada. Me sinto desafiada e temerosa em relação ao futuro”, reflete. Quando questionada a deixar uma mensagem para jovens que desejam tornar-se pesquisadores, Cláudia revela o anseio que aparece no início da reportagem: que eles continuem a ter esperança e acreditem na ciência. E completa: “Que a universidade cumpra seu papel transformador em prol de um país mais igualitário, justo e fraterno.” 

Confira os demais pesquisadores homenageados na série:

Pesquisador por teimosia

O que significa ser pesquisador?