Ações terapêuticas e aspectos judiciais relacionados à utilização clínica de substâncias obtidas da Cannabis sativa, conhecida popularmente como maconha, foram abordados no Fórum “Uso terapêutico dos canabinoides: aspectos moleculares, clínicos e judiciais”, organizado pelo Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
“Canabinoide: vilões ou heróis?”
Questões históricas e a evolução do uso da maconha pela medicina foram abordados durante a palestra “Canabinoide: vilões ou heróis?”, ministrada pelo professor Rafael Dutra, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Já usada de forma medicinal há seis mil anos, com conhecimento de seus efeitos farmacológicos e também dos efeitos colaterais de seu uso excessivo, a Cannabis já era trabalhada em sociedades como a chinesa e indiana.
Segundo o pesquisador, foi na década de 1920 que os efeitos negativos sobressaíram e vários países baniram o uso da planta. Este panorama mudou na década de 80, quando a proibição foi repensada por algumas nações e a Cannabis foi liberada não apenas para fins medicinais, como também recreativo. A discussão ainda continua por todo o mundo, já que a maconha é a droga ilícita mais consumida. “Muitos pesquisadores chamam atenção para que o uso recreativo da Cannabis é a porta de entrada para outras drogas ilícitas”, destaca Dutra.
Em 1965, pesquisadores conseguiram sintetizar os primeiros canabinoides, compostos da planta que podem ser usados para fins medicinais por apresentarem efeitos benéficos. Esses estudos abriram espaço para um olhar científico sobre a Cannabis, com novas pesquisas ao longo dos anos, muitas apresentando possíveis indicações em tratamentos psicológicos e neurológicos.
Canabinoides na medicina
Um dos canabinoides que vem se apresentando como alternativa terapêutica é o Canabidiol, especialmente para tratamentos contra o estresse. Isso é o que apontam pesquisas realizadas na Universidade de São Paulo (USP), de acordo com a professora Alline Campos. A pesquisadora apresentou alguns resultados durante a palestra “Mecanismos envolvidos nos efeitos anti-estresse do Canabidiol”.
O estresse faz parte do cotidiano das pessoas e produz um “efeito elástico”, afirma Alline: quanto mais situações de estresse um indivíduo é submetido, menor sua capacidade de resistência. Segundo ela, cerca de 450 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos neuropsiquiátricos causados pelo estresse e pesquisas apontam que medicamentos como alguns antidepressivos não alcançam os efeitos desejados, ao passo que experimentos têm mostrado que o Canabidiol manifesta efeitos como redução de ansiedade. O uso da Cannabis em forma de cigarro, porém, não reproduz os mesmos efeitos de canabinoides sintéticos, considerando que a planta apresenta os mais diversos compostos, em diferentes níveis. Para isso, a pesquisadora chama a atenção à automedicação: “Cannabis como medicina não é a mesma usada para fumar. A utilização desses constituintes de forma inapropriada pode levar ao aparecimento de muito mais toxicidade do que efeito terapêutico.”
O professor da UFJF Marcos Moreira também alertou ao fumo da Cannabis durante sua palestra “Eficácia e Segurança dos Canabinoides nos Distúrbios Neurológicos”. “O uso da maconha na forma inalada está associado a um pior desempenho cognitivo, e sua suspensão reverte apenas parcialmente esse déficit. Já o uso do Canabidiol parece não ter relação com o declínio cognitivo”, esclarece Moreira. A utilização dos canabinoides surgem também como alternativa para doenças relacionadas a transtornos de movimento, epilepsia e esclerose múltipla, doença neurológica onde as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando lesões cerebrais e medulares. Moreira destaca que o tratamento para a esclerose múltipla é apenas sintomático, ou seja, não é indicado para tratar a doença, mas sim sintomas como disfunção vesical urinária e movimentos involuntários.
Cannabis e saúde pública
Os canabinoides só foram regulamentados para fins terapêuticos no Brasil em 2015, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Porém, tais medicamentos são adquiridos apenas pela importação e existe uma série de critérios e procedimentos que devem ser seguidos, garantindo que o uso seja feito apenas por pacientes que necessitem daquele tratamento e tenham prescrição médica. De acordo com Edgar Souza Ferreira, procurador municipal de Juiz de Fora, durante a palestra “Aspectos judiciais do uso terapêutico do Canabidiol”, a maior dificuldade em relação a pesquisas e ao tratamento pelos canabinoides está relacionada à falta de registro dos medicamentos pela Anvisa, sendo acessível apenas a quem possui condições de pagar por sua importação. “Os estudos só terão alcance a partir do momento em que o Canabidiol for acessível a todos, e no Brasil, o único jeito de um fármaco ser acessível a todos é através do Sistema Único de Saúde (SUS)”, explica Ferreira.
Para quem não pode pagar pela importação, há leis que determinam o custeio desses gastos pelo SUS, já que, de acordo com a Constituição Federal, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Conseguir esse pedido através da justiça, porém, apresenta uma série de dificuldades devido ao impasse entre o uso recreativo e medicinal. Em Juiz de Fora, por exemplo, houve apenas uma ação judicial para importação do Canabidiol, por um paciente com epilepsia, que ainda assim foi indeferida pelo juiz, que afirmou não existir evidências clínicas e terapêuticas suficientes para a concessão do medicamento. “O único jeito que o paciente tem de conseguir o tratamento com Canabidiol pelo SUS é através da justiça, mas diante da diversidade do pensamento e da falta de uniformização das decisões, a pessoa tem que ‘dar sorte’ de passar com um juiz que entenda e conceda o pedido”, diz o procurador.