O Ministério da Educação (MEC) publicou nesta quinta-feira, 18, a Portaria nº 545, que revoga as normativas acerca da indução de ações afirmativas nos cursos de  pós-graduação (mestrado e doutorado). Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo Estado, instituições ou iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades presentes na sociedade, acumuladas ao longo do tempo. 

Uma ação afirmativa busca oferecer igualdade de oportunidades a todas e todos, revertendo representações negativas e combatendo preconceitos e discriminações, contra, por exemplo, pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência, pessoas trans [que não se identificam com o gênero designado ao nascimento]. 

Para o diretor de Ações Afirmativas e professor da Faculdade de Educação da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, a decisão do MEC contraria o processo de democratização das universidades brasileiras. “A população negra está sujeita à violência física e simbólica na sociedade brasileira, pois os mecanismos mais cruéis de segregação ainda incidem sobre essa população. Até para a política de ação afirmativa, que tem como objetivo a superação da desigualdade, os pretos são os que menos acessam. Isso mostra, para mim, a necessidade de aprofundar as políticas públicas de inclusão, pois o desafio da desigualdade é brutal em nosso país.”

 “A população negra está sujeita à violência física e simbólica na sociedade brasileira, pois os mecanismos mais cruéis de segregação ainda incidem sobre essa população” – diretor de Ações Afirmativas, Julvan Oliveira

Oliveira ressalta que  80% dos brasileiros são trabalhadores e, em sua maioria, estão segregados do exercício da cidadania e dos direitos mais básicos para a sobrevivência. “Quase a totalidade são pessoas negras. Isso é herança do processo de escravização, que durou quase 400 anos. Nenhuma outra forma de escravidão foi tão ampla como a brasileira. Ao final da escravização não foi adotada nenhuma política de inclusão. O Brasil fez uma opção em trazer, em regime de cotas, imigrantes europeus, num período em que as teorias racistas, especialmente o evolucionismo social, predominavam. O início de ingresso da população branca no Brasil se deu sem nenhum mecanismo de reparação ou ressarcimento para a população negra.”

Política de Estado de branqueamento

O diretor de Ações Afirmativas recorda que houve no país uma política de Estado, para o branqueamento da população, que promoveu uma desigualdade racial profunda na sociedade brasileira. “Isso não é distante. O meu pai nasceu em 1906, ou seja, meus avós viveram sob o regime da escravidão e, como negro professor de uma universidade pública, sou uma exceção das exceções à regra, um sobrevivente, diferente do destino ao qual está sujeita a juventude negra brasileira. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) nos mostram isso, essa profunda desigualdade de raça e classe no Brasil. Falar em pobreza em nosso país é falar da população negra.”

“Falar em pobreza em nosso país é falar da população negra” – diretor de Ações Afirmativas, Julvan Oliveira

Oliveira acrescenta que, conforme o Plano Nacional de Educação, o acesso à escola e à Universidade é fundamental para a redução das desigualdades sociais no Brasil. “A adoção de cotas não está suprimindo direitos, mas afirmando direitos das pessoas que necessitam precisamente dessas políticas. As políticas afirmativas, que são em nosso país uma conquista dos movimentos sociais de negros, são universais, pois atendem a toda população que está em condição vulnerável. Os mecanismos de ascensão da população negra beneficiam a sociedade como um todo, pois a superação da desigualdade racial irá eliminar a abissal desigualdade social que temos no Brasil. Esse é um problema da sociedade brasileira e não somente da população negra. A sociedade brasileira precisa ter interesse em fazer essas mudanças, não podendo ser tarefa só da universidade.”

Serviço Social, História e Geografia já implementaram cotas na pós

A UFJF tem atualmente 45 programas de pós-graduação, sendo 15 mestrados acadêmicos, 10 mestrados profissionais e 20 cursos de  mestrado e doutorado. Desse total, os programas de pós-graduação em Serviço Social, em História e em Geografia já implementaram política de cotas para pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e pessoas trans. Já no Programa de Pós-Graduação em Educação o processo está sendo finalizado.

“Não vamos permitir o recuo do que já chegou atrasado e que ainda sequer foi universalmente implementado” – coordenadora do PPG Serviço Social, Maria Lúcia Duriguetto   

A revogação é mais uma ação racista, LGBTfóbica, contra as populações negra e indígena e contra os direitos humanos por parte deste governo e do seu então ministro da Educação. A imensa maioria dos cursos de pós-graduação do Brasil não têm política de cotas, o que é ainda um desafio a enfrentar. Não vamos permitir o recuo do que já chegou atrasado e que ainda sequer foi universalmente implementado. Essa será mais uma luta que as organizações, entidades e movimentos sociais travarão contra as ações regressivas deste governo na direção de impedir a democratização do acesso à educação superior pública brasileira”, afirma a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Maria Lúcia Duriguetto, sobre a decisão publicada pelo MEC.  

A avaliação é compartilhada pelo coordenador do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHistória), Fernando Perlatto, que salienta a intenção do Colegiado do curso de ampliar a política de inclusão.  

“O nosso aceno é justamente sobre como aprimorar e tornar essa política ainda mais inclusiva. A nossa percepção é que as cotas são importantes” – coordenador PPGHistória, Fernando Perlatto

“Na prática, o PPGHistória implementou as cotas para pretos, pardos e indígenas, trans e pessoas com deficiência no ano passado. Este ano nossa pretensão é ampliar ainda mais os perfis de grupos contemplados. Pensamos incluir refugiados. Isso ainda não foi decidido. Vai haver uma reunião do Colegiado do curso na semana que vem. O nosso aceno é justamente sobre como aprimorar e tornar essa política ainda mais inclusiva. A nossa percepção é que as cotas são importantes, não apenas por permitir a inclusão de grupos que historicamente não tiveram acesso à pós-graduação ou tiveram dificuldade de acesso, mas pelo fato de acharmos que essa pluralidade torna o programa de pós-graduação melhor. É boa para o Programa, para os alunos que lá estão, para os professores. Nossa perspectiva é contrária à decisão do MEC, é de resistência, na medida em que nós acreditamos na política de cotas.”  

Já a coordenadora da Pós-Graduação em Educação (PPGE), Sônia Maria Clareto, relata que o processo de implementação das cotas está em estágio avançado no programa. A expectativa, segundo a docente, é que seja aprovado pelo colegiado do curso ainda este ano. “É o momento dos programas de pós-graduação e da Universidade como um todo enfrentarem a questão de um modo mais firme. Essa revogação é um retrocesso, precisamos reforçar a nossa posição, a posição da UFJF que tem sido pela inclusão, reforçar as ações afirmativas. Penso que os PPGs deveriam enfrentar isso agora em bloco, precisamos dar uma resposta a isso e procurar meios para reverter este quadro que é muito perverso.” 

“É o momento dos programas de pós-graduação e da Universidade como um todo enfrentarem a questão de um modo mais firme” – coordenadora PPGE, Sônia Clareto

Clareto salienta que a decisão do MEC ocorre durante um período de ampliação dos debates acerca do racismo. “Em pleno movimento mundial, especialmente em relação aos movimentos antirracistas, que têm tomado corpo em todo o mundo e na nossa sociedade inclusive, de um modo mais tímido do que gostaríamos, uma atitude dessa é uma sinalização de que o racismo é permitido cada vez mais no Brasil. Nós temos um racismo institucional que precisa ser combatido e não há outro modo, pelo menos no nosso âmbito da Educação, das universidades, que não fazer a abertura para o sistema de cotas, para que outras populações possam ter acesso a um lugar que, historicamente, não foi pensado para elas”, afirma.

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Segundo a pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa da UFJF, Mônica Ribeiro, a expectativa é que a ampliação da política de cotas para todos os programas de pós-graduação da instituição seja debatida ainda este ano.

“Acreditamos que vamos conseguir pautar essa discussão no conselho ainda esse ano” – pró-reitora de pós-graduação, Mônica Ribeiro

“A Portaria nº 13 de 2016 não obrigava as Universidades adotarem alguma forma de política afirmativa para negros e pessoas com deficiência, apenas induzia. A portaria nº 545 de 2020 extingue a portaria nº 13 de 2016. Com ela, não significa que as universidades não podem continuar com suas açōes afirmativas. Apenas que as universidades que não possuem essas políticas, não são obrigadas a criá-las. Aqui, na UFJF, alguns Programas de Pós-graduação já implantaram, porque a discussão já tinha avançado nesses programas, pela presença de pesquisadores membros de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs) bem atuantes nesse sentido. O Grupo de Trabalho Cotas na Pós da UFJF, criado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa e coordenado pela Diretoria de Ações Afirmativas, elaborou uma minuta e a encaminhou ao Conselho Superior de Pós-Graduação e Pesquisa para discussão ao final do ano de 2019. Acreditamos que vamos conseguir pautar essa discussão no conselho ainda esse ano”, conclui.

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