Nesta quinta-feira, dia 25, é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data marca o encontro de grupos feministas negros da América Latina e do Caribe, ocorrido em 1992, para combater os efeitos opressores do racismo e do machismo. No Brasil, desde 2014, também em 25 de julho, é celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, liderança quilombola do século XVIII que favoreceu comunidades negras e indígenas na resistência à escravidão.

E qual é a realidade das mulheres negras brasileiras na atualidade? Quais são os principais desafios das mulheres negras professoras e técnico-administrativas em educação da Universidade? Qual a importância desta data? O Portal da UFJF ouviu três mulheres negras que ajudam a construir a instituição, sobre as consequências da escravidão, sub-representação feminina nas esferas de poder e direito ao lugar público.

Cristina Simões Bezerra
Professora da Faculdade de Serviço Social
Ouvidora especializada em Ações Afirmativas da UFJF

Cristina Simões Bezerra (Foto: Twin Alvarenga/UFJF)

Cristina Simões Bezerra (Foto: Twin Alvarenga/UFJF)

“É difícil, não é? Essas várias expressões do mesmo fenômeno, que é o fenômeno do machismo, do racismo. Que situação complicada essa da nossa sociedade que precisa ter um dia para cada coisa. Um dia para cada uma dessas manifestações. A primeira coisa que temos que destacar é isso: o quanto a nossa sociedade, de uma forma geral, não só no Brasil, é carente de justiça, de direitos, da própria questão da dignidade, de forma que temos que afirmar um dia para cada questão. A questão que une gênero e raça, que é a mulher negra, no caso do Brasil, é muito particular, porque pensamos: em que situação as mulheres negras vieram para o Brasil? Qual foi a condição de vida delas desde o tempo da escravidão? 

Em que situação as mulheres negras vieram para o Brasil? Qual foi a condição de vida delas desde o tempo da escravidão?

A própria condição da exploração, da violência sexual, da violência de gênero se reproduzem hoje. Isso se colocou como um fundamento da sociedade. A mulher negra enfrenta problemas e questões muito diferentes de outras frações dessa sociedade, por conta do passado que a gente carrega e com o qual o Brasil não foi capaz de acertar as contas. É a mulher que cuida da casa, dos filhos, que precisa trabalhar, estudar, se afirmar politicamente. É uma série de demandas para um sujeito tão sobrecarregado de responsabilidades nesta sociedade. 

É importante destacar o quanto já conquistamos neste processo, o quanto mulheres negras são guerreiras e sujeitos de várias lutas.

No âmbito da UFJF, acho que essa situação é muito marcante também. A gente precisa pensar qual é o lugar da mulher negra na UFJF. Quantas mulheres negras temos como professoras, estudantes, técnico-administrativas em educação? É um número sem dúvida alguma relevante, mas ainda muito abaixo do que poderia ser. O que demonstra a situação de impossibilidade de acesso das mulheres negras à educação, ao trabalho e a outros espaços. É importante destacar o quanto já conquistamos neste processo, o quanto mulheres negras são guerreiras e sujeitos de várias lutas, o quanto não se faz luta hoje na nossa sociedade sem a presença das mulheres negras, o quanto são as mais atingidas por esta política de corte dos nossos direitos e o quanto a presença das mulheres negras na Universidade traz questões muito particulares e o quanto isso deve nos motivar a enfrentar outras questões.”

Danielle Teles da Cruz
Professora da Faculdade de Medicina da UFJF

Danielle Teles da Cruz (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

Danielle Teles da Cruz (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

“Dentro da sociedade racista, machista, classista, opressora, violenta, patriarcal e extremamente desigual na qual vivemos, o dia de hoje é muito simbólico e importante, principalmente se consideramos a nova ordem moral, econômica e política do nosso país que é também marcada por uma forte agenda religiosa que não respeita o Estado laico e sobretudo as religiões de matrizes africanas. Assim, embora  tenhamos que celebrar a data e ter um olhar comemorativo e afetuoso para todas as conquistas protagonizadas pelo feminismo negro e também por outras mulheres negras que fizeram e fazem a nossa história de resistência de forma praticamente anônima diante da sociedade nos seus diversos guetos, a data é também de reflexão, visibilidade e luta. 

Somos sub-representadas nas diversas instâncias deliberativas e nas esferas de poder dentro da sociedade. Isso se reflete também no interior da Academia.

Nós mulheres negras somos sub-representadas nas diversas instâncias deliberativas e nas esferas de poder dentro da sociedade. Isso se reflete também no interior da Academia e em suas mais diversas hierarquias. É nesse universo que nós UFJF estamos. Como mulher negra e lésbica posso afirmar que as diferentes formas de opressão e preconceito persistem, mesmo eu sendo docente de uma instituição de  ensino superior pública. Portanto, no contexto de vida das mulheres negras, se considerarmos ainda os marcadores que passam pela classe, orientação afetivo-sexual e pela identidade de gênero, a situação é mais grave. Há um poço que parece ser sem fundo e repleto de violência e sobretudo de violação do direito à vida. 

Pelo simples fato de ‘sobreviverem’, as mulheres negras periféricas são a configuração mais bela da resistência.

Quando falamos de ‘Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha’, estamos nos referindo a um universo plural e falando de mulheres negras em um contexto de grande injustiça social. Todos os determinantes que estão embutidos no nome que celebra a data de hoje se refletem em iniquidades sociais. Iniquidades que interferem no direito de ter esperança, possibilidades de escolha e de viver plenamente. Assim, se queremos de fato resolver essas questões estruturantes de uma sociedade injusta, precisamos superar as raízes históricas do processo de escravidão. Ao meu ver, isso passa pelo reconhecimento dos privilégios das pessoas brancas, discussões transversais sobre as temáticas em seus mais diversos espaços dentro da sociedade (incluindo movimentos sociais e sindicais), incorporação de disciplinas com conteúdos que permitam a discussão e a reflexão sobre a temática na formação acadêmica, cotas e mecanismos de manutenção dessas pessoas na Academia nos diferentes níveis de formação e escuta atenta e qualificada das mulheres negras periféricas que são a base da pirâmide social. Pelo simples fato de ‘sobreviverem’, as mulheres negras periféricas são a configuração mais bela da resistência. Não podemos nos calar enquanto a última mulher negra trans e periférica não for livre.

Dandara Oliveira
Técnica em saúde do Hospital Universitário da UFJF

Dandara Oliveria (Foto: Arquivo pessoal)

Dandara Oliveria (Foto: Arquivo pessoal)

É sempre interessante termos uma data que faça relembrar algumas coisas. Neste caso, lembramos que a base da pirâmide social no Brasil são as mulheres negras. São as mulheres negras as que mais trabalham, são também as que menos recebem. São as mulheres negras as mais precarizadas. São as mulheres negras as que mais sofrem episiotomia [incisão efetuada na região do períneo – área muscular entre a vagina e o ânus – para ampliar o canal de parto] no Sistema Único de Saúde (SUS). São as mulheres negras que mais sofrem abusos na fila do SUS, durante o parto, no acesso à saúde. São as mulheres negras que estão fora dos lugares de poder e de decisão. O que a gente percebe é que, quando essas mulheres conseguem atingir esses espaços, elas se tornam meros corpos representativos, porque a sociedade não consegue dar às mulheres lugares de poder e decisão. 

Nós mulheres temos já naturalmente no Brasil e em parte no mundo o lugar do privado. Nós não temos direito ao lugar do público.

Nós mulheres temos já naturalmente no Brasil e em parte no mundo o lugar do privado. Nós não temos direito ao lugar do público. Tanto que nós nos sentimos desconfortáveis em ocupar esses lugares e não temos oportunidade de ocupar esses lugares. Quando a gente percebe que uma ou outra mulher consegue chegar lá, ela se torna um corpo representado somente. As ideias não fluem. No Brasil, muito mais por conta da nossa criação escravocrata, as mulheres negras têm o destino do trabalho doméstico. Nós somos as mulheres que ainda mais ocupamos o trabalho doméstico no Brasil, os postos mais precarizados. Quando a gente fala de uma sociedade capitalista onde a única forma de ganhar dinheiro é o trabalho, a gente percebe que as mulheres negras têm pouco acesso à educação e à saúde, por isso elas não conseguem atingir capital humano para poder ocupar outras instâncias. 

É importante também falarmos da Marielle Franco, porque não sabemos quem mandou matá-la.

Acho que o mais importante é isso: falar desse lugar que a gente não tem. Por exemplo, quantas professoras negras existem na UFJF? Eu só conheço uma! É complicado a gente falar de representatividade e usar os corpos negros como representatividade, se no fundo nós não temos essa representatividade verdadeira na Universidade. Neste dia também precisamos lembrar das mulheres negras que foram silenciadas, cujas histórias não foram contadas. É importante a gente falar da Tereza de Benguela, da Dandara dos Palmares, que foi a mulher que governou Palmares junto com Zumbi, e ela não é mencionada na história. É importante também falarmos da Marielle Franco, porque não sabemos quem mandou matá-la.