O escritor e jornalista angolano Augusto Alfredo Lourenço conta suas experiências de vida e a sua inserção no mundo da escrita
Reportagem: Messias Matheus
Fotografia: Franciane Lúcia
Edição: Márcia Falabella
1970. Um menino de sete anos de idade caminha descalço rumo à escola. Nas mãos, traz os poucos cadernos e os sapatos limpos. No coração, a vontade de aprender a ler e descobrir um novo mundo. Ele levantou cedo, às 5h da manhã, e precisa se apressar, pois o caminho é longo e o dia já começa a clarear. Sai de casa e pega o caminho trilhado todos os dias. Os pés tocam a terra fria; os capins ainda molhados pelo orvalho da noite umedecem as canelas do menino que segue com passos firmes até chegar à estrada de terra. A caminhada é longa. Quando se aproxima da cidade, corre até o rio, lava os pés e calça os sapatos para pisar na rua asfaltada. Após 16 km de andança, o menino chega à escola, veste a bata, uniforme que o identifica como estudante daquele colégio, e mergulha no universo das letras e números.
O menino, que se chama Augusto Alfredo Lourenço, nasceu em 1963, em uma aldeia situada a 16 km da cidade de Amboim, província do Kwanza Sul, em Angola. Filho de Alfredo Lourenço e Conceição Francisco Duri, Augusto Alfredo cresceu nas cercanias de uma fazenda colonial onde via os trabalhadores indígenas plantar e colher o café. Esses trabalhadores eram capturados em suas aldeias e levados para essas fazendas onde viviam de trabalhos forçados, condições sub-humanas e recebiam míseros salários. Após a temporada de produção, que durava entre 6 meses a um ano, essas pessoas eram devolvidas para suas casas. O menino não entendia bem aquela situação, mas gostava de ouvir o canto dos trabalhadores, nas eiras dos cafezais. Um canto forte de acalanto e esperança.
Na volta da escola, por volta de 12h30, um cheiro delicioso de comida portuguesa vindo de um restaurante localizado ao lado do colégio encantava o menino. O tempero era diferente daqueles utilizados na culinária africana. “O meu sonho era saborear um prato de comida europeia, porém eu não tinha acesso. Então, desde pequeno, comecei a sonhar em ser garçom, pois eu acreditava que a profissão era a melhor forma para eu poder comer no restaurante europeu”, relembra o jornalista e escritor Augusto Alfredo. No entanto, o sonho de ser garçom não apagou o desejo de estudar. O menino que crescia foi para a maior e melhor escola primária da cidade. “Meu pai dizia que, para sermos funcionários públicos, teríamos que estudar nas melhores escolas dos portugueses”, conta.
A vida seguia seu curso. A infância humilde, mas feliz, na família de muitos irmãos, a convivência na aldeia e o sonho de estudar e se tornar alguém na vida foram abaladas com os rumores da guerra que se instalou no país, em 1975, no processo de independência. Angola era uma das últimas colônias de Portugal; naquela época, havia um forte desejo dos angolanos se libertarem politicamente do país europeu e tocar suas vidas seguindo suas próprias regras e tradições. Porém, após a conquista da Independência Angolana que ocorreu em 11 de novembro de 1975, o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União pela Libertação Total de Angola (Unita) iniciaram uma guerra civil para definir quem governaria o país. Aos 12 anos, o adolescente vivenciou histórias de dor, morte e fuga. A guerra sangrenta que vitimou milhares de angolanos perdurou por anos e deixou marcas que ainda são visíveis. “Tivemos que pegar em armas para defender nossa aldeia. Depois fugimos para as matas em busca de um lugar seguro longe do conflito. A fome e a insegurança tomaram conta do país”, recorda Augusto.
Aos 18 anos, em 1981, durante o auge da guerra, Augusto Alfredo foi arregimentado para as forças armadas angolana. “Parti sem despedir dos meus pais; tenho certeza que minha mãe ficou chorando”. Na Marinha, após a formação básica militar, o jovem soldado foi transferido para o setor de Educação Patriótica; naquele lugar foi lhe dado como primeira função buscar o jornal diariamente na banca que ficava a cerca de 500 metros do quartel. “Naquela época, somente os chefes tinham acesso aos jornais, porém como eu era responsável por buscá-lo, passei a ter contato com as informações. Também tive acesso à biblioteca de um antigo funcionário, onde li vários livros do acervo”, ressalta.
O ingresso nas forças armadas, mesmo em um período conturbado no país, deu ao jovem a oportunidade de estudar e conhecer outras realidades. Em 1991, iniciou-se o processo de paz entre o governo e as forças insurgentes. No ano de 1992, aconteceram as primeiras eleições presidenciais e legislativas no país, porém, a não aceitação do resultado pelo movimento Unita gerou um novo e sangrento conflito que vitimou milhares de angolanos.
Aventuras no Brasil
Em 1994, ano em que o Brasil sagrou-se tetracampeão na Copa do Mundo de Futebol, Augusto Alfredo e mais de cem militares angolanos desembarcaram no país para cursar o ensino superior. As bolsas de estudo oferecidas pelo governo brasileiro abrangiam as diversas áreas do conhecimento; Augusto Alfredo veio para Juiz de Fora estudar Comunicação Social na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Tínhamos um destino traçado, mas não conhecíamos ninguém e nada aqui no Brasil. Só conhecíamos o país pelas novelas que eram reprisadas em Angola. Cada um foi para uma região do país”. A adaptação aos costumes locais, a falta de notícias dos familiares que ficaram em Angola em meio à guerra civil, as dificuldades financeiras enfrentadas no Brasil e a morte de sua filha Edna foram alguns dos percalços enfrentados pelo então universitário angolano em terras brasileiras. Essas experiências, inclusive sua passagem pelo Grupo Divulgação, deram origem em 2011, ao livro “Aventuras de um estudante angolano no Brasil” que foi lançado no dia 15 de dezembro, no Forum da Cultura.
A obra produzida a partir de reflexões sobre uma carta deixada pela filha, que morreu atropelada por um caminhão, trouxe à tona sentimentos e emoções vivenciadas em sua estadia no país. O autor afirma que nunca teve pretensão de escrever um livro, porém, os acontecimentos ganharam intensidade e passaram a ter significado em sua vida. “A única coisa que eu guardava da Edna era uma carta. Eu guardei aquela correspondência na minha carteira por vários anos até que, no dia do meu aniversário, ganhei uma carteira nova. Quando fui transferir os objetos da carteira velha para a nova, vi a carta de minha filha. O papel estava amarelado e com marcas de desgaste do tempo. Pensei: até quando guardarei esta carta?”, conta emocionado. O livro que surgiu a partir desta indagação, foi lançado em 2010, em Angola e Portugal com o título “Aventuras de um estudante angolano no estrangeiro”.
De volta às raízes
Depois de concluir a graduação em jornalismo, em 1998, Augusto Alfredo retornou ao seu país, que ainda enfrentava os conflitos civis. Iniciou sua carreira como jornalista no Jornal Angola, único periódico impresso do país naquela época. Trabalhou como repórter e editor no caderno de economia, onde, na produção de reportagens, teve contato com cidadãos angolanos que vivenciaram as atrocidades da guerra. Na produção de matérias especiais sobre a comemoração dos 30 anos de Independência de Angola, Augusto Alfredo sugeriu ao jornal trazer uma angulação diferente para as reportagens de economia. Ao invés de ouvir economistas e especialistas do mercado, Augusto viajou ao interior do país para resgatar histórias de cidadãos humildes e suas experiências sobre os diversos fatores econômicos do país. “A melhor forma de se avaliar uma situação é ouvir o povo. No início, a ideia não foi bem aceita pelo editor, mas depois que o material ficou pronto, parte foi publicado no caderno especial em comemoração à Independência e o restante publiquei em um livro”.
A edição especial alcançou estrondoso sucesso no país, e, em 2007, foi transformado no livro “Memórias Precoces – Luanda-Gabela, uma viagem de 30 anos”. Para comemorar os 40 anos de Independência do país africano, a reedição, também lançada no dia 15 de dezembro, Forum da Cultura, ganha o título “Angola 40 anos: Memórias de um repórter”. O jornalista relembra momentos da produção das entrevistas e as dificuldades superadas neste processo. “Como o jornal não tinha um carro para me levar ao local das entrevistas, peguei um táxi até a Gabela, e depois tomei outra condução até a minha aldeia. Essa impossibilidade me apresentou novas perspectivas; dentro do táxi conheci várias pessoas e suas histórias.” Isso contribuiu para a pluralidade de olhares e opiniões sobre a economia local, o que confere ao livro uma riqueza de detalhes e originalidade ao tratar o tema por esta angulação.
Quando já estou concluindo a entrevista, Augusto Alfredo retorna a uma fala do início da entrevista. “Você se lembra quando te disse que queria ser garçom?”. Afirmo positivamente balançando a cabeça. “A profissão do garçom é a melhor do mundo; ele é a única pessoa que se coloca à disposição do outro para matar a sua fome e sede. Ele atende, ouve, sugere, serve.” Comparando-se ao trabalho exercido por um garçom, Augusto Alfredo resume suas buscas e descobertas que perpassaram sua trajetória profissional. “Eu percebi que o que procurava já era a minha realidade. Toda vez que escrevo me coloco à disposição do outro, então não escrevo para mim, escrevo para o outro. Isso de forma simples, com elegância e qualidade”, conclui com a convicção e a experiência de quem já vivenciou histórias e sentiu na pele as mazelas que a vida às vezes nos prega.
Com a voz mansa e convicta e um sorriso que ilumina a face, o escritor, jornalista e garçom das palavras, encerra a fala otimista com o retorno ao Brasil. Agora veio representar sua nação, como adido militar das Forças Armadas Angolana, em Brasília. Como o menino que caminhava rumo à escola, o homem segue sua trajetória plantando amizades, cultivando pessoas e semeando histórias por onde passa.