Ciência e fé protagonizam lados considerados opostos ao longo do tempo. Atualmente, com o enfrentamento à Covid-19, quando o cenário ideal seria uma junção dessas duas áreas em prol de um objetivo comum, uma dicotomia se potencializa, principalmente no que se refere às medidas determinadas de distanciamento social.
Segundo a professora do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Elisa Rodrigues, a relação entre fé e ciência sempre foi delicada, não apenas no Brasil, um país cuja sociedade vive a fé de diferentes formas e por meio de diversas tradições religiosas.
“É importante notar que, historicamente, a fé, seja em santos, em orixás, em entidades espirituais ou outros, é uma dimensão significativa da vida de muitas pessoas. Isso não significa que a fé seja um problema para a ciência ou para a razão. Existem muitas pessoas que conjugam essas duas faculdades no seu dia a dia, para organizarem suas vidas e decisões. A fé pode tornar-se problema quando instrumentalizada pelas instituições religiosas e por suas lideranças. Quando isso acontece com a finalidade de controlar as pessoas, temos um problema.”
A análise sobre o radicalismo na maneira pela qual ciência e religião têm se enxergado é complementada pelo também professor da Ciência da Religião da UFJF, Arnaldo Érico Huff. “Entre as posições extremistas, existem outras infinitas possibilidades, como, por exemplo, um médico católico que acredita na ciência e na fé. A religião surge como uma busca de sentido para a vida humana sendo, antes de tudo, um fundamento. Hoje, passamos por um momento delicado, no qual fé e ciência se discutem violentamente. O debate nos leva para uma ‘sinuca de bico’ no qual ou você se identifica como um ateu desalmado, ou um crente alienado. Isso não tem saída e não é produtivo a ninguém em um momento de crise.”
No domingo de Páscoa, 12 de abril, grande parte de templos religiosos, em várias partes do Brasil e do mundo, exibiu celebrações através de suas mídias digitais como forma de manter o distanciamento social requerido pelos órgãos oficiais. No entanto, alguns líderes religiosos neopentecostais, reconhecidos nacionalmente, defendiam a abertura de seus templos, bem como do comércio do entorno. Sob a justificativa de que fiéis ativos não seriam acometidos pelo coronavírus ou, que pela fé teriam a cura da doença, chegaram a protagonizar situações polêmicas que circularam pelas mídias sociais.
Elisa Rodrigues: “Esse quadro que tem nos espantado e que revela um público religioso com pautas e condutas consideradas retrógradas e obscurantistas sempre existiu. E sempre existiu não exclusivamente por causa da fé das pessoas, mas por causa das pessoas”
Elisa Rodrigues explica que, para os fiéis, os cultos são momentos de comunhão e oração, mas que atualmente configuram uma situação preocupante por também apresentarem um grande risco de contaminação. “As reuniões pentecostais aglomeram centenas de pessoas e muitas delas constituem o grupo de risco, como pessoas idosas ou em situação de vulnerabilidade. São reuniões que agregam um número considerável de aposentados, com seus netos e netas.”
Questionada sobre uma possível relação entre o perfil do público fiel das regiões metropolitanas do estado do Rio de Janeiro, majoritariamente evangélico, e o afrouxamento das medidas de isolamento social nessas áreas, a professora é direta: “Seria um equívoco. Deve-se considerar que a cultura dessas comunidades é baseada num tipo de solidariedade que envolve o contato, o compartilhamento de bens de consumo, a ajuda mútua e uma proximidade maior. Essas pessoas acordam cedo, fazem uso de coletivos para irem ao trabalho e, ao final do dia, retornam para as suas casas. As preocupações dessas comunidades orbitam em torno da resolução de problemas reais, como garantir o pão dos filhos e filhas; como conseguir o remédio […]. Temos que entender essa lógica para compreendermos que as igrejas pentecostais adquiriram força nessas regiões nas últimas três décadas – pelo menos – porque atenderam as demandas desses grupos.”
Arnaldo Huff: “A religião surge como uma busca de sentido para a vida humana sendo, antes de tudo, um fundamento. Hoje, passamos por um momento delicado, no qual fé e ciência se discutem violentamente”
Elisa acrescenta que o aumento da força de igrejas pentecostais nessas regiões se deve ao atendimento específico que elas ofereceram às comunidades, como reuniões de oração; grupos de apoio e de recuperação de dependentes químicos; distribuição de cestas básicas. “Nesse sentido, os espaços das igrejas, além de servirem para culto, servem também como espaço de sociabilidade, lazer, entretenimento e atendimento. Então, ainda que o apelo dessas lideranças para que seus templos permaneçam abertos possa esconder interesses de pastores e apóstolos, também pode ser um ‘serviço indispensável’ para a comunidade.”
A professora reforça que boa parte do público neopentecostal é constituída por trabalhadores sem acesso à informação e a planos de saúde. Caso contaminadas, essas pessoas seriam encaminhadas para o sistema público, que atualmente já sofre com a superlotação. “A abertura dos templos e o fim do distanciamento social solicitado por essas lideranças pode ser considerado um ato de irresponsabilidade, que coloca em perigo a saúde pública de toda a sociedade.”
Arnaldo Huff explica que a insistência para não fechamento de templos pode ser justificado, em partes, pela promessa de cura propagada por algumas religiões. “Desde meados do século XX, por exemplo, o pentecostalismo fala sobre cura divina de doenças consideradas sérias. Isso vem de uma interpretação bíblica: Jesus curou, os discípulos curaram. O que torna isso arriscado, no entanto, é que em função de uma crença religiosa, as pessoas desacreditam dos procedimentos científicos. Há uma luta entre ciência e religião, entre razão e fé, mesmo com o cristianismo nos dizendo que ciência e medicina também são dons de Deus.”
Huff concorda sobre não culpabilizar as religiões. “Não acho que isso tenha a ver com o fundamentalismo religioso diretamente. É óbvio que, quando um pentecostal sai para a rua porque o pastor prometeu a cura, a religião está impactando no espaço público. Entretanto, as pessoas podem estar saindo simplesmente por estarem desinformadas, por não acreditarem na ciência, entre outros motivos. Temos que tomar cuidado para não culpabilizarmos o ambiente pentecostal como ‘o grande bandido da vez’. Em momentos de crise, respostas milagrosas vêm à superfície em detrimento da razão. Faz parte de uma lógica religiosa do cenário brasileiro.”
Declarações políticas
Nesse momento de pandemia, outro ponto polêmico são as declarações e atitudes do presidente da República, que comumente vão de encontro ao que determina a ciência e, inevitavelmente, corroboram o discurso religioso mais extremista.
“Não convém um combate às pessoas religiosas, principalmente àquelas que estão lá na ponta e que vivem sua fé genuinamente, que fazem dela uma forma de suportar a dura realidade da vida. Mas, sim, cabe combater a desinformação” – Elisa Rodrigues
Para a professora Elisa, ainda que assumir uma fé seja de fato um ato político, uma postura diante da sociedade e do mundo, essas declarações funcionam mais como uma ação estratégica que lhe garante alianças. “Ele sabe que o público pentecostal é hoje uma fatia significativa da população e que o discurso religioso de tom moralista e conservador atinge, não só este público, como também quem simpatiza com essa forma conservadora de interpretar o mundo. E, sobretudo, ele sabe que as lideranças pentecostais têm grande entrada junto das comunidades mais carentes. Ao meu ver, as declarações do presidente são ações de conjuntura e suas declarações têm uma finalidade política e racional que é garantir base de apoio.”
Huff ressalta o perigo representado pelas declarações do presidente, principalmente em um momento de pandemia. “Quando o nosso atual presidente adota, em sua campanha, versículos bíblicos, temos um problema seríssimo. Primeiro, porque é uma extração de ideias de uma única religião, a saber, o cristianismo. Então nós temos uma junção do campo político com ideias religiosas no espaço público. Isso já é um problema, pois atesta a centralidade do cristianismo perante as outras religiões. O segundo problema, de ordem mais teológica, é que são interpretações péssimas da própria tradição cristã. Então, ao sair a público e contrariar as orientações do Ministério da Saúde, posso dizer com certeza que as pessoas religiosas que encaram o presidente como um enviado de Deus vão entender essa mensagem como mais uma orientação para não levar a Covid-19 a sério.”