O presidente interino e diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Paulo Sérgio Lacerda Beirão, é o convidado para a palestra de abertura do 26ª Seminário de Iniciação Científica (Semic) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O evento acontece na próxima quarta-feira, às 14h, e será transmitido on-line pelo canal oficial do Semic. Na ocasião, Beirão planeja apresentar perspectivas acerca da iniciação científica, principal temática do evento. Já nesta entrevista exclusiva para o portal de notícias da UFJF, o pesquisador discorre sobre o diferencial gerado pelo contato com o método científico durante a graduação, o impacto de cortes orçamentários para o fomento de pesquisas e o porquê de incentivar a ciência e a tecnologia em momentos de crise.
UFJF: Professor, ciente do tema da sua fala na abertura do Seminário, gostaria de compreender qual a visão do senhor sobre a importância de ingressar na iniciação científica.
Paulo Sérgio Beirão: O interessante é que a iniciação científica melhora ainda mais a formação. Ela é valiosa para qualquer profissão, não apenas a de cientista. Os estudantes têm a oportunidade de trabalhar em projetos nos quais entram em contato direto com o método científico e, por esse caminho, testemunham como o conhecimento avança, como a ciência funciona. E, quando esses alunos se formam, levam consigo uma base de conhecimento, mas ele não termina ali. O conhecimento evolui. Assim, essas pessoas não podem ficar paradas no tempo. É preciso aprender a sempre buscar novos conhecimentos, novas informações, saber criticar e, por meio desses mecanismos, não ficar suscetível a acreditar em qualquer coisa. E isso é diretamente relacionado à uma formação científica que, quanto mais sólida, melhor. Então, a iniciação faz diferença para formar um bom profissional, mesmo fora da carreira acadêmica. Além do pensamento crítico e do constante desenvolvimento, essa experiência também permite o despertar de vocações e interesses em plena atividade de pesquisa.
Além do mais, o Brasil tem uma média de pesquisadores, em relação ao número da população, menor do que a mundial; ou seja, precisamos formar mais cientistas. É importante atrair e identificar as pessoas que têm talento para isso. Às vezes, a pessoa nunca pensou na vida em ser pesquisadora e, durante a graduação, pode perceber essa vocação. Aliás, muitos cientistas apontam justamente isso, sobre como tomaram interesse pela ciência a partir do contato com a iniciação científica, durante a faculdade.
UFJF: Com as condições de biossegurança impostas pela pandemia do coronavírus, o 26º Semic será realizado inteiramente on-line. Mesmo na edição anterior, no entanto, parte da participação dos estudantes já era mediada pelo envio de vídeos, nos quais eles explicam, de forma acessível, os projetos científicos que representam. Como o senhor avalia a necessidade de incentivar, ainda na graduação, a comunicação da ciência de forma a atingir públicos além do acadêmico?
Paulo Sérgio Beirão: A ciência depende da comunicação – de comunicar, inclusive, as coisas que não funcionam. Um exemplo recente foi a importância de explicar, cientificamente, os motivos pelos quais a hidroxicloroquina não é indicada para o tratamento de Covid-19, para que, assim, as pessoas não se intoxicassem à toa. O conhecimento tem que ser compartilhado, expondo inclusive as fragilidades. Não é nada depreciativo a um trabalho chegar à conclusões que ainda precisam de complemento. Faz parte.
E a comunicação atual, preciso reconhecer, é muito mediada por vídeos, logo, entendo como é uma forma válida de transmitir ideias básicas. Esse diálogo está inserido no processo de valorização da ciência e é importante para avançarmos. A própria Fapemig também adotou, em nossos projetos, uma etapa em que os pesquisadores precisam enviar um vídeo que chamamos de pitch. Eles têm duração curta, com cerca de três minutos, e é feito para que as pessoas envolvidas no projeto expliquem do que ele se trata, comunicando o conhecimento produzido de forma acessível. Ou seja, também está dentro da nossa concepção modos de facilitar essa comunicação, incentivando isso entre os próprios pesquisadores.
UFJF: Infelizmente, sabemos que agências de fomento à pesquisa, como a própria Fapemig, vêm sofrendo fortes cortes de orçamento. Quais táticas são adotadas em cenários como esse? Existem áreas estratégicas para concentrar os investimentos?
Paulo Sérgio Beirão: Realmente, temos passado por esse problema. Afeta inclusive as bolsas de iniciação científica. Apesar da crise fiscal, nós temos tentado convencer o governo do quão importante é o apoio à pesquisa – até porque o investimento em ciência e a tecnologia é um grande mecanismo de superação de crises, até mesmo as financeiras. Existem vários exemplos internacionais de países que estavam muito mal, quase à bancarrota; uma das decisões foi apostar em ciência e tecnologia e, atualmente, estão muito bem.
Lembro sempre de dois exemplos. Um é o da Coreia do Sul – na década de 60, era um dos países mais pobres do mundo e, com medidas como a valorização da educação e da tecnologia, está no patamar que observamos hoje. Meu celular, que estou usando neste momento, é de uma empresa coreana, a Samsung. Estamos comprando celulares, TVs e carros coreanos porque eles desenvolveram tecnologias competitivas. Outro país que já foi mais pobre do que o Brasil é a Finlândia; também optou por investir nessas áreas e, agora, também se encontra em outro patamar internacional. Vemos uma empresa como a Nokia, criada lá, na corrida pela implementação de redes 5G. Poderia citar até mesmo a própria China. Hoje, acompanhamos o desenvolvimento de uma vacina chinesa para a atual crise de saúde. Nós estamos falando de coisas sérias, não é nenhuma brincadeira. Esses são alguns exemplos de como é um erro um governo não investir em ciência e tecnologia.
“Temos também uma vacina em desenvolvimento, fazendo uso de uma tecnologia semelhante à aplicada na vacina russa – o que nos capacitaria para produzi-la nacionalmente, caso isso venha a ser o mais conveniente para o país”
Temos um diálogo bom com o governo estadual, embora eles sejam duros com liberação de recursos; atualmente, trabalhamos com um quarto do que seria o recurso total destinado à Fapemig. E, respondendo ainda mais à sua pergunta, existem campos que adquirem uma relevância tão grande que ficaria até estranho nós não investirmos. Estamos apoiando projetos voltados para o combate da Covid-19, dando suporte em áreas de tratamento e desenvolvimento de métodos para diagnóstico. Temos também uma vacina em desenvolvimento, fazendo uso de uma tecnologia semelhante à aplicada na vacina russa – o que nos capacitaria para produzi-la nacionalmente, caso isso venha a ser o mais conveniente para o país. E essa nossa vacina, desenvolvida aqui, já sabemos que é capaz de produzir anticorpos. As próximas etapas dependem de parcerias e investimentos externos. Nesse meio tempo, temos condições de avaliar demais opções, uma vez que também temos testado as vacinas chinesa e inglesa, de Oxford. Com isso, teremos como pesquisar qual é a melhor – sem preconceito, utilizando apenas a ciência.
Além disso, graças às atividades científicas nos últimos anos, estimamos que o estado de Minas Gerais tem cerca de duas mil patentes válidas. Só com a Fapemig, temos por volta de 800. Então, elaboramos uma chamada para apoiar a transformação de patentes em produtos. Essa parte é feita em co-financiamento com empresas – assim como no mundo inteiro, não são universidades ou demais centros de pesquisa que fabricam, sozinhos, os produtos. Logo, essa é mais uma área que focamos. São patentes muito interessantes, em áreas como saúde, educação, biotecnologia, agrária, automobilística, entre outras. Temos procurado recursos adicionais para realizar tudo isso. Estabelecemos diálogos com federações da indústria, da agricultura, setores que lidam com a ponta, com a produção final, para que eles apropriem-se do conhecimento dessas patentes.
Uma coisa que as pessoas precisam se dar conta é que, em time que está perdendo, você precisa fazer mudanças. Se a nossa economia está com problemas dentro de um modelo de exportação de matéria-prima, por exemplo, é preciso criar alternativas. Me deparei com uma amostra disso quando verifiquei os medicamentos que o Trump tomou quando foi diagnosticado com Covid-19. Um deles continha uma dose de oito miligramas de anticorpos monoclonais. Para você ter uma noção, para conseguirmos comprar essa exata dose que ele tomou, precisaríamos exportar oito toneladas de minério de ferro. Isso demonstra a diferença entre um produto de alto valor agregado e um de baixo valor agregado.
E veja: nós temos pessoas em nosso próprio estado que sabem produzir esses anticorpos monoclonais. Mas é preciso que esse trabalho saia da bancada e, para tal, é preciso investimento. Se não investirmos em coisas desse tipo, continuaremos vendendo coisas a preço de banana e comprando outras em um preço caríssimo. Esse é o ponto. E mudar isso só é possível com um forte sistema de ciência e tecnologia – com suporte, qualificação, conhecimento e investimento.
Outras informações:
Semic 2020