As séries que retratam o dia a dia de médicos costumam ser sucesso na programação de TVs e sites de streaming, quase sempre destacando as altas demandas da profissão. Nelas, os plantões extenuantes, o estresse inerente à atividade e a competição acirrada entre colegas são tratadas como provações heroicas a serem superadas pelos personagens. A rotina, glamourizada na ficção, vem causando sérios impactos nas vidas de muitos profissionais reais. Essa preocupação motivou a professora Ivana Damásio Moutinho a investigar o estado de saúde mental dos estudantes de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

“Estudantes de medicina do mundo inteiro têm demonstrado um certo grau de adoecimento e queda da qualidade de vida”

Em seu estudo, iniciado em 2014, foram acompanhados 327 alunos, durante dois anos. Utilizando questionários e entrevistas internacionalmente validados, a professora abordou questões relacionadas a saúde mental desses estudantes — como ansiedade, estresse, depressão, qualidade de vida e uso de substâncias psicoativas. “Estudantes de medicina do mundo inteiro têm demonstrado um certo grau de adoecimento e queda da qualidade de vida. Indo ao encontro do projeto pedagógico da nossa Faculdade de Medicina, que é centrado nos alunos, nosso grupo de pesquisa decidiu se debruçar sobre esse tema.”

Conforme Ivana, o perfil dos estudantes de medicina apresenta alguma característica que favorece o adoecimento mental. “No Brasil inteiro, os cursos de Medicina são muito disputados e, tradicionalmente, tem os pontos de corte mais altos dos processos seletivos. Para entrar em uma faculdade de Medicina, o estudante precisa abrir mão de grande parte de sua juventude para estudar. Então, são pessoas extremamente dedicadas e determinadas. Mas não toleram frustrações.”

Depois de atravessar essas adversidades e, finalmente, entrar na faculdade, a professora pondera que os estudantes “acreditam terem encontrado um espaço ideal, onde não mais sofrerão. Que tudo será idealizado, que todos os problemas se resolveram”. Essa expectativa é confrontada com a realidade de um curso competitivo, com carga horária integral e de alta demanda cognitiva. “Nesse cenário, o estudante continua precisando abrir mão de muitas coisas. Tempo livre, horas de sono, diversão, relacionamentos, autocuidado…”

“Nós observamos que os estudantes entram na faculdade bastante ansiosos, mas essa é uma ansiedade sadia. Já no segundo período, eles se deparam com toda essa cobrança e começam a apresentar altas cargas de estresse e sintomas depressivos.” Conforme a professora, a ocorrência desses sintomas entre os alunos pode ser cíclico, se intensificando em determinados momentos do curso, e regredindo em outros.

Porém, sua preponderância entre os estudantes da Faculdade de Medicina da UFJF é preocupante. Os resultados encontrados na pesquisa apontam que cerca de 50% dos estudantes que responderam os questionários apresentaram alguma forma de adoecimento mental. Desses, aproximadamente 25% passaram a mostrar sintomas somente após ingressarem no curso. “Isso nos leva a pensar que o curso de Medicina, mesmo não sendo a causa, favorece o adoecimento.”

Na maior parte dos casos, as altas demandas do curso simplesmente agravam sintomas pré-existentes. A própria preparação dos estudantes para conseguir ingressar na faculdade – que costuma durar anos – parece ser um fator importante nesse sentido.

Além do histórico prévio de estresse, ansiedade ou depressão,  a pesquisa conseguiu identificar alguns “preditores negativos” para o adoecimento dos estudantes. Conforme a professora, estar nos primeiros períodos do curso, ser mulher, ter baixa renda, não ser branco são elementos que contribuem para a diminuição da qualidade de vida (física e psicológica) dos alunos.

Desenvolvida durante o doutorado de Ivana no Programa de Pós-graduação em Saúde da Faculdade de Medicina (PPGS), essa pesquisa quantitativa abarcou todos os estudantes da Faculdade de Medicina entre 2014 e 2016. Desses, 327 foram acompanhados ao longo dos dois anos. “Porém, o trabalho continua com a turma do primeiro período de 2014, e vai seguir até sua formatura. Nessa ocasião, vamos realizar uma pesquisa qualitativa, entrevistando esses alunos. Dessa forma, esperamos encontrar os porquês dos dados que encontramos.”

“O estudante de Medicina tem receio de assumir suas dificuldades emocionais, assim como a maioria das pessoas na sociedade […]  ‘como uma pessoa que está se preparando para cuidar do outro vai admitir que não está bem?’”

Até lá, como conclusão da parte quantitativa do estudo, o Núcleo de Geriatria e Gerontologia (Nugger) – grupo de pesquisa do PPGS, coordenado pelo professor Giancarlo Lucchetti, onde Ivana está inserida –  vem investindo na promoção de saúde dos estudantes. “Nós temos trabalhado na prevenção dos sintomas e no fortalecimento da autoestima dos alunos. Isso inclui oferecer dicas de estudo para auxiliar nas demandas do curso, capacitar os estudantes para o enfrentamento das dificuldades, oferecer as oficinas de mindfulness [técnica de meditação laica] e rodas de conversa com psicólogos, além de debater as próprias questões que envolvem a saúde mental.”

“A procura por essas atividades ainda é baixa. A pesquisa, assim como as práticas que temos realizado na Faculdade, mostram que o estudante de Medicina tem receio de assumir suas dificuldades emocionais, assim como a maioria das pessoas na sociedade. Nessa cultura, isso parece ser ainda mais forte: ‘como uma pessoa que está se preparando para cuidar do outro vai admitir que não está bem?’. Nós acreditamos que esse falar sobre auxilia no enfrentamento das dificuldades e auxilia na qualidade de vida”, conclui.

Confira a tese na íntegra:

“Estresse, ansiedade, depressão, qualidade de vida e uso de drogas ao longo da graduação em medicina: estudo longitudinal”