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Cidade Democrática e Inclusiva – Por Clarice Cassab

Palestra proferida durante a mesa de abertura da
5ª Conferência das Cidades de Juiz de Fora
10 de maio de 2013
Cidade Democrática e Inclusiva

                                                                                                                                                                                                                    Profa. Clarice Cassab

 

Inicialmente gostaria de agradecer pelo convite para participar dessa mesa nesse
que, sem dúvida é um importante evento não apenas para aqueles que debatem e
discutem a cidade como, e em especial, para nós, que nela vivemos.
Cidade democrática e inclusiva é o tema da minha fala hoje. Confesso que tal tema
me instigou a uma primeira pergunta: é possível pensarmos a cidade real como sendo
democrática e inclusiva? Penso que a resposta a essa indagação é o primeiro passo para a
possibilidade de efetivamente pensarmos a cidade como espaço público e campo da
política.
Minha reflexão parte da compreensão de que a cidade desvela-se aos olhos de
quem a vê enquanto imagem e representação espacial da própria sociedade. Em suas ruas,
em suas formas, nos fluxos que a anima, em seu movimento, é possível descortinar a
dinâmica e a estrutura da sociedade que a produz e a organiza. Como um texto ou uma
imagem a cidade é possível de ser lida, vista e vivida a partir de nosso corpo isso porque “o
homem prova o espaço com todo o seu corpo, o cheiro, as pernas, o ouvido que percebe os
ruídos, com o olho que vai vendo, (…) é a partir do corpo que o homem se percebe e vive o
espaço (…)”. E vive a cidade.
Contudo, a condição para a realização e significação dessa experiência é a
possibilidade de efetivamente poder estar na cidade, dando-lhe vida, percebendo-a e
examinando-a através da circulação por suas ruas, avenidas, praças e bairros,
corporificando a cidade não apenas como obra material, mas, também, como experiência
simbólica e política.
Isso significa que a produção da cidade é a própria produção da sociedade assim
como o inverso. Portanto, uma sociedade desigual dificilmente será capaz de produzir uma
cidade democrática e inclusiva. Nesta, a cidade é a própria mercadoria prevalecendo o
valor de troca sobre valor de uso. No movimento de transformação do espaço em
mercadoria, o espaço abstrato se impõe sobre o vivido. Há portanto, nas cidades, um árduo
embate que se realiza entre valor de uso e valor de troca, entre as pressões exercidas pelo
espaço abstrato (o espaço da mercadoria) e as resistências do espaço concreto (o espaço
da vida cotidiana). A produção dessa cidade real é o resultado e o resultante da ação e do
confronto entre Estado, capital e trabalho.
E nesse embate sobressai o valor de troca sobre o uso, na medida em que cada vez
mais a cidade é vendida e restrita a parcelas progressivamente menores da população. O
mercado determina o uso e os modos de apropriação do espaço e da própria cidade,
especialmente o mercado do solo urbano, resultando uma estratégia de extrema
diferenciação social que conduz á formação de espaços homogêneos no interior da cidade.
Uma clara lógica que organiza o espaço da cidade em zonas de forte
homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta
disparidade compreendida não só em termos de diferença, como de hierarquia e
desigualdade. Por este processo vão se configurando as desigualdades espaciais no que se
refere a infraestrutura e serviços bem como a estigmatização das pessoas em função do
local de moradia (periferias, cortiços e Favelas). Os lugares segregados da cidade moderna
não são justapostos, são hierárquicos, e representam espacialmente a hierarquia
econômica e social, setores dominantes e setores dominados.
É desse modo que o acesso a cidade, mediado pelo mercado, vai definindo
significativas distinções e desigualdades, além de uma separação maior entre o espaço
público e privado. E sob essa lógica não há possibilidade de falar em cidade
democrática e inclusiva.
Isso em si já é um fator limitador aqueles que se preocupam em pensar e planejar a
cidade e, obviamente, impõe uma restrição quase insuperável ao próprio planejamento
urbano. Planejamento esse que já vive, há alguns anos, uma crise violenta dada as
investidas de um modelo de gestão empresarial da cidade.
O modelo do planejamento urbano, que imperou em nossas cidades quase durante
todo o século XX, pensava a cidade de maneira integral prevendo sua aplicação universal.
O que não significa que tais objetivos tenham sido de fato alcançados. Seu substituto
recente, o planejamento estratégico, já parte do pressuposto da cidade fragmentada na
qual são “eleitos” aqueles pedaços, considerados competitivos e globalizantes, que serão
objeto do investimento e da ação, muitas vezes pela parceria pública-privada. Obedecendo
a lógica da empresa, o Planejamento Estratégico olha as cidades pela ótica da
oportunidade, das vocações e potencial econômico. A partir deles são traçadas as
estratégias políticas, sociais culturais, de projetos e de obras, que possibilitariam
maximizar as oportunidades e vocações da cidade. Isso porque, como nos adverte David
Harvey, “acima de tudo, a cidade tem que parecer como lugar inovador, excitante,
criativo e seguro para viver, visitar, para jogar ou consumir”e se investir.
O que o Planejamento Estratégico, portanto acaba por produzir é “uma política de
fachada para uma prática de faz de conta em uma cidade de ficção” conforme nos lembra a
professora Erminia Maricato. Isso porque nesse modelo de planejamento a discussão não
se refere a construção de um projeto de cidade e, conseqüentemente de sociedade, mas
sim na consolidação de condições objetivas para a inserção das cidades na economia
global a partir da ampliação de sua capacidade competitividade.
A intenção é fazer parecer que a única alternativa para as cidades é transformá-las
em centros de comando e de controle, uma cidade de informação e pós-industrial onde os
serviços avançados são a base para a sobrevivência urbana. O contraponto à construção
desses espaços integrados à economia global, em nossas cidades, é a formação de
territórios altamente desiguais.
O resultado não poderia ser outro. Ao assumir a fragmentação na abordagem da
cidade, priorizando aqueles locais mais rentáveis ao capital (especialmente o imobiliário)
e com maior carga simbólica, o planejamento estratégico aprofunda as desigualdades pré
existentes numa sociedade já historicamente desigual, aumentando a distinção e
separação entre classes e a fragmentação e segmentação da cidade.
Assim, se, de um lado, há a impossibilidade de se falar de cidade democrática e
inclusiva numa sociedade desigual, de outro, as atuais formas de ação e gestão apenas vem
corroborar o caráter antidemocrático de nossas cidades.
A cidade real que produzimos cotidianamente é marcada pela desigualdade
socioespacial, pela segregação que se expressa nos desiguais usos e acessos que os sujeitos
tem da/na cidade, nas manifestações da violência física e simbólica cotidianamente sofrida
pelos seus moradores, especialmente quando pobres, pretos e das periferias, nas filas dos
postos de saúde, na privatização dos espaços públicos como praças e campos de futebol,
no fechamento de escolas de bairros pobres localizados no eixo de expansão do capital, do
desmantelamento das redes de proteção social e das identidades territoriais presente em
muitas das políticas habitacionais, no acesso desigual a habitação, equipamentos de
cultura e lazer, pela expressão de uma lógica hegemônica que pensa a cidade para os
carros e não para as pessoas e que se manifesta na precariedade dos transportes públicos.
Enfim, a lista pode ser longa.
Penso que a reflexão até aqui responde a primeira pergunta que impulsionou a
construção de minha fala até o momento. Esta cidade real que cotidianamente é
produzida sob a hegemonia do interesse do mercado, não pode e não poderá ser uma
cidade democrática e inclusiva. O que me leva a uma segunda pergunta: Diante da
constatação óbvia o que é possível? O que é possível é a utopia. Ou seja, pensarmos a
cidade democrática como um projeto utópico e agirmos nessa direção e com esse fim.
Antes que me chamem de louca esclareço que sublinhar a utopia é afirmar que são
muitas as possibilidades implícitas no real. Nesse sentido a utopia pode dar inicio a ação
na medida em que ela contém a possibilidade do vir a ser (o projeto). Como nos ensinou
Ernest Bloch, a utopia contém o princípio da esperança e a antecipação daquilo que não é
garantido de se viver, mas que se constitui como projeto, e que portanto, nos move e nos
dá o real sentido do viver.
Portanto, apesar do cenário sombrio inicial, venho hoje afirmar a possibilidade da
construção de uma utopia urbana que parta da concepção da cidade como espaço da
política. Isso porque é ela, a cidade, o lugar do encontro, do diverso e do diferente. Espaço
público por excelência a cidade pode e deve se abrir ao exercício da política na medida em
que ela abriga e expressa à contradição, permitindo pensar outros presentes e outros
futuros.
E são essas contradições que devem vir a tona (e não escamoteadas) pelo
planejamento e por nossas ações. São elas que precisam ser descortinadas e
desnaturalizadas. É nessa premissa que podemos pensar um planejamento, mesmo no
reconhecimento de seus limites, que parta, não da cidade fictícia mas sim da cidade real,
da experiência empírica da cidade e do viver na cidade e que contrarie a dimensão
socialmente e ambientalmente predatória que nossas cidades vem seguindo.
Um planejamento que considere a existência da diversidade como elemento
positivo da política e da desigualdade como objeto a ser combatido. Criando a consciência
da cidade real (inclusive em sua dimensão ilegal, informal e segregada), dando visibilidade
a contradição e ao conflito (criando espaço efetivamente democráticos de participação
popular), democratizando a informação sobre a cidade e desenvolvendo políticas e ações
centradas nos sujeitos que verdadeiramente constroem a cidade.
São eles, os que habitam e que por seu trabalho constroem a cidade, aqueles que
poderão realizar a utopia que é a cidade democrática.
Muito obrigada!