É possível que você já tenha ouvido o nome de Marie Curie, física e química polonesa que conduziu pesquisas pioneiras sobre radioatividade. Ou saiba que Rosalind Elsie Franklin foi uma química britânica que contribuiu para o entendimento das estruturas moleculares do DNA, RNA, vírus, carvão mineral e grafite. Se não, pense em alguns nomes que provavelmente você assistiu na televisão brasileira durante a campanha de combate à Covid-19. A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo atuou como assessora do Ministério da Saúde e do Governo do Estado do Rio de Janeiro e se tornou uma das vozes mais ouvidas e assistidas durante a pandemia. Já a infectologista Rosana Richtmann foi a única mulher a participar da coletiva de imprensa para anúncio da vacina Coronavac, no Instituto Butantan, em 7 de janeiro de 2021.
Essas são apenas algumas das muitas mulheres que fizeram e fazem parte da história das pesquisas científicas mundiais e nacionais. E é para celebrar e dar maior visibilidade à carreira e às pesquisadoras que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) lançou, em 2015, o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado anualmente em 11 de fevereiro. O objetivo da data é fortalecer o compromisso global com a igualdade de direitos entre homens e mulheres, principalmente do ponto de vista da educação.
Pensando na celebração da data, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) reuniu seis mulheres que fazem parte da história da produção científica da Instituição para um bate-papo sobre a carreira, dentro e fora dos muros da instituição. Uma conversa sobre os desafios e encantos de ser cientista trouxe à tona fatos curiosos e surpreendentes sobre o cotidiano no ambiente acadêmico e virou uma série de podcast que será lançada hoje, 11, na plataforma do Encontro A3 e em vídeos no canal para o canal da Revista A3 UFJF, no YouTube.
Apresentado pela jornalista Laís Cerqueira, o programa conta com a mediação da professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina e ouvidora especializada em ações afirmativas, Danielle Teles, e com a participação de quatro pesquisadoras: Débora Araújo, do Departamento de Engenharia Elétrica; Rossana Melo, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB); Zélia Ludwig, do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICE); e Brune Brandão, doutoranda em Psicologia.
No episódio, Danielle destaca o significado da celebração da data: “É importante pensarmos em caminhos em prol da igualdade de gênero no mundo acadêmico e, na ciência, a compreensão da subjetividade, da multiplicidade do que é ser mulher em uma sociedade como a nossa. É preciso compreender os diversos marcadores sociais que nos constituem, a perspectiva da interseccionalidade que interfere nos nossos lugares, nas nossas narrativas, nas disputas de espaços”.
Representatividade importa
Segundo dados da Coordenadoria de Assuntos e Registros Acadêmicos (Cdara) da UFJF, atualmente 10.228 alunas estão matriculadas nos cursos de graduação da Universidade, nos campi de Juiz de Fora e Governador Valadares, número que representa 55,6% do corpo discente. Já entre o número total de graduandos e graduandas do Ensino à Distância (EAD), as meninas representam 49,6%, totalizando 154 matriculadas. O número total de alunas nos Programas de Pós-Graduação strictu e latu sensu da UFJF é de 1.525 estudantes, ou 48,3% de inscritas em cursos de mestrado, doutorado e especializações.
A representatividade feminina no ambiente acadêmico foi um dos temas tratados no programa especial. Débora Araújo ressalta que existe um percentual muito grande de homens em relação a mulheres no Departamento de Engenharia Elétrica. São aproximadamente 55 professores homens para três mulheres. “Quando entrei na Engenharia, em 1997, éramos poucas meninas. Pra gente ir ao banheiro, tínhamos que andar muito. Fui da segunda turma do mestrado e não havia banheiro feminino dentro do galpão, só do lado externo, fechado com grade. Se uma pesquisadora era convidada pra uma banca e precisasse ir ao banheiro, tinha que sair acompanhada de alguém, o que é algo extremamente absurdo”.
Zélia pontua que no ICE, onde predomina a presença de docentes do sexo masculino, não nos reconhecem como cientistas. “Quando cheguei ao Departamento de Física, encontrei um lugar extremamente machista, racista, sexista. Já não é mais assim, hoje tenho colegas que têm uma cabeça mais aberta”, admite.
Enquanto mulher preta e vinda da periferia, Zélia faz questão de frisar a necessidade de reconhecimento e de representatividade das mulheres pretas na ciência. “Não foi fácil sair do subúrbio, estudar na Universidade de São Paulo (USP), uma das melhores do país, depois vir trabalhar na UFJF, que é também uma instituição renomada. Eu trouxe minha bagagem e tudo o que esperava em termos de conhecimento, de pesquisa, como mulher cientista. Sou mulher preta, mãe, cientista, periférica, porreta”, afirma Zélia, uma das cinco professoras que atuam no Departamento de Física, que conta com outros 36 professores homens.
Dados da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe) apontam que, na UFJF, 841 mulheres compõem o quadro de 1615 docentes (52%) e 799 técnico-administrativas em educação (TAEs), de um total de 1412 (56%). Outros números que chamam a atenção são relacionados à quantidade de Bolsas de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Das atuais 133, concedidas a pesquisadores e pesquisadoras de todas as áreas de conhecimento com a finalidade de distinguir o trabalho e valorizar a produção em desenvolvimento tecnológico e inovação, apenas 33 são destinadas a mulheres docentes da UFJF.
Uma delas é a professora do ICB Rossana Melo, há 28 anos docente da UFJF e hoje cientista visitante na Harvard T.H. Chan School of Public Health, em Boston, nos Estados Unidos. “Apesar de sermos maioria na graduação, existe uma desistência de mais de 50% das mulheres ao longo da carreira, por conta de muitas dificuldades, não só inerentes à maternidade, mas por falta de apoio e compreensão do que é a carreira científica. Ser pesquisadora implica em muitas horas de trabalho, muitas vezes fora do expediente. Eu sou uma dessas que não desistiu ao longo da carreira”, relata Rossana, que fez pós-doutorado no exterior com uma filha de sete anos nos braços.
Muitas mulheres, múltiplas temáticas
A conciliação entre maternidade e a carreira, inclusive, será foco do terceiro episódio da série especial sobre o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Já o primeiro e o segundo abordarão, respectivamente, um breve histórico das entrevistadas e um questionamento que está nas cabeças de muitas pesquisadoras: “como é ser mulher na ciência?”.
O quarto episódio do programa irá focar nas experiências das mulheres trans na universidade. Nele, quem ganha destaque é a primeira doutoranda trans da UFJF e psicóloga Brune Brandão. “O meu processo de transição de gênero ocorreu durante a minha graduação e falo que o conhecimento liberta e transforma a gente. Foi através dele que consegui trazer sentido e significar o processo e experiências que eu vivia. Ler sobre questões normativas de gênero me ajudou a passar pelo processo de uma forma melhor, mais consciente, crítica, estudando questões que se processavam na minha própria pele, corpo e identidade”, conta Brune. “Sou uma das poucas trans que estão na universidade. No Brasil, 90% das mulheres trans e travestis não têm possibilidade de acessar o ensino superior e se vinculam ao trabalho sexual justamente por falta de oportunidades. São excluídas do mercado de trabalho e dos processos educacionais. A minha história é um ponto fora da curva, pois, durante muito tempo, olhava pro lado e não via ninguém”.
Diversidade, pluralidade e inclusão. Esses são elementos que Danielle Teles afirma serem fundamentais para o avanço social, para ambientes educacionais e profissionais mais criativos, produtivos e que reflitam a contemporaneidade. “A nossa sociedade tem mudado e a gente precisa acompanhar essas transformações. Precisa pensar em justiça social, em correção das diferentes iniquidades que marcam nosso país. E a universidade, como um espaço público, de amplo debate, de inclusão, de conhecimento, de incorporação de tecnologias tem esse papel social de trazer a questão da representatividade. Nós, mulheres, infelizmente, por conta de todos os atravessamentos da nossa sociedade, do machismo, do sexismo, da misoginia sabemos como é difícil caminhar na carreira acadêmica”, conclui Danielle.
Confira o teaser do programa: