Quem vive no entorno do Watu [como o Rio Doce é conhecido pelos indígenas] conhece bem o potencial devastador da mineração. Com a ruptura da mina operada pela Samarco em Mariana, em novembro de 2015, as pessoas de cidades e comunidades da região tiveram suas rotinas, cultura e a própria subsistência manchadas para sempre pelos milhões de metros cúbicos de lama. Desde então, o campus da Universidade Federal de Juiz de Fora em Governador Valadares (UFJF-GV) desenvolve vários projetos para apoiar os atingidos.
A professora do Departamento de Direito Luciana Tasse Ferreira é uma estudiosa do tema. Ela integra o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), um programa de extensão do campus que possui um eixo de atuação voltado especificamente para questões de justiça socioambiental. Entre as ações desenvolvidas pelo programa estão a produção de artigos sobre o assunto e a realização de seminários para avaliar como anda a reparação e indenização dos afetados, como o que aconteceu em 2019, em Governador Valadares.
Acordos de reparação não refletem a realidade dos atingidos
Em seu doutorado Ferreira tem pesquisado se o que está disposto nos acordos firmados entre a Fundação Renova – responsável pela reparação dos atingidos – e as pessoas dos territórios próximos a Valadares reflete a realidade desses moradores. Para isso, permaneceu três meses nas cidades de Galileia e Tumiritinga entrevistando pescadores, produtores rurais, assentados de reforma agrária, lavadeiras, areeiros, e constatou disparidades:
“Foi disposto uma coisa a respeito da reparação, mas o que chegou nos territórios para as pessoas foi completamente diferente”. (Luciana Tasse Ferreira)
“A narrativa e histórias dessas pessoas sobre como foram atendidas e como tem sido viver em condição de desastre, com tantas perdas em função do rompimento, é muito diferente do que foi disposto como obrigação e responsabilidade da Renova, da Vale, da Samarco e da BHP nos processos. Ou seja, foi disposto uma coisa a respeito da reparação, mas o que chegou nos territórios para as pessoas foi completamente diferente”, detalha.
“Estamos vivendo uma situação muito grave de violação de direitos humanos das populações que viviam não só do Rio Doce mas com ele”. (Luciana Tasse Ferreira)
Por conta disso, segundo a pesquisadora, os atingidos sentem-se “muito ofendidos em sua dignidade” devido ao fato da justiça não ter responsabilizado cabalmente as empresas pelos danos causados ao rio e também porque os valores pagos a título de indenização “não foram adequadamente avaliados”. E Ferreira não tem dúvidas: “Estamos vivendo uma situação muito grave de violação de direitos humanos das populações que viviam não só do Rio Doce mas com ele. Há um êxodo dessas regiões para outras regiões do país – já está mapeada essa migração das populações – e o aumento da vulnerabilidade social”.
“A palavra da moda é flexibilização. E essa flexibilização do licenciamento na verdade é um enfraquecimento das normas de licenciamento ambiental em favor dos interesses das grandes corporações mineradoras”. (Luciana Tasse Ferreira)
Licenciamento e fiscalização da mineração são deficientes
Para a docente, o que aconteceu nos casos de Mariana, Brumadinho e em outras minas em menor escala pode ser explicado pelo modelo de mineração vigente no país, acerca do qual ela faz sérias críticas. “O minério de ferro, típico da mega mineração, exige o revolvimento de grandes porções de terras e a feitura de cavas enormes para a sua retirada. E essa extração tem problemas muito sérios em relação ao licenciamento. Existe uma fragmentação de processos que não conecta todos os potenciais efeitos destrutivos desses empreendimentos. E aí, fragmentando esse licenciamento em várias partes, é possível reduzir de alguma forma, pelo menos na justificativa formal, os potenciais danos. A palavra da moda é flexibilização. E essa flexibilização do licenciamento na verdade é um enfraquecimento das normas de licenciamento ambiental em favor dos interesses das grandes corporações mineradoras”, explica.
“É uma questão de tempo até essas barragens de mineração, da forma como são feitas, darem problema, porque a gente tem tecnologia para minerar mas não tem para conter essa destruição que a mega mineração causa”. (Luciana Tasse Ferreira)
Ferreira também aponta graves falhas em relação à fiscalização. “A Agência Nacional de Mineração é responsável por fiscalizar esses empreendimentos, mas nós temos poucos fiscais para um território enorme que não têm dado conta de prevenir graves desastres como os que acontecerem não uma mas duas vezes, e mais inúmeras vezes em menor escala. Esses rompimentos de barragem, na verdade, compõe o próprio modelo de mineração que é praticado no Brasil. É uma questão de tempo até essas barragens de mineração, da forma como são feitas, darem problema, porque a gente tem tecnologia para minerar mas não tem para conter essa destruição que a mega mineração causa. E nem é do interesse das empresas porque é custoso gerir esses danos. Então, como a fiscalização e o licenciamento são permissivos, elas se valem dessas brechas institucionais e normativas para atuar no interesse próprio, que é o da questão financeira”, pontua.
Por fim, a pesquisadora defende uma maior adesão dos moradores da região à luta dos atingidos diretamente pela tragédia, e acredita que isso é essencial para que a justiça aconteça. “As pessoas de Valadares muitas vezes não se sentem atingidas pelos danos da Samarco, vivem alheias a isso. Mas a nossa saúde está comprometida, não só pela água que a gente consome ou toma banho, mas porque estamos consumindo tudo o que é produzido na bacia, e não sabemos qual vai ser o efeito disso a longo prazo. Essa causa é de todo mundo que vive no Vale do Rio Doce. E é muito importante que a gente esteja atento a essas questões até para que a sociedade civil esteja organizada fazendo pressão política nos nossos governantes e nessas empresas, para que elas sejam efetivamente responsabilizadas, se não pela reparação integral dos danos, pelo menos por parte deles, porque até hoje o que a gente tem visto é só tristeza… [pausa] só tristeza mesmo e enrolação”, finaliza.
Assessoria às organizações Krenak
Nenhum povo sofreu e ainda sofre tanto com a lama quanto os Krenaks. Donos de uma relação íntima com o Watu, de repente viram seu rio, sua história e seus direitos violados, e precisaram se organizar para enfrentar o constante assédio das empresas responsáveis pela tragédia e da Renova. E é justamente nesse contexto que surge outra importante iniciativa da UFJF-GV.
O ‘Aminharmrá’ é um projeto de extensão que presta assessoria jurídica e técnica a duas associações que articulam os interesses dos indígenas: a Organização Pandã e o Instituto Shirley Djukurnã Krenak. De acordo com a justificativa do projeto, “essas organizações são bombardeadas por inúmeros conceitos não-indígenas que tornam a tarefa da comunicação um instrumento violento, assim como fragiliza a luta contra a cooptação e neutralização do desastre-crime”.
Coordenador pelo professor do Departamento de Direito João Vitor de Freitas Moreira, que também é integrante do CRDH, o projeto quer justamente facilitar essas comunicação intercultural e, consequentemente, contribuir para a luta por justiça socioambiental. Daí o nome ‘Aminharmrá’, que na língua Krenak significa falar ou comunicar.
Para quem quiser saber mais sobre o tema da mineração, fica a sugestão de Luciana Tasse. Trata-se do podcast ‘Cava: mineração em debate’. Já são 20 episódios disponíveis (o último é de 6 de dezembro), todos eles promovendo um debate crítico sobre o modelo mineral brasileiro. O produto é uma parceria do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração, a Rede de Pesquisa Rio Doce, o Grupo de Pesquisa Terra e o CRDH.