Uma garrafa lançada ao mar, uma pedra sobre um rosto, um véu que referenda o código dos excluídos. Essas são algumas das ideias que fluíram para a coletiva “Vida e Paixão – Tributo ao centenário de nascimento de Emeric Marcier”, integrante da programação do 27º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga do Centro Cultural Pró-Música-UFJF, promovido pela Pró-reitoria de Cultura (Procult) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
A exposição, idealizada pela pró-reitora Valéria Faria, acontece na Galeria Renato de Almeida do Centro Cultural Pró-Música/UFJF, reunindo 14 artistas que oferecem ao público sua releitura sobre um dos principais muralistas do século XX. A abertura será às 20h desta quinta-feira, 28, com visitação até 17 de agosto.
Cássio Tassi, Eduardo Borges, Fabrício Carvalho, Francisco Brandão, Letícia Bertagna, Nina Mello, Paulo Alvarez, Pinho Neves, Priscilla de Paula, Raízza Prudêncio, Ricardo Cristofaro, Sandra Sato, Thiago Berzoini e Valéria Faria assumiram o desafio de apresentar sua releitura da obra do artista romeno que se naturalizou brasileiro após se converter do judaísmo para o catolicismo. A complexa tarefa se traduziu em diferentes olhares e técnicas para execução das ideias, que ganharam forma em fotografias, pinturas, esculturas e instalações.
A pró-reitora de Cultura destaca que Emeric Marcier merece ser reverenciado não apenas no momento de seu centenário. Valéria Faria lembra que seu primeiro contato com os afrescos do pintor se deu nas aulas de História da Arte, em que era apontado como um mestre dos mais conceituados no Brasil e no exterior. Em recente conversa com Matias Marcier, filho do pintor, ela conseguiu a anuência do Museu Casa de Marcier para expor os originais do artista e já estuda uma data para uma eventual mostra.
Entre códigos e véus
A fotógrafa Nina Mello mergulhou seu trabalho em torno da Santa Ceia, aprofundando-se na pesquisa a respeito de um dos símbolos do Cristianismo, o peixe, apresentado na obra ICHTHUS – acróstico grego para a frase “Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador” –, a partir de duas fotografias sobrepostas e acrescidas de um véu. “O tecido entra na composição como ‘intermeio’ daquilo que é velado, referendando tanto o Santo Sudário quanto os grupos de pessoas que se mantêm ainda hoje em guetos de identificação sexual, tal qual faziam os primeiros cristãos em reuniões secretas para não serem massacrados em função de sua crença.”
Nina lembra que, nos séculos IV e V, os cristãos utilizavam códigos para a comunicação sigilosa entre si. Marcando portas, documentos e reuniões, ao desenho de uma meia-lua se acrescia outra meia-lua, esta invertida como resposta de identificação, resultando na imagem final de um peixe, elemento da Santa Ceia de Marcier. “Entendo que fazer a releitura de uma obra é tarefa das mais complexas, porque inclui a ruptura com determinados paradigmas do artista”, diz, lembrando que seu trabalho para a exposição é uma interpretação oposta à do muralista.
Brincando com a memória
Conhecido pelo trabalho com as penas de gesso que despertaram a curiosidade da população juiz-forana no Calçadão da Rua Halfeld, em maio, Francisco Brandão volta a buscar o lúdico na mostra em homenagem a Marcier: “O novo trabalho é uma brincadeira com os períodos da história da arte e uma busca de inserção da memória nesse processo de história como conjunto de fatos. Busco referências na pintura de observação se contrapondo à pintura de memória, a bidimensionalidade chapada do suporte com a oposição da visão humana. Tecnicamente, uso vidro e tinta fresca para moldar de maneira pictórica a paisagem do artista e de Juiz de Fora”.
Para Brandão, o tema da religiosidade em Marcier é trabalhado de diversas formas, seja de maneira contemplativa, questionadora, submissa ou conspiratória. “Seus afrescos carregam consigo poder e exuberância. Sua admiração por artistas italianos o dota de belíssima construção visual e carga emotiva. Em publicações sobre seu trabalho, pode-se destacar a dramaticidade e o poder reflexivo de sua pintura fortemente conectada a essa temática, o que abre espaço para uma diversidade de técnicas e questionamentos humanos que se entrelaçam em uma santidade alcançada pela arte”.
Thiago Berzoini participa da homenagem com a obra Del Rei 13:11, que remete tanto às referências bíblicas na obra de Marcier quanto às cidades históricas mineiras. “Utilizo a figura de uma besta em contraponto com a delicadeza de imagens de igrejas e ruas de centros históricos. Relaciono essa mistura à passagem bíblica do Apocalipse, 13:11. A citação é: ‘E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro; e falava como o dragão’”, uma referência ao mural Apocalipse, que está na Capela do Cenáculo São João Evangelista em Juiz de Fora.
Aventura ao mar
Ao receber o convite para participar da coletiva, Sandra Sato buscou uma forma de associar seu trabalho com o Festival e com a música. “Não é uma exigência do convite, mas eu sempre gosto da ideia de conjugar todo o contexto. Achei encantador trabalhar com o centenário porque acredito que tanto o Festival quanto a exposição têm uma pegada de memória que é fundamental.”
“Confesso que conhecia pouquíssimo o artista e que havia apenas visto a obra Apocalipse, que está no Cenáculo, mas isso foi há alguns anos e sequer associei de imediato”, conta Sandra, que pesquisou sobre a trajetória do artista: “Vi que Marcier veio para o Brasil na década de 1940, o que me chamou a atenção e fiquei imaginando como foi toda a experiência de chegar a uma terra nova e como isso pode ter influenciado na produção artística dele. A partir daí, pensei em uma ambientação que remetesse a essa aventura, atravessar o mar e chegar a um novo continente”.
Sandra imaginou para o seu trabalho elementos que lembrassem a viagem, como um Mapa Mundi, ao que inseriu uma garrafa, remetendo tanto às mensagens que são atiradas ao mar quanto às longas expedições em que os viajantes se reúnem para beber e contar histórias. “Acrescentei ao garrafão uma concha que também traz significados que me interessaram, como a origem – segundo alguns mitos pagãos, o homem surgiu das águas do mar – e o som – daí a relação com a música e o festival.”
Um eterno ir e vir
Eduardo Borges, que experimentou as dificuldades de pertencimento ao deixar Juiz de Fora para estabelecer sua carreira no Rio de Janeiro, pensou na força dos sentimentos que envolvem os movimentos de migração, desde o drama da caça aos judeus na II Guerra Mundial, que empurrou Marcier para o Brasil, até a atual saga dos árabes em fuga dos ataques terroristas do Estado Islâmico. Sua obra para a mostra, um retrato dos anos 1940, em óleo sobre tela, exibe uma pedra sobre o rosto de uma menina, como a roubar-lhe a identidade.
“Ganhei essa pedra há 15 anos, era uma partícula dos escombros de uma antiquíssima casa em Deir-El-Qamar, região católica maronita do Líbano. Essa transição física, o desprendimento das paredes, a dissipação corpórea, fenômenos ativos em todas as pessoas, em todas as famílias. Esse trabalho, iniciado em 2014, faz parte de uma série de pinturas e desenhos, que simulam fotografias antigas – fotos pertencentes aos meus álbuns ou alheias – com a pedra interferindo de algum modo na leitura desses retratados. Intuo entre o sentido de passagem, mestiçagem, fronteiras, o diferente, o estrangeiro e o nacional, o migrante e o imigrante. Pensamentos e articulações frequentes em todos nós, reiterando o desdobramento contínuo de si mesmo.”
Deportado para a vida
Romeno judeu nascido em 1916, Emeric Marcier chegou ao Brasil em 1940, fugindo das perseguições nazistas que marcaram a II Guerra Mundial. Trazendo na bagagem anos de estudos em escolas de belas artes de Portugal, Itália e França, fixou residência no Rio de Janeiro, onde ascendeu como pintor, mudando para a mineira Barbacena em 1947. Convertido ao catolicismo, fez de Jesus Cristo tema de sua obra mural, realizada principalmente entre os anos 1946 e 1960, em cidades de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, estruturando em capelas e igrejas uma narrativa pictórica da Vida e da Paixão de Cristo, cuja complexidade inclui elementos da fé judaica, referenciando suas origens.
Em Juiz de Fora, seu afresco Apocalipse, também intitulado de Adoração ao Cordeiro, instalado na Capela do Cenáculo São João Evangelista, foi tombado pelo município. Alvo de polêmicas à época de sua criação, chegou a provocar a resistência do bispo Dom Geraldo em aceitar o trabalho. Encomendada para despertar fé e esperança nos fiéis, a pintura retrata o peso das forças do mal em luta contra o bem, com anjos vermelhos posicionados como guerreiros em prontidão para o julgamento final de Deus sobre os homens. Situada no recinto interno que ladeia a direita da Capela, a obra evidencia a importância da religião na vida de Emeric Marcier.
Naturalizado brasileiro, em sua autobiografia Deportado para a vida, Emeric Marcier fala de seu amor pela arte e pelo Brasil: “Só me restava a pintura, verdadeira razão que me fizera vir até aqui, de tão longe. Sempre lutando com os ventos, fincaria meu cavalete para poder trabalhar e dar vazão ao meu amor”. O artista faleceu em Paris, aos 73 anos, vítima de enfarte. Seu corpo foi enterrado em Barbacena, cidade onde constituiu família ao lado da enfermeira Julia Rosa, com quem teve sete filhos. Sua residência foi transformada no Parque Museu Casa de Marcier, em funcionamento.
A Galeria Renato de Almeida do Centro Cultural Pró-Música/UFJF fica localizada na Avenida Barão do Rio Branco 2.329, no Centro da cidade.
Outras informações: (32) 2102-3964 (Pró-reitoria de Cultura-UFJF)
(32) 3218-0336 (Centro Cultural Pró-Música-UFJF)