Obra do artista Petrillo pode ser vista até 10 de setembro (Foto: Divulgação)

Um século depois de sua irreverente interferência em um simples postal da obra-prima de Leonard Da Vinci, a até então intocável Mona Lisa, Marcel Duchamp continua a agitar a criação artística de diferentes gerações e a inspirar ações que remetam a um aprofundamento na compreensão de seu gênio revolucionário. Para instigar a reflexão sobre esse gesto desafiador, a Pró-reitoria de Cultura (Procult) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) inaugura a exposição “Pensamento Subversivo – 100 anos de L.H.O.O.Q”, com a participação de 25 artistas que apresentam seus trabalhos no Galeria Reitoria, no campus sede, a partir de sexta-feira, dia 9, até 10 de setembro. Com entrada franca, a exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h, e aos sábados das 8h às 12h.

Carol Cerqueira; Fabrício Carvalho; Fernanda Cruzick; Francisco Brandão; Frederico Merij; Higor Soffe; Jéssica Perobelli; João Jacob; Lucas Soares; Marcus Vinícius Amato; Mariana Lage; Marize Moreno; Matheus Assunção; Matheus de Simone; Nickolas Garcia;  Paulo Alvarez; Paulo Rafael; Petrillo; Rafael Ski; Renato Abud; Ricardo Cristofaro; Ronald Polido; Valéria Faria; Vermelho; e Washington da Silva se reúnem nesta mostra para apresentar seus ready mades retificados. Temas diversos e questões suscitadas pela sociedade e pela arte no decorrer das últimas dez décadas compõem o cenário criativo que se estende pela galeria.

Uma das obras que estarão expostas de Mariana Lage (Foto: Divulgação)

Dessacralizando

Com a intenção de fazer eco à “blasfêmia” proposta por Duchamp em 1919, Ronald Polito apresenta a obra intitulada “Santo do Pau Oco”. “Este trabalho objetiva dessacralizar o sagrado, subvertendo a ideia de pureza associada aos santos. Que o diga santo Agostinho. A operação consistiu, tão somente, em acrescentar um resplendor de palitos de dente a uma torneira de tonel acondicionada em uma gaveta de máquina de costura que passa a funcionar como oratório”, explica. 

Para Polito, Duchamp está entre os mais importantes artistas plásticos e pensadores da arte do século XX. “Pelas obras que criou e pelas ideias que formulou, provocou uma revolução radical no que passou a ser entendido por arte. Suas concepções afetaram a produção de seu tempo e foram retomadas com vigor a partir dos anos 1960, com a arte conceitual e a arte pop, estando ainda na ordem do dia os problemas que suscitou, mesmo que hoje aprofundados e equacionados em outros termos.”

Autêntico trickster

Visto por Mariana Lage como um trickster a jamais se curvar às regras, embora as conheça com profundidade e nunca inviabilize o jogo da arte, Duchamp é evocado na obra “Fanfic Mise en Abyme”, que se divide em três etapas. A primeira refere-se a um trabalho de Camila Buzelin, que traz um espelhamento sobre o icônico “O filho do homem”, de René Magritte. A segunda é a página de um livro que está sendo preparado por Mariana com frases recortadas de dois trechos de Vilem Flusser, extraídos de “Pós-história: 20 instantâneos e um modo de usar” e “Ficções filosóficas”. A terceira remete a uma espécie de ficha de biblioteca.  “Trata-se de uma proposta lúdica que encerra um abismo de espelhos”, analisa.  

O trabalho de Matheus Assunção para a mostra pode ser definido como um descontentamento irônico, um processo de superação da referência dada. “Duchamp usava dessa mesma linguagem para questionar um sistema de arte ao qual ele não se adaptava. Minha obra é crítica, fala de onde vim, quem admiro, quem sou, por onde passei e como me sinto ocupando hoje esse espaço”, diz, lembrando que “precariedade de tudo” seria uma boa maneira de resumir sua proposta em Pensamento subversivo: “As instituições de arte no Brasil ainda são uma extensão da Casa-grande. Queria falar sobre outras coisas, mas isso me toca no momento.”

O artista Ricardo Cristofaro também exibe uma de suas obras na mostra (Foto: Divulgação)

Fagulhas acesas

Mariana acredita que Duchamp ainda precisa ser conhecido mais a fundo e com mais respeito. “Banalizamos a compreensão, mas tem que ter um profundo conhecimento das artes para fazer o que ele fez”, observa. Para Assunção, que não se vê em Duchamp, embora não tire o mérito da presença dele na história da arte branca europeia/norte americana, o que fica de lição do legado desse artista francês é uma fagulha de descontentamento, essencial para todos os que se expressam artisticamente.

“Toda expressão artística é válida e é de grande importância que esteja em todos os espaços que ela possa alcançar.  Devemos considerar que a Reitoria, por concentrar as questões burocráticas da Universidade, leva essa galeria a ser local de poder no qual temos maior visibilidade. Isso é bom, se usado da maneira correta. Se for para perpetuar opressões perde seu valor. Espero que façamos desse espaço um local de questionamentos, dúvidas, incertezas, um lugar de fagulhas acesas. Devemos aproveitar que a galeria é uma encruzilhada, logo um lugar de decisões importantes”, diz Assunção.

Interações simbióticas

Pincelando a história da arte em paralelo com o cotidiano, Francisco Brandão propôs a obra “Handmade”, que se tornou uma lembrança e a presença de novos espectros, possibilidades do olhar. Trata-se da mão que tapa o rosto do visitante e ao mesmo tempo o redimensiona no espaço com uma perspectiva própria. “O trabalho não deseja criar um lugar, mas alterar a maneira de perceber o que vemos. As retas que regem nossas assimilações habituais do espaço se encontram e formam elipses da realidade. Estou de certo modo brincando com um território que Duchamp e outros artistas estenderam, compreendendo que todo movimento sensível/poético e reflexivo continua a se situar e tensionar as fronteiras.”

Segundo Brandão, Duchamp se apresenta como um paradigma, uma figura que disseminou reflexões que extrapolam o campo da arte e atingem o campo da vida, cotidiana e simbólica. “Suas desconstruções e deslocamentos nos mostram outras nuances da percepção, por alargar as fronteiras, possibilitando expandir as simbologias a partir da força motriz que o pensamento duchampiano produz. Uma força do ser humano reflexivo perante o conjunto de dispositivos que ele mesmo produz e que os sucumbe. Ele pode ser ideia, matéria, relação, simbiose”, observa. 

Brandão analisa que seu pensamento estabelece uma nova possibilidade de interação simbiótica, pelo exercício de mostrar as inúmeras relações que podem se estabelecer na pós e na modernidade: “Duchamp ironizou e compreendeu os tempos, os lugares e as ações, como se os pudesse manipular, transgredi-los”. 

Obra do artista Fabrício Carvalho que estará na exposição (Foto: Divulgação)

L.H.O.O.Q

Em 1919, em passeio pelos arredores de Paris, o francês Marcel Duchamp (1887/1968) produziu um de seus mais famosos ready mades: a partir de um cartão postal da Mona Lisa, desenhou no rosto da Gioconda um bigode, um cavanhaque e escreveu as letras L.H.O.O.Q. que formam a frase “Elle a chaud au cul” em francês e, em português, o equivalente a “Ela tem fogo no rabo”. 

A ousadia ia além do lúdico e, de forma irônica, endossava a sugestão de que a pintura seria um autorretrato de Leonardo da Vinci, tido como homossexual em alguns relatos. A interferência foi considerada pelo próprio Duchamp como um ready made retificado, diferente do ready made original, que começou a “colher” em 1913, retirando objetos de um determinado contexto para exibição em outros, atribuindo determinado valor estético aos mesmos.  

Outras informações: (32) 2102-3964 (Procult-UFJF)