Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto durante os atentados do dia 8 de janeiro (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em entrevista para o portal de notícias da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o pesquisador Odilon Caldeira Neto discute a relação da extrema direita com os atentados antidemocráticos ocorridos no último dia 8. O especialista ainda aborda a repercussão e a movimentação interna dos grupos extremistas no Brasil após o ataque aos palácios dos três Poderes. 

Um teaser da entrevista já está disponível no Instagram oficial da Universidade. Em breve, mais trechos da conversa serão disponibilizados nas redes sociais e no Youtube. Nesta matéria, você confere, na íntegra, a conversa com o pesquisador. Odilon Caldeira Neto é um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita (OED) e atua como professor no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da UFJF.

UFJF: Podemos associar a extrema direita no Brasil  ao fascismo e ao neofascismo?
Odilon: A extrema-direita brasileira é plural. Ela tem algumas interfaces com elementos históricos, tanto do ponto de vista do fascismo quanto de outras articulações mais recentes, como o próprio campo do neofascismo. No entanto, é necessário interpretar que a extrema direita brasileira não se condensa, exclusivamente, a uma dessas categorias. Existem outras tendências que vão jogar um pouco nesse campo político atual.

UFJF: Na sua leitura, a utilização do lema “Deus, pátria e família” – o mesmo do movimento integralista no Brasil – foi escolhido de forma aleatória pela extrema direita atual, ou é possível dizer que foi proposital, a fim de gerar uma continuidade histórica?

Plínio Salgado, um dos líderes do integralismo (movimento fascista brasileiro), que também usava o lema “Deus, pátria e família” (Foto: Divulgação)

Odilon: A utilização do lema “Deus, pátria e família”, sem dúvida, tem uma razão histórica relacionada à ação integralista brasileira. Mas, à medida que o lema foi popularizado ao longo dos anos 1930 e 1940, ele passa a fazer parte de um certo léxico do extremismo de direita no Brasil. 

Então, o resgate desse lema na atualidade deve ser visto em duas dimensões: a primeira é um resgate mais efetivo do ponto de vista da retomada de símbolos, slogans ou mesmo ritualísticas do fascismo histórico na atualidade. Mas é, também, um elemento de uma certa continuidade de uma cultura política, da forma como as pessoas entendem e interagem com o mundo e buscam transformá-lo a partir de valores fundamentalmente ligados politicamente e também, em certa medida, filosoficamente com a extrema direita.

UFJF: Podemos atribuir os atentados do dia 8 à extrema direita?
Odilon: Os atentados que ocorrem em Brasília no dia 8, assim como aquilo que os antecede, são parte de um campo de fomento e de articulação da extrema direita. Ela tem como fator fundamental – localmente, regionalmente e globalmente – um caráter antidemocrático. O ataque às instituições ocorre por meio de discurso, de práticas políticas e de violências das mais diversas formas possíveis. Então, o atentado em si é um episódio final de um grande enredo de orquestração de um discurso e de práticas políticas do extremismo de direita, que tem como valor fundamental justamente o ataque às instituições democráticas, bem como à democracia em si e àquilo que ela representa.

Extrema direita tem como fator fundamental um caráter antidemocrático, explica Caldeira Neto (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

As novas facetas das extremas direitas dizem respeito a questões locais, mas também globais, desde o ponto de vista comunicacional – como elas vão integrar-se nas novas redes e tecnologias de informação e comunicação – até como elas vão se relacionar com o campo político e institucional. Se a gente for pensar o extremismo de direita no século 20, por exemplo, ele tinha uma característica de mobilização das massas e também de militarização muito forte. Embora algumas dessas características estejam presentes na realidade atual, por meio dos seus canais de desinformação, existe também um certo apelo ao individualismo, que diz respeito à forma como as pessoas se integram nas redes digitais e à forma de imaginar a política. 

Seria um erro considerar que as novas formas da extrema direita são apenas novas facetas de um velho problema. Elas são também novas modulações para lidar com novos processos históricos, com novas conjunturas e com novos problemas das democracias.

UFJF: Como é o perfil (ou perfis) de quem integra a extrema direita no Brasil hoje?
Odilon: Existe uma pluralidade. O extremismo de direita no Brasil e no mundo, de fato, é marcantemente um fenômeno de classes médias, de homens brancos, mas não é apenas isso; existem pessoas de nível econômico mais baixo que atuam nessas frentes também.

Presentes em vários estratos da sociedade brasileira, perfil de extremistas de direita é variado (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Então, eu diria que a forma de atuação diz um pouco também sobre o perfil desse tipo de vinculação. Se formos pensar, por exemplo, questões religiosas, derivadas de uma reação à chamada pauta de costumes, ligadas à ideia de militarização, ligadas à perspectivas de questões fundiárias ou mesmo de conflitos no campo… Existe uma grande diversidade. A extrema-direita brasileira não tem um perfil único, mas sim diz respeito à sua admissão nacional – afinal de contas, ela está presente em todo o país e atingindo os diversos estratos da sociedade brasileira.

UFJF: Em uma matéria publicada em 2020, na qual entrevistamos você e o professor Leandro Pereira Gonçalves, vocês definiram o Brasil como um “terreno fértil” para a extrema direita. Mais recentemente, já em 2022, você também se referiu ao país como “um laboratório de extrema-direita global”. Quais os motivos para isso?
Odilon: O Brasil não é apenas um terreno fértil para extrema-direita, tampouco um laboratório – diria que o Brasil é uma indústria de produção de extremismo de direita. à mesma medida que esse extremismo de direita brasileiro incorpora e importa algumas pautas, linguagens, estratégias e rituais, ele também as produz. 

E essa produção está ancorada, eu diria, que ao longo de uma tradição do extremismo de direita no Brasil. Não pensemos apenas na exclusividade da ação integralista brasileira como principal organização de tipo fascista fora da Europa e a primeira organização política de massa no Brasil –  a gente também tem que pensar em uma dimensão de um viés militar, da relação da extrema direita com o golpe ocorrido em 1964 e a gestação de diversos grupos e tendências do extremismo de direita ao longo da última ditadura civil militar brasileira.

Então, do mesmo jeito que essas novas facetas incorporam em torno desse trânsito global do extremismo, a existência de uma história e de uma atualidade do extremismo de direita brasileiro estabelece com que isso tenha um forte grau de penetração na nossa sociedade, além de uma dinâmica institucional. 

Logo, quando a gente pensa o extremismo de direita no Brasil, não se trata apenas de uma importação, digamos, da direita alternativa norte-americana. O quadro brasileiro não se trata de um “trumpismo” à brasileira: na realidade, se trata tanto de uma incorporação, como também de uma produção autóctone. O Brasil produz e exporta o extremismo de direita. Isso diz respeito sobre a sua capacidade de mobilização e de articulação, bem como sobre a capacidade de investidas antidemocráticas como foi visto nos últimos noticiários do Brasil.

UFJF: É possível apontar qual seria o limite – ou o futuro  – da extrema direita brasileira?
Odilon: É difícil ponderar de imediato. De um lado, existe uma certa modulação institucional por conta da gravidade dos atos antidemocráticos; algumas figuras que, agora, podem ser espécies de desertores do bolsonarismo tendem a modular um discurso mais democrático. Mas isso pode ser também uma perspectiva momentânea, do ponto de vista contextual. 

Depredação no prédio do Senado Federal: reflexos do 8 de janeiro (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

E outra perspectiva: quando pensamos em termos de extremismo de direita, pensamos na formação de uma rede de sociabilidade e de solidariedade. São pessoas que ficaram aquarteladas e que manifestam uma vocação política de uma forma muito intensa. Essa manifestação de solidariedade política ultrapassa essa dinâmica meramente institucional, ela não é uma questão ligada única e exclusivamente à política formal. Esse tipo de extremismo de direita – que não advoga em torno de partidos políticos e de lideranças eleitas, mas sim um sentido político, eu diria que quase metafísico – tende a manifestar um apego a essa forma política.

Por isso, seria um ledo engano considerar que uma modulação política institucional leve em contrapartida a existência de um processo de cerceamento desse extremismo de direita brasileiro. Os últimos eventos são bastante significativos, pois eles mostram que as pessoas estão tencionadas e ambicionadas a outorgar sua própria liberdade a essa forma política de lidar com o mundo, interagir com o mundo e também de confrontar a democracia. 

Então, o futuro da extrema direita brasileira está ligado, em certa medida, à forma como lidaremos com esse problema politicamente e juridicamente, além do ponto de vista educacional e científico.

UFJF: Os atentados do dia 8 foram percebidos de uma forma positiva ou negativa dentro dos canais de extrema direita?
Odilon: O impacto nos grupos é bastante variado. Se o tempo das redes sociais é muito rápido, nas redes do extremismo de direita brasileiro são ainda mais rápidos. Isso porque existem diversas tendências que congregam o campo em si: setores ligados a um conservadorismo de feição mais religiosa tendem a rechaçar os atentados e os atos mais violentos; outros setores, ligados a uma perspectiva efetivamente violenta (como a ideia de ucranização, de intervenção, ou mesmo de fascismo e neonazismo), olham os eventos com uma visão muito positiva, inclusive, buscando encontrar heróis. Da mesma forma que existem figuras que tentam encontrar uma ideia de pessoas infiltradas – quando, na realidade, isso não ocorre –, existem também grupos de tendências que olham o evento com uma grande apoteose e uma dimensão heroica. Então, existe uma grande diversidade.

UFJF: Quais são os horizontes para o estudo da extrema direita no Brasil?
Odilon: Em termos de pesquisa, de análise e de monitoramento, o extremismo de direita brasileiro se manifestou com uma centralidade nos últimos anos em torno do bolsonarismo. Mas, além disso, existia um processo de amplo crescimento do extremismo em direita como um todo. Se formos pensar as facetas diversificadas do neonazismo e do neofascismo – ou seja, de outras expressões da extrema direita brasileira –, ela se torna, de fato, um fenômeno ainda mais internacionalizado, ainda mais diversificado e com uma amplitude maior, do ponto de vista das possibilidades de articulações políticas. Como, por exemplo, a ideia do terrorismo de extrema direita. Podemos falar à mesma medida de uma faceta do neonazismo, como podemos falar de uma faceta em torno da ideia de militarização da sociedade.

“O futuro da extrema direita brasileira está ligado à forma como lidaremos com esse problema politicamente e juridicamente, além do ponto de vista educacional e científico” (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

Talvez, poderemos observar uma certa diminuição de uma faceta política formal, mas uma multiplicidade do ponto de vista das articulações de grupos variados da extrema direita brasileira. 

Os últimos dez anos, e não somente os últimos quatro anos, foram um momento de formação de redes de grupos e de possibilidades para a extrema direita brasileira. Então, do ponto de vista de análise, será necessário observar a amplitude dessa extrema-direita, a sua diversidade local e a sua diversidade do ponto de vista da interlocução com o campo global.

O problema não está solucionado. É necessário, inclusive, do ponto de vista metódico e analítico, levar em consideração essa multiplicidade para que consigamos ter um panorama mais efetivo desse campo.

Outras informações:

Observatório da Extrema Direita