“Às vezes é preciso morrer de um certo modo para começar a viver de outro. Em arte é assim.” A fala do artista brasileiro Milton Dacosta, dita durante uma entrevista para o jornalista Pedro Bloch em 1964 – mesmo ano do golpe que resultou em uma ditadura militar no Brasil –, ecoam nas palavras da pesquisadora Maria Lúcia Bueno, do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). No dia em que se completa um mês dos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, o portal de notícias da UFJF convida Bueno para examinar o impacto causado pela destruição deliberada de obras de arte.
Apenas em relação aos artefatos artísticos, e somente referente àquelas que foram depredadas no Palácio do Planalto (ou seja, sem contabilizar a depredação nos prédios do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal), os danos estimados estão na casa dos R$ 8 milhões. O tipo de obras afetadas é amplo, indo desde de peças arquitetônicas e mobiliárias até os acervos das instituições. Além do rombo financeiro nos cofres públicos, Maria Lúcia Bueno também chama a atenção para o valor simbólico que o Brasil paga, coletivamente, em episódios como esse. “O vandalismo não foi limitado às obras; foi também uma forma de atingir os símbolos da república e da democracia.”
Um dos paralelos históricos que a pesquisadora encontra para os atentados do dia 8 é a Marcha sobre Versalhes, ocorrida em 1789 – mas a comparação é limitada, principalmente, devido à qual parcela da população foi representada em cada um dos episódios. “No caso de Versalhes, quem invadiu o palácio foi o povo que estava passando fome. Já aqui no Brasil, as pessoas que invadiram foram, em sua maioria, da classe média alta ou da própria ‘classe A’. E a motivação aqui não foi o valor elevado do pão, mas sim a recusa em aceitar um governo democraticamente eleito.” No caso dos atos golpistas em Brasília, também houve o financiamento, por vezes milionário, feito por empresários que, agora, estão sob investigação.
“Não viram diferença entre quebrar um computador e destruir uma obra de arte”
As obras expostas nos prédios dos Três Poderes em Brasília foram selecionadas de forma a representar a história da arte no Brasil. Além disso, parte delas foram presenteadas ao país por representantes de nações estrangeiras e, durante os atentados, também foram destruídas. “A depredação não ficou restrita às obras e vandalizar-las nem sequer era o objetivo principal. O alvo era tudo que representa a República. As pessoas que participaram dos atos golpistas não viram diferença entre quebrar um computador e destruir uma obra de arte.”
Por que, então, as imagens da pintura do artista DiCavalcanti esfaqueada causam mais impacto do que imagens de computadores quebrados, por exemplo? A questão, como explica Bueno, é que obras de arte carregam valores históricos, culturais e emocionais significativos. “A arte pode ser vista como uma representação de um determinado período de tempo, cultura ou indivíduo, e a sua vandalização pode ser vista como um ataque a essa cultura ou indivíduo.”
Arte e cultura sob ataque no Brasil
Embora tenha ficado ainda mais em evidência no dia 8 de janeiro, Maria Lúcia Bueno frisa que o ataque à arte e à cultura no Brasil é um projeto em andamento há mais tempo. A fala é corroborada pelo levantamento realizado pelo Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (Mobile), que registrou 211 casos de censura e ataques entre 2019 e 2021.
Entre eles, 96 (ou seja, 45,5% do total) foram classificados como ataques contra a liberdade artística e cultural, o que compreende medidas autoritárias de restrição direta e específica da liberdade do agente artístico e cultural, de sua obra, veículo ou contexto de exibição, tanto na forma de censura quanto de manifestação por ação de qualquer agente estatal.
Logo depois, ataques definidos como desmonte da cultura totalizam 32,7% dos casos, abarcando medidas de enfraquecimento institucional do setor cultural, aparelhamento ideológico, esvaziamento de instâncias de participação social, estrangulamento financeiro, ingerência indevida nos órgãos e retirada de sua autonomia.
Entre os registros que apontaram a motivação de cada ataque, lideram os pretextos “posicionamentos ou críticas políticas” (74 ocorrências) e “afirmação identitária e minorias” (26 registros).
Arte é sinônimo de qualidade de vida – como preservá-la?
De acordo com Bueno, as manifestações artísticas e o acesso à cultura são fatores que impactam diretamente na melhoria da qualidade de vida da população. “Além disso, preservar a arte é não deixar a história morrer. Com elas resguardadas, cultivamos não só a memória e a cultura, mas também nos permitimos alimentar utopias que, querendo ou não, são o que nos mantém sonhando – e, a partir disso, mudamos a realidade.”
Para a pesquisadora, a inclusão e a difusão do conhecimento são as principais questões capazes de comunicar de forma eficiente com a população e impedir que novos episódios como os atentados de 8 de janeiro aconteçam novamente. “Não adianta colocar um exército na frente de nada se não houver educação pública sobre a importância de preservar nossa herança cultural e incentivar o respeito às obras de arte. Medidas assim ajudarão a proteger a arte e preservar o patrimônio cultural para futuras gerações.”
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