Constantemente, o morador de rua é descrito como “invisível” pela sociedade, inclusive pela literatura acadêmica que aborda o tema. Além do termo fazer referência ao abandono social sofrido pela população de rua e a negação de sua existência, ele oculta a enorme visibilidade destas pessoas em termos de controle penal, repressão e punição.
Para desconstruir alguns mitos preestabelecidos pela sociedade, o doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Igor Rodrigues, realizou o trabalho “A construção social do morador de rua: o controle simbólico da identidade”. O estudo discute a vinculação da imagem da população de rua a uma série de pré-conceitos, como confundir necessidade com escolha e reduzir o problema social apenas à falta de moradia, migração ou fatores econômicos.
Durante quatro anos, Rodrigues foi a campo para conhecer a vida dos moradores de rua de Juiz de Fora, estreitando laços enquanto conseguia compreender a realidade na qual estava se inserindo. Com isso, ele conseguiu mapear a região de maior concentração e movimentação dessa população, estabelecendo conexões entre suas rotinas e as políticas públicas direcionadas a eles, como ilustrado no mapa abaixo. O triângulo vermelho representa os locais de apoio social, como a Sopa do Pobres (1), Albergue (2) e Amac (3). Já o triângulo menor diz respeito aos pontos de sociabilidade: depósito de sucata (4), Largo do Riachuelo (5), banheiro do supermercado Hiperbretas (6) e o ponto de uso de drogas (7), próximo à linha do trem.
No trabalho, Rodrigues listou os principais mitos que procurou desconstruir no trabalho.
A violência policial foi um dos pontos trabalhados na pesquisa, relacionando o problema a outro mito pré-estabelecido, o da “invisibilidade”. Segundo Rodrigues, a invisibilidade social não deve ser descartada, mas lembra que quando se taxa uma parcela de “invisível”, oculta-se a enorme repressão sofrida por ela. “Notei algo que não está no campo do visível e do invisível, que é a intolerância, inclusive policial. Essas pessoas narravam uma grande quantidade de espancamentos, violência policial física, psicológica e documental. Ou seja, talvez, do ponto de vista repressivo, de controle penal policial, essas pessoas sejam mais visíveis que a maioria da população, especialmente classes superiores, brancas. Talvez nós sejamos mais invisíveis que o morador de rua do ponto de vista policial”.
“Se o pesquisador vai a campo com isso na cabeça, trata unilateralmente o seu medo em relação a ele, quando, na verdade, existe uma via oposta, que é o medo dele para com o estranho”. Rodrigues explica que o próprio morador de rua também se utiliza dessa crença para conseguir intimidar ou persuadir alguém a lhe ajudar. Mas quando perguntados se são perigosos, respondem que não. “É interessante perceber como ele aceita esse rótulo, e isso é um problema, porque essa pessoa passa a incorporar a forma perversa que a sociedade a trata”, comenta.
“O mendigo vive da mendicância, pedindo”, especifica Rodrigues. “A diferença é que ele nem sempre mora na rua, mas desenvolve sociabilidade ligada à ela. Já o morador de rua nem sempre pede, e quando perguntados se são mendigos, respondem que não, que trabalham”. No entanto, os próprios moradores de rua não enxergam sua atividade como um trabalho legítimo.
O pesquisador observou que, em muitos casos, a rotina de trabalho dos moradores de rua não tem descanso ou divisão de dias úteis. Um exemplo dessa realidade citado é o serviço de catador de lixo. Grandes empresas multinacionais têm setores dedicados à reciclagem e lucram muito, mas os catadores não possuem vínculo formal com elas, mesmo sendo sua base da produção. “Observa-se uma desvinculação entre trabalho e emprego. Esse é um problema, o mercado da informalidade. Essas pessoas não servem para o emprego porque são consideradas indisciplinadas, sujas demais, e o mercado não as aceita. Ou seja, é uma mão de obra muito barata, quase escrava, sem garantias constitucionais e trabalhistas”.
Graduado em Direito, Rodrigues percebeu que uma das grandes dificuldades do trabalho informal e de inserção social e profissional dos moradores de rua passa por sua situação jurídica. “Por estarem abaixo da linha da pobreza, não possuírem endereço fixo, telefone, e por terem grande dificuldade de arquivar e conservar documentos, esbarram na burocracia na hora de conseguir acesso a programas sociais, como o Bolsa Família.
Outro mito destrinchado é o denominado “mito do ser masoquista”, em que se atribui ao morador de rua a escolha pela indigência, transformando a necessidade em opção. “Costuma se pensar que para sair da rua a pessoa depende de vontade própria, esforço. No limite, se interpreta isso como uma questão de escolha”. Rodrigues afirma, inclusive, que o morador de rua não é livre dessas ideologias. “Quando perguntados sobre o que falta para saírem da rua, muitos respondem que falta criar ‘vergonha na cara’, se culpando pelo próprio fracasso. Muitas vezes, o morador de rua não se vê como vítima, mas como culpado pela própria situação”.
“Isso é um mito porque oculta a trajetória de classe dessas pessoas. O que está por trás da migração é a estrutura social e a rede de sociabilidade que esse individuo tem, inclusive econômica”. Segundo Rodrigues, a migração da classe média tem garantias financeiras, emocionais e afetivas. E quando um individuo pobre migra, fica desguarnecido dessas garantias. “O morador de rua não chega naquela condição da noite para o dia, existe uma longa trajetória familiar, perda de pais, problemas econômicos e de escolaridade. Quando migra, perde parte da pequena rede de solidariedade que tinha”.
“Outro mito é a questão dos sem-teto, porque passa a impressão que o problema existe apenas do ponto de vista habitacional. A própria noção norte-americana de homeless tende a acreditar que a moradia fosse solucionar o problema e, no limite, como se a questão econômica fosse o único empecilho”, aponta Rodrigues. “O morador de rua é, antes de tudo, um problema social, uma questão de afetividade, de capital cultural”.
Drogas
Para o pesquisador, todas as classes sociais usam drogas, mas o uso nessa população é problemático. “Perguntei a um deles o que ele usava, e ele me respondeu que era ‘total flex’, ou seja, usava tudo, bingas de cigarro, cachaça, crack e outras drogas”. No entanto, Rodrigues afirma ser um erro associar o uso de drogas dessa população com a violência. “O morador de rua é o bode expiatório, culpado por problemas que não são dele, mas por problemas criados pela sociedade que não percebe sua responsabilidade”.
Após visitar instituições como a Sociedade Beneficente Sopa dos Pobres, a Associação Municipal de Apoio Comunitário (Amac) e outras, Rodrigues definiu três políticas públicas: a primeira é a política domesticadora, em que se cria uma rotina para manter o indivíduo sobre controle, mas sem tirá-lo daquela situação. Um exemplo é a Sopa dos Pobres, servida diariamente de 11h às 12h, pouco importando a rotina dos moradores de rua. O albergue municipal é outro, fechando às 23h da noite. “O morador de rua tem que se adequar, e não o contrário. Essas pessoas já têm uma enorme fragilidade social, afinal, viver na rua exige um esforço enorme. Por isso, querer que eles se adequem às políticas é sobre-humano”.
A segunda é a política higienista, em que não se tenta eliminar a condição de pobreza, mas o próprio pobre. “A Prefeitura de Juiz de Fora optou por um banco de praça que impede que o morador de rua durma nele. Existem também as pequenas grades pontiagudas nas portarias de prédios e em vários canteiros da cidade”.
A terceira é a política piedosa, baseada nos conceitos judaico-cristãos que enxergam o morador de rua como um coitado. “A miséria acaba se tornando uma forma de graça, tanto para quem encontra na esmola uma forma de se humanizar, quanto para o miserável, que é salvo pela própria exclusão”.
Soluções e desafios das políticas públicas
Segundo o pesquisador, o primeiro passo é se aproximar da dimensão mais prática da vida do morador de rua. “É preciso conhecer quais são suas redes de sociabilidade, afetividade, e as linguagens da rua para entender a situação.” Ele também comenta que deve haver uma política pública que regularize a vida jurídica dessas pessoas, mas contrapõe: “Por outro lado, em muitos casos, a polícia rasga documentos dessas pessoas, mostrando uma desarticulação entre as politicas públicas, de modo incoerente”. Para Rodrigues, o problema é que “a vítima é transformada em monstro”.