O túnel Rebouças no Rio de Janeiro, a Avenida Rebouças em São Paulo, a cidade de Rebouças no Paraná – o nome inscrito em ruas, praças e escolas pelo país é de um herói nacional. Reconhecido recentemente com o título, André Rebouças, apesar disso, não é um personagem histórico facilmente lembrado pelos brasileiros.
Estudar, reconhecer e reverenciar sua trajetória de vida é uma das contribuições que a pesquisa e os movimentos sociais de luta podem fazer pela história e memória da nação. A professora do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Hebe Mattos se dedica há mais de 20 anos a cartas, diários e outros materiais do intelectual negro. Parte deles já foram organizados em livros, o mais recente lançado este ano: “O engenheiro abolicionista: 1. Entre o Atlântico e a Mantiqueira — Diários, 1883-1884 (2024) ” e “Cartas da África: registro de correspondência, 1891-1893”, de 2022, ambos da Editora Chão. Há outras obras em produção a serem publicadas em breve.
O trabalho de Mattos é tema do quarto episódio do IdPesquisa, lançado no mês da Consciência Negra. A docente explora o impacto da escravidão na formação da sociedade brasileira: um trauma coletivo, potencializado pelo contrabando de escravizados no período imperial. “Esse trauma inaugural da memória nacional torna difícil a gente contar a história do Brasil, não é uma história que dá orgulho, mas é uma história que tem que ser encarada para a gente pensar no racismo como uma tema que tem história.”
E André Rebouças (1838-1898) faz parte dessa história. O abolicionista nasceu em Cachoeira, província da Bahia, e foi o primeiro engenheiro negro a se formar em uma escola militar, assim como seu irmão Antônio Rebouças. Conhecido pelos seus trabalhos como engenheiro e pelo compromisso com a luta abolicionista, tornou-se figura proeminente do circuito intelectual, atuando diretamente pelo fim da escravidão no Brasil.
Rebouças era ligado à família real e foi nomeado engenheiro da Alfândega para administrar as obras de construção das docas do Rio de Janeiro. Foi ele quem construiu as docas da Alfândega e da Gamboa e também projetou uma rede de abastecimento de água na capital fluminense. As docas do Maranhão, da Paraíba, do Recife e da Bahia também tiveram sua contribuição.
“Ele é um personagem muito importante e as pessoas o conhecem pouco. Ele escreveu a vida inteira desde a sua formação de engenheiro. Ele sai do Brasil após a queda da monarquia, junto com a família imperial, e começa a escrever cartas, a fazer um rascunho em um caderno que acaba funcionando como uma sequência desse diário. E esse material conquista o fascínio de vários pesquisadores”, conta a historiadora sobre as quase 200 correspondências reunidas em livro.
Mattos lembra que a “lei para inglês ver”, em referência a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibia o tráfico de escravos africanos para o Brasil, não era cumprida no Segundo Reinado. A economia cafeeira começava a crescer naquele período e o império fechava os olhos. “Há uma aura de respeitabilidade da história imperial que não encara que foi um império contrabandista e que isso foi constantemente denunciado pelo movimento abolicionista da época”, movimento esse que incluía Rebouças.
Elementos históricos importantes que fazem da memória da escravidão um fenômeno vivo, presente nas desigualdades sociais, politicas públicas, expressões culturais e nas relações de poder que estão representadas pela exclusão e marginalização das pessoas negras no Brasil ainda de hoje.
Acesso aos arquivos
Hebe Mattos, além de professora do Departamento de História da UFJF, é docente aposentada pela Universidade Federal Fluminense, onde continua como credenciada no Programa de Pós-Graduação em História. É coordenadora associada do Laboratório de História Oral e Imagem – rede de pesquisa (LABHOI UFF/UFJF), autora de livros e vídeo-documentários e possui experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: escravidão, abolição, memória, vídeo-história e história oral.
“Minha trajetória de pesquisa foi cada vez dialogando com a atualidade, que é pensar a memoria da escravidão quase como um trauma nacional, que durou três séculos na história brasileira. Mas, sobretudo, estrutura o nosso primeiro estado nacional. O Brasil se torna uma constituição reconhecendo direitos aos cidadãos brasileiros, mantendo a escravidão como instituição histórica.”
Parte das pesquisas de Mattos são realizadas em conjunto com o professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Ciência da Religião da UFJF, Robert Daibert Junior. O docente teve participação importante na aquisição das cópias do acervo documental das cartas de André Rebouças para a UFJF. Os documentos originais estão depositados na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, na Biblioteca Nacional e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
“Na época, usava-se o sistema de microfilmagem e depois a digitalização. Doei todas as cópias para o Arquivo da UFJF de modo a democratizar o acesso à documentação. Antes disso, o acesso dos pesquisadores do Sudeste a esse acervo era bastante dispendioso.”
Dalbert considera como fundamental o papel de André Rebouças na história do Brasil e sua trajetória como inspiradora para as pessoas negras. “André foi um homem muito corajoso que ousou enfrentar as elites políticas, econômicas, militares e eclesiásticas de seu tempo, classificando-as como parasitas que atrasavam o desenvolvimento do Brasil. Rebouças defendia com veemência suas posições anticlericais, antiaristocratas, abolicionistas e democráticas.”
Confira o quarto episódio do Id Pesquisa
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