Exposição propõe “transliteração” da palavra para a linguagem artístico-visual (Foto: Procult/UFJF)

Exposição propõe “transliteração” da palavra para a linguagem artístico-visual (Foto: Procult/UFJF)

São 32 os artistas visuais que aceitaram a proposta da Pró-reitoria de Cultura da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para uma desafiante empreitada em torno da obra do escritor português Fernando Pessoa: dialogar com um poema de um dos maiores nomes da literatura mundial, realizando uma operação de “transliteração” da palavra para a linguagem artístico-visual. O resultado é a mostra Personas – Transliterações Poéticas em Fernando Pessoa, que terá abertura nesta quinta-feira, 21, às 20h, na Galeria Reitoria, campus da UFJF.

A exposição é uma homenagem aos 130 anos de nascimento do autor, comemorados em 2018. A Procult chamou 15 artistas com a tarefa de convidarem outro artista para tomar parte na mostra com uma obra inédita, criada com exclusividade para Personas. Aos pares ou trios, compartilhando o mesmo poema ou não, os participantes se debruçaram sobre textos de Pessoa, no esforço coletivo de expressar visualmente a densidade das inquietações de um escritor tão singular e imenso, que se desdobrou em vários outros poetas – dezenas de outros –, com a criação de heterônimos. Os mais conhecidos e publicados são Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares – cada um deles com biografia, personalidade e estilo diversos.

A proposta cativou os artistas, que avaliaram a iniciativa da pró-reitora Valéria Faria como uma forma de estreitar os laços entre si e de diversificar as visões artísticas sobre a literatura do grande escritor português: “Essa multiplicação de ideias e pontos de vista dos fatos poéticos é bem oportuna, já que  Personas é uma homenagem a Fernando Pessoa, que era um artista múltiplo”, afirmou Flávio Ferraz, artista convidado de Heloísa Curzio. Para Vermelho – convidado de Fabrício Carvalho –, a proposta promove uma espécie de co-curadoria, além de estimular a afinidade entre as poéticas e agenciar parcerias artísticas, fomentando outros circuitos.

“O expediente artista-convida-artista é interessantíssimo, pois nos propicia uma ampliação de atuação, de reforço do nosso processo de trabalhar no cerne da exposição”, observa Mário Azevedo, que participa de Personas como convidado de Ricardo Cristofaro. Ele lembra, inclusive, que “a curadoria da próxima Bienal Internacional de São Paulo – a cargo do competente Gabriel Perez-Barreiro – também convidou sete artistas, de várias procedências do mundo, para elaborar mostras coletivas pensadas sobre seus próprios contextos criativos, buscando outras experiências curatoriais, mais densas e sensíveis”.

A ideia de convidar outro artista para compartilhar o desafio de Personas propiciou a Petrillo a oportunidade de uma parceria inédita com o amigo Ricardo Mendonça, que foi seu colega de faculdade. “Fizemos o trabalho juntos”, conta Petrillo, ressaltando que o resultado testemunha o diálogo entre eles, com aspectos formais que se repetem nas obras. Os dois trabalharam o mesmo poema, Lisbon Revisited, de Álvaro de Campos, mas, apesar das afinidades, cada um apresenta sua própria ideia de finitude expressa no texto.

Ricardo Mendonça trabalhou o tema visualmente com opostos, como claro e escuro, buscando traduzir de forma estilizada o embate morte e vida. Para Petrillo, foi difícil entrar no universo tumultuado do heterônimo de Pessoa, um “ambiente meio adverso, angustiante, de solidão que o acompanha, com a certeza insistente da morte”. O artista se apoiou em palavras-chave do texto – como vazio – e a partir delas fez associações com espaços, tema que sua obra investiga: “Trouxe para minha zona de conforto”, explica Petrillo, que encontrou a solução para o trabalho ao fazer um “loteamento dos universos interiores” criados pelo poeta. Apesar do desafio, a experiência de mergulhar no universo do outro instiga a criatividade. E embora recorrente, a proposta de envolver linguagens artísticas diferentes é, sem sua opinião, sempre positiva: “Gosto dessas iniciativas, porque os resultados são surpreendentes”, conclui Petrillo.

Identidades

Para Vermelho, a transliteração, ou tradução intersemiótica, é um “exercício  experimental muito bom,  capaz de abrir horizontes de criação”. A estratégia, segundo ele, é sempre um desafio, “pois solicita do artista uma busca ou uma capacidade de interpretar a obra de partida, muitas vezes de difícil conexão com a poética particular ou trajetória do artista visual”. Ao trabalhar o poema Ah, onde estou ou onde passo, ou onde não estou nem passo, de Álvaro de Campos, ele – que desde 2015 realiza uma pesquisa de autoficção com escrita de cartas datilografadas e lançadas em garrafas pela cidade – optou por enviar sua correspondência para o heterônimo de alma angustiada de Pessoa.

Há três anos também o artista se tornou um outro, que assumiu o nome Vermelho. Convencido de que ninguém é uma personalidade monolítica, ele iniciou esse “processo de outrar-se”, que guarda semelhança com as múltiplas identidades do poeta homenageado e lhe permitiu estabelecer um “diálogo muito forte” com Pessoa. A relação estética, segundo ele, também perpassa essa ideia de se tornar outro – caminho que vai chegar às vias legais, com a mudança oficial de nome. A ideia desenvolvida para sua participação em Personas desencadeou uma série que Vermelho está levando para seu mestrado em Artes Visuais na UFJF, e que incluirá ainda o envio de telegramas para Alberto Caeiro e cartões postais para Ricardo Reis.

A proposta visa a criar “correspondências poéticas e exercícios de imaginação” para o cotidiano: “A ideia cria uma performance na escrita, tanto no fato do uso da máquina de escrever [que investe na visualidade da escrita à máquina como algo próximo da gravura], quanto no ato de lançar a carta pela cidade”, explica, ressaltando o rompimento de fronteiras entre real e imaginado, cotidiano e ficção. Além da cópia que poderá ser vista em Personas, outra via será deixada em uma garrafa na porta de uma tabacaria no bairro São Mateus, na tarde de abertura da mostra.

Chaves simbólicas

Para Mário Azevedo – artista de Belo Horizonte com um “carinho especial pela cena artística de Juiz de Fora” –, desafios como o proposto pela mostra Personas são sempre produtivos. “O meu trabalho artístico sempre operou com a ideia de visualidade/textualidade, de escritura sígnica. Tenho sentido, realmente, que é na linguagem que tudo acontece”, afirma ele, que produziu um trabalho em pintura/desenho sobre colagem de papéis. “Ele se inseriu muito naturalmente em uma série de obras que venho fazendo há um ano ou dois, que busca uma ampliação, um aprofundamento, da ideia de ver sobre ler. Penso que são alguns esquemas, diagramas, contra-operações de disposições e superposições, de chaves simbólicas de comunicação”, complementa. Para ele, a quem coube transliterar o poema O que me Dói não é, assinado pelo próprio Pessoa, o ponto de partida foi certa “angústia delicada, um encaminhamento para um quase-nada, pleno de um movimento enlevante”, que se percebe na poesia do autor.

Também escritor e compositor, Flávio Ferraz transita bem entre as duas linguagens artísticas. “Quando me ocorre uma ideia normalmente eu faço um poema. Quando eu pinto, tento me abstrair do pretexto que me levou a pintar e absorver a sensação do ato, envolvido pelas cores, formas e técnica. A técnica me sugere soluções e faz o caminho do trabalho.” Para Personas, o artista transliterou o célebre poema Todas as Cartas de Amor são Ridículas, de Álvaro de Campos, no qual o autor, em sua avaliação, mostra-se cheio de desejos e receios confusos. “O poema é suave e sincopado, leve como uma pluma oscilante na brisa, cheio de subtextos e ondulações no querer e negar, dégradé de cores que vão do sépia da memória ao azul de um porvir feliz”, afirma Ferraz, que assim visualiza o texto em sua obra Carta de Amor, uma pintura digital.

Conterrânea de Fernando Pessoa, a premiada artista Teresa Cortez – que tem trabalhos de azulejaria em murais públicos e privados de Lisboa – é a representante de Portugal na exposição, como convidada de Júlia Vitral. Ceramistas, ambas trabalharam o poema Passagem das Horas, de Álvaro de Campos. A artista portuguesa avaliou que a abordagem adequada para o diálogo poético com esse texto metafórico seria também recorrer a metáforas. O resultado são duas cerâmicas que representam o dilema constante de Pessoa entre “ter a sua vida real firmemente ancorada no seu país, na sua cidade, agarrada ao seu solitário lugar de conforto caseiro” e “um onírico e irreprimível desejo de evasão manifestado através da sua fértil imaginação, idealizando viagens por várias partes do mundo, nomeadamente pelo oriente exótico, narrando histórias, encontros, vivências nunca acontecidas na vida real de Fernando Pessoa”.

Em cartaz até agosto deste ano, Personas oferece múltiplas e originais visões sobre a obra vasta e única do poeta português. Confira a seguir relação de todos os artistas participantes.

Outras informações: (32) 2102-3964 – Pró-reitoria de Cultura