O pesquisador Luiz Antônio Cunha participa da programação da 5ª Semana da Faced (Foto: Arquivo pessoal)

Qual o lugar do ensino superior em um Estado laico? A laicidade do Estado faz parte de um amplo debate, com reflexos que se desdobram para além da proposta de que este seja neutro em relação ao campo religioso. Pré-condição para a liberdade de crenças, garantida desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e pela Constituição brasileira de 1988, a separação entre Estado e religião é um ponto importante para o respeito à diversidade como um todo. 

Para pensar sobre “Ensino superior e laicidade do Estado”, o coordenador do Grupo de Trabalho Estado Laico da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Luiz Antônio Cunha, integra mesa redonda, no dia 29, na 5ª Semana da Faced. Junto a ele, o professor da UFJF, Eduardo Magrone, discute “Educação superior, desigualdade social e intolerância”. A mesa tem a mediação do professor Cassiano Caon Amorim e acontece no Anfiteatro da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FACC) a partir das 14h.

Em entrevista para o site da Imagem Institucional da UFJF, Cunha deu um panorama sobre alguns pontos que serão abordados na discussão. O debate abordará questões como: “o fato de o Estado ser laico significa que não apoia uma corrente religiosa específica, e não que adota uma postura ideológica anti-religião”, introduz.

UFJF – A laicidade do Estado propõe a neutralidade em relação ao campo religioso. Quais os reflexos dessa forma de condução para além de uma prática que não privilegia determinadas correntes religiosas em detrimento de outras?
CUNHA – A liberdade de crença e, por via de consequência, a liberdade religiosa, são os efeitos mais importantes da imparcialidade do Estado diante dos conflitos do campo religioso (não nos esqueçamos de que esse campo é essencialmente conflituoso, apesar das declarações de textos e lideranças). Não se trata apenas de não privilegiar alguma religião, mas de não penalizar indiferentes, ateus, etc., sempre esquecidos nesse tipo de discussão – parece que só as religiões é que contam. A liberdade de crença é coessencial ao trabalho universitário, tanto quanto o agnosticismo metodológico, ignorado por uns, esquecido por outros, posto de lado por outros ainda. Em uns setores universitários, o agnosticismo metodológico faz parte do ar que se respira. Em outros, no entanto, ele precisa ser explicitado, porque neles predomina o confessionalismo ostensivo ou dissimulado.

“A desinformação sobre o que é a laicidade do Estado oferece terreno fértil para o plantio de ideias falsas”

Ao seu ver, quais avanços e retrocessos podem ser identificados em relação às práticas que tentam garantir a laicidade do Estado?
No Brasil, a primeira onda laica foi no século XIX, atingindo o auge nos primeiros anos do período republicano. Desde o fim da guerra de Canudos (1897), a laicidade está em retrocesso, mais fortemente nos últimos anos. Desde a preparação da Constituinte de 1987-1988, começou a segunda onda laica, no campo educacional. Em outros, começou antes. O avanço em relação à primeira onda é que esta tem base em movimentos sociais, enquanto aquela era um movimento apenas de políticos e intelectuais, também de adeptos de religiões dominadas – denominações evangélicas, naquela época.

Qual a relação entre a propagação de doutrinas religiosas nas instituições, que tem raízes antigas na cultura brasileira, com a impressão de desigualdade de direitos?
Instituições com raízes na cultura brasileira têm diferentes posições quanto à questão da laicidade do Estado e como entendem os direitos de si mesmas e das outras. Vou dar três exemplos clássicos. Primeiro: a Igreja Católica sempre defendeu a proteção e subsídio financeiro estatal para si, por ser mais antiga e por ter maior número de adeptos. A culminância foi a concordata firmada entre o Brasil e o Vaticano, homologada em 2010, que passou a fazer parte do arcabouço jurídico brasileiro. Segundo exemplo: Os cultos afro-brasileiros, dominados por cinco séculos, oscilam entre a busca de igualdade às religiões dominantes, via proteção estatal, e a exigência da laicidade do Estado. Sendo que cada corrente defende um ponto de vista como condição de sobrevivência, especialmente neste momento em que sofrem ataques sistemáticos, inclusive materiais, dentro do campo religioso. Terceiro exemplo: a Maçonaria sempre adotou a postura de liberdade religiosa, pelo menos no âmbito do monoteísmo, para o que a laicidade do Estado seria condição essencial – no campo educacional, sua posição na tramitação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1948-1961) foi marcante, contra os subsídios financeiros às escolas privadas confessionais e contra o ensino religioso nas escolas públicas.

Ideias que distorcem o princípio da laicidade podem surgir. Um ensino superior laico é o mesmo que um ensino antirreligião?
A identificação de laicidade com antirreligião faz parte da retórica empregada por quem pretende garantir posições dominantes no Estado. Primeiro a Igreja Católica, hoje ela mais as Igrejas Evangélicas Pentecostais. Escrevi um texto intitulado “Sete teses equivocadas sobre a laicidade do Estado, publicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, que analisa essa identificação (hoje eu chamaria isso de fake news), inclusive outra tese muito comum: “o Estado é laico, mas o povo é religioso”. A desinformação sobre o que é a laicidade do Estado oferece terreno fértil para o plantio de ideias falsas. 

Você já presenciou momentos de intolerância entre grupos religiosos na universidade?
Presenciei, sim, na universidade, manifestações de preconceito, da parte de professores religiosos para com colegas e estudantes ateus. Idem, de católicos para com evangélicos. Idem, de evangélicos para com umbandistas e ateus. São três “doenças” que crescem no Brasil de hoje, a “ateufobia”, a “evangelicofobia” e a “afrofobia”. Na minha experiência, elas são mais fortes nas instituições públicas de educação básica do que nas de ensino superior. Discriminação mesmo nunca presenciei na universidade, mas, em escolas públicas de ensino fundamental é muito comum, sobretudo diante dos afro-brasileiros e dos ateus.

“Conversas sempre são bem vindas na universidade, até porque para nós, os universitários, a única coisa sagrada é que nada sagrado é”

Qual o papel da universidade no debate entre ciência e religião?
O debate entre ciência e religião (isto é, corpo doutrinário organizado e culto institucionalizado) é assunto relevante, ontem e hoje, até porque há espaços conflitantes, como o da evolução das espécies pela seleção natural. Há três séculos, foi o do movimento dos astros, que quase levou Galileu à fogueira. Conversas sempre são bem-vindas na universidade, até porque para nós, os universitários, a única coisa sagrada é que nada sagrado é. Portanto, tudo está em discussão. No entanto, é preciso vencer a tentação sempre presente de se querer frear o progresso do saber mediante a transformação do conhecimento, sempre provisório, em algo sagrado, absoluto, com seus intérpretes autorizados, quase um clero.

Considera importante sempre reviver esse assunto? Há perigos em ficar em silêncio sobre problemáticas como essa? Como manter essa discussão contínua?
Todo e qualquer assunto deve estar em pauta se e quando houver interesse. Há perigo em ficar em silêncio somente se o interesse se manifestar. Pôr tudo em questão é do “DNA” da universidade, inclusive se essa ou aquela discussão deve se manter contínua. Atenção: na universidade, a religião – ou melhor, as religiões –, tanto quanto as irreligiões, são objeto, não sujeito da pesquisa.

Outras informações:
Confira a programação completa da 5ª Semana da Faced
(32) 2102-3650 (Faculdade de Educação-UFJF)
A Educação tem futuro?