Disciplinarização, rigidez e… liberdade de pensamento? A militarização da educação novamente passou a ser pauta de discussões em espaços públicos, não sendo diferente na Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Iniciado na terça-feira, 23, e com discussões também na quarta-feira, 24, o evento “Militarização da educação em questão” debateu o histórico brasileiro de atuação militar no ensino público e o contexto atual de escolas militarizadas.
Durante os dois dias, o evento teve a participação de quatro professores da Faced abordando as práticas adotadas nas escolas militarizadas e o pensamento popular sobre a militarização da educação.
No primeiro dia de debates, o diretor da Faced, Álvaro Quelhas, abriu as discussões e os docentes Maria Zélia Maia e Alexandre Cadilhe, em seus momentos de fala, esclareceram o significado de escolas militarizadas, as quais foram definidas como diferentes de escolas militares por se tratarem de instituições civis com gerência realizada por algum órgão militar. Também foram abordados os comportamentos dessas escolas e os discursos midiáticos sobre o tema.
Na quarta-feira, 24, o debate contou com a participação dos professores Wilson Alviano e Daniel Cavalcanti, que trataram dos posicionamentos governamentais acerca da militarização do ensino e o impacto real que o discurso pode causar no ensino público brasileiro.
A pesquisadora Maria Zélia ressaltou que o objetivo do evento era fazer as pessoas pensarem criticamente sobre a militarização. Segundo ela, as discussões possibilitaram essa reflexão. “As conversas foram bem produtivas e as pessoas, no mínimo, pensaram sobre o tema. Isso, para mim, é muito positivo. A partir daí, elas tiram suas próprias conclusões, uma vez que aqui é o lugar de criar perguntas.”
O ensino militarizado é o caminho?
Segundo levantamento da Revista Época, a militarização de escolas públicas já é realidade em mais de 120 instituições do país e há propostas para ampliação, como noticiado pela Agência Brasil. Mas esse é o caminho para a melhora dos índices da educação?
Para o Portal da UFJF, os doutores em Educação, Wilson Alviano e Daniel Cavalcanti, responderam a perguntas sobre a militarização da educação. O assunto foi tratado como um tema complexo pelos docentes, mas de fundamental discussão na conjuntura contemporânea. Segundo os professores, a participação dos militares na educação básica é vista pela população e por autoridades como solução para os problemas que permeiam o ensino público.
Portal da UFJF: O sentido de militarismo que está nas discussões hoje é o mesmo que se entendia há 40 ou 50 anos? Há um maior apelo pela militarização do ensino atualmente?
Wilson Alviano: Se a gente pensar em militarismo como o enquadramento de um comportamento, de ideias e de procedimento, sendo toda uma engenharia para a manutenção de um pensamento único na sociedade ou de um pensamento hegemônico, o sentido é o mesmo.
“Se a gente pensar a educação como prática da liberdade, a busca pela autonomia que alimenta o senso crítico dos indivíduos, essa relação [com a militarização] pode ser profundamente danosa” – Daniel Cavalcanti
Daniel Cavalcanti: Eu entendo que ele é um lobo que troca de pele, mas continua sendo o lobo. Sobre o apelo popular, o discurso totalitário encontra muito eco quando alimenta o medo e a descrença nos valores democráticos. Isso aconteceu também no regime nazista, na ditadura portuguesa, no regime do Franco, na Espanha. Gera-se um medo na população para vender um remédio. O vendedor de muletas fala que você tem que amputar a perna, e as pessoas acreditam.
Portal da UFJF: Atualmente, há no senso comum, uma sensação de desorganização em relação às escolas públicas que é atrelada à demanda popular por envolvimento do militarismo nas instituições de ensino. Em alguma medida, a educação pode ser realmente um “caso de polícia”?
Wilson Alviano: Nunca pode ser um caso de polícia. Só se acontecer um crime, apenas nesse sentido. Mas essa ideia da desorganização da escola pública é tão falsa que, recentemente, houve uma resistência de ocupação às escolas que surgiu em São Paulo e se espalhou pelo país, em que os estudantes foram tão organizados que conseguiram fazer uma resistência nas escolas, trabalhando com a limpeza e com a alimentação. Que desorganização é essa que, em pouquíssimo tempo, os estudantes conseguiram criar uma resistência tão bem elaborada?
“[A educação] nunca pode ser um caso de polícia. Só se acontecer um crime, apenas nesse sentido” – Wilson Alviano
Portal da UFJF: Até que ponto a relação entre educação e militarização é danosa e em quais pontos a disciplina e os métodos militares podem ser positivos em algum aspecto para a educação?
Daniel Cavalcanti: Se a gente pensar a educação como prática da liberdade, a busca pela autonomia que alimenta o senso crítico dos indivíduos, essa relação pode ser profundamente danosa. Se justificam as escolas militares que vão formar militares que têm que seguir esse tipo de orientação, esse tipo de doutrina, mas em escolas públicas a gente não tem que formar pensando nisso.
Portal da UFJF: Em alguns estados brasileiros, uma política de parceria entre escolas públicas e órgãos militares têm possibilitado uma militarização de ambientes inicialmente criados para serem colégios civis. Esse mecanismo pode ser um caminho para melhorar os índices da educação?
Wilson Alviano: Não é o caminho. Fala-se sobre um problema da educação, mas não se fala sobre o problema da segurança pública. Se o militarismo na educação resolvesse o problema, já teriam resolvido com relação à segurança. Eu não vejo como solução, acho que tem uma manipulação do medo das pessoas. A crença com relação às escolas públicas de que ‘o que é público, é deplorável’, que está sendo sucateado e a população não dá valor, que os jovens que entram nessas escolas agridem o professor, e isso é muito divulgado pela mídia. Acaba se oferecendo uma solução equivocada para uma pergunta falsa. Acho que tem que se fazer políticas sérias, que sejam trabalhadas de forma conjunta. Porque não vai se resolver a educação descontextualizada, sem antes resolver um problema de saneamento básico, de segurança, de alimentação ou de desemprego. Você não consegue resolver uma coisa apartada da outra.
Daniel Cavalcanti: Os próprios resultados mostram que não é um caminho. Há estudos que apontam que não aconteceu uma melhora, de fato, em escolas militarizadas, já que escolas com mesmo capital econômico e mesmo capital cultural têm resultados parecidos, sejam elas militarizadas ou estaduais. Além disso, a militarização em Goiás, por exemplo, promoveu uma exclusão muito grande dos alunos que não se adaptaram, que não podiam pagar as cobranças de taxas e os uniformes, sem mencionar a reserva de vagas para militares que, de alguma forma, já faziam uma seleção. Então, não se tratam de boas escolas, mas de selecionar os bons alunos e excluir os que não conseguiam alcançar aquele padrão.
Outras informações: (32) 2102-3653 – Faculdade de Educação (Faced)