O humor ácido do texto radiografa o grande conflito da sociedade contemporânea. A impossibilidade de três filhos, por motivos pessoais, cuidarem do pai que enviuvou gera a contratação de cuidadoras, o que não é bem recebido pelo velho. A luta será travada com humor e denuncia o descaso da sociedade atual com a saúde dos idosos.
O espetáculo propõe um debate sobre a situação da família brasileira na contemporaneidade e o abandono dos velhos pelos filhos em virtude da luta pelos bens da sociedade de consumo. O desaparecimento do amor e da ética numa sociedade em que os laços humanitários desaparecem. Depois de “A escada de Jacó” o grupo volta a por o dedo na ferida do tratamento de idosos na atualidade.
A montagem do Grupo Divulgação tem texto e direção de José Luiz Ribeiro que volta aos palcos como ator. No elenco Márcia Falabella, Fátima Amorim, Michel Costa, Marina Metri, Walmor Machado e Victor Dousseau.
A temporada terá início no dia 15 de outubro e será encerrada em 30 de novembro, de quarta a domingo, sempre às 20:30 h no teatro do Forum da Cultura, à Rua Santo Antônio, 1112.
Tempo de sinais
O século da era de aquarius chegou. O tempo de paz e concórdia explode em guerras, degolações, incompreensão e desumanidade. O que acontece com a sociedade que permite uma vida longa e não dá aos seus velhos o fruto de tanto trabalho e emprenho para que os filhos alcançassem os louros de uma vida vitoriosa.
Existia uma fábula que, antigamente era contada nos livros que mostrava uma sociedade onde os velhos eram abandonados numa montanha para morrer. Era um costume ancestral. Certa vez um filho levou o pai para cumprir o rito de desembaraço social. Antes de se despedir deu ao pai uma manta para que ele se agasalhasse do frio. O pai pede então ao filho uma faca por empréstimo. O filho se assusta e pergunta para que, meu pai você quer a minha faca. O pai insiste no pedido e assustado o filho empresta a faca. O pai pega a manta e a divide em dois pedaços. O filho pergunta – O que o senhor está fazendo? O pai responde – tome, leve este pedaço, pode ser que seu filho não seja tão bom como você está sendo comigo. O filho pára, reflete e leva o pai de volta. Estava inaugurado um novo costume que elegia o velho como guardião da sapiência e dos costumes.
“Cuidados de Amor” é um recado para o novo tempo em que a sapiência está enclausurada no Google e a história dos nossos velhos não é tão importante no tempo da tecnologia em que o olhar não mais procura o outro olhar, mesmo quando estamos em uma reunião. A voracidade de Saturno que devorava os seus próprios filhos está presente no tempo da desmemoria. Um tempo em que se procura tanto estudar a identidade que nasce da alteridade, se discute memória na academia e a vida passa pela janela de Carolina. Hoje as Carolinas, do Chico Buarque, se multiplicaram e a janela é um tablete que nos faz saber do que acontece no vasto mundo e nos aliena do quintal que não mais existe.
“Cuidados de Amor” é um irônico nome para tratar do nosso tempo. Para tratar do abandono da família diante das urgências da vida e do
desempenho solitário em estradas que buscam o sucesso em outros espaços. Ela nos mostra a diáspora dos filhos que buscam oportunidades em outros espaços geográficos.
Ela nos dá instrumento para refletir e analisar um tempo em que o futuro chegou e não nos trouxe a compensação de desfrutar a terra prometida. Estamos diante do paraíso perdido onde até a nascente do velho Chico secou. E tudo se derrama numa falta de amor à natureza e um hino de louvor ao Bezerro de Ouro.
Tempo de descarte. Crianças sendo assassinadas não só pelas madrastas, mas pelos próprios pais. Um debate moderno sobre o aborto como se a matança dos inocentes fosse um episódio da vida de Cristo. Certamente pode-se exigir os diversos direitos do corpo, da saúde e da independência de cada um vivente.
Nossos velhos estão vivendo mais e, em algumas vezes, deixam de ser os abastecedores da despensa familiar para exigir cuidados de amor. No momento de tantas defesas de individualidades temos muito a pensar.
José Luiz Ribeiro
Cuidados de vida, amor pela cena
O texto tinha um destino certeiro: participar de um concurso de dramaturgia. A leitura com o elenco do Grupo Divulgação era apenas
para que conhecêssemos a obra e o autor, José Luiz Ribeiro, tivesse uma ideia do impacto de sua criação. E o impacto foi enorme, tão definitivo que a peça não foi inscrita no concurso (que pedia uma obra inédita) para ganhar uma montagem no palco do Forum da Cultura.
E assim, embarcamos em mais uma produção, cientes do novo desafio. Desta vez, José Luiz, em sua textura dramática, experimenta tonalidades tão ao estilo de Tennessee Williams e Arthur Miller para criar um drama denso e poético, em que o riso ácido aparece vez por outra para conduzir a ação até o seu desfecho final.
A trama está calcada na crueza dos tempos em que vivemos. As personagens estão no xeque diário de escolhas necessárias e que envolvem perdas drásticas. Agem no fluxo líquido das relações que escorrem através de individualismos que norteiam o comportamento social predominante hoje. Há uma urgência em se viver a própria vida, diante do inevitável fantasma da morte.
Cuidados de Amor é o 140º texto de José Luiz Ribeiro. Enquanto escritura dramatúrgica dialoga com A escada de Jacó e Juizado de pequenas perdas. Em Jacó, discute-se a solidão dos velhos numa clínica de idosos; em Juizado, as relações humanas são dissipadas pelas mudanças tecnológicas; em Cuidados de Amor, um pai vê sua liberdade tutelada pelos filhos. São peças que falam do esquecimento, da memória, do abandono, da solidão e da finitude. O antídoto é a crença no amor e a esperança na essência social que trazemos dentro de nós. Cuidar é uma palavra definitiva na trama.
Nosso teatro é fundamentado na construção de um repertório. Celebramos os textos universais como referenciais de um saber maior e de um aprendizado necessário. Trouxemos à cena dramaturgos nacionais com um sotaque próprio, para falar dos nossos problemas. E, naturalmente, uma dramaturgia própria se fez necessária e foi construída por José Luiz Ribeiro a partir de carências e dos objetivos do grupo.
Usamos o palco, em sua sabedoria e sensibilidade reveladora, para uma vez mais, fazer o teatro que acreditamos. Reflexão e delicadeza. Realidade e ficção. Riso e drama. Cruzamentos tão profundos e tão plenos que trazemos agora para compartilhar com o nosso público.
Márcia Falabella