Romper com os mitos perpetuados pelo pensamento colonizador, inclusive no meio acadêmico, é fundamental para o engajamento da sociedade na luta dos povos originários. Ir além das homenagens na data que marca o Dia dos Povos Indígenas, 19 de abril, é o que propõe a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) quando revisita as iniciativas e projetos desenvolvidos pela instituição. Durante todo o ano, grupos de estudo, pesquisa e extensão destacam que a educação emerge como um caminho significativo para a afirmação e respeito à identidade indígena.
Para Aliria Wiuira Benicios de Carvalho, aluna indígena da Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, as instituições de ensino desempenham um papel crucial na construção de uma sociedade mais inclusiva, justa e respeitosa da diversidade cultural. Com mais de 300 etnias e cerca de 274 línguas indígenas no Brasil, é imperativo que essas instituições desconstruam estereótipos e preconceitos ainda enraizados na sociedade.
Entre os desafios políticos e sociais enfrentados pelos povos indígenas, Aliria ressalta a dificuldade de acesso à educação. O preconceito por parte da sociedade constitui uma barreira significativa que muitas vezes impede o acesso e a permanência de crianças, adolescentes e adultos indígenas nas instituições de ensino.
Sempre me deparei com olhares estranhos e preconceituosos dos brancos, mas procurei focar no porquê de estar ali
Descendente da etnia Timbira, por parte de pai, e Guajajara por parte de mãe, a família mudou-se da cidade de Imperatriz, no Maranhão, para o estado do Piauí. “Sempre me deparei com olhares estranhos e preconceituosos dos brancos, mas procurei focar no porquê de estar ali, acreditando que com os estudos eu poderia mudar minha realidade, da minha família, do meu povo”, conta.
Segundo ela, foi na Universidade que começou a trabalhar mais ativamente com questões indígenas e fazer do seu trabalho como pesquisadora uma ferramenta de luta e resistência. “Ingressar no mestrado e, em seguida, no doutorado foi ainda mais desafiador. É muito difícil sair da aldeia e lidar com uma nova realidade e ainda permanecer neste local. A presença indígena nas universidades rompe muros e amplia novos modos de ver e pensar sobre os povos originários”, ressalta.
Para a artista, ambientalista, ativista indígena Shirley Krenak, contribuir para uma visão mais abrangente e interdisciplinar do conhecimento, incorporando perspectivas e saberes tradicionais que frequentemente são ignorados, é uma responsabilidade das universidades. Em entrevista, ela fala dos desafios enfrentados pelos povos indígenas e como é possível aproximação com a academia.
Ainda que o caminho para o acesso e maior inclusão dos povos indígenas seja longo, a UFJF tenta trilhar novos capítulos no que diz respeito, principalmente, à troca de conhecimentos. De nome poético, o Encontro de Saberes é uma dessas iniciativas, que desde 2014 busca ampliar os olhares sobre os saberes tradicionais – povos indígenas, raizeiras, agricultores familiares e quilombolas.
Grandes nomes da sabedoria popular de diversas áreas são convidados a compartilharem seus conhecimentos em uma disciplina. As áreas abrangem habilidades artísticas até saberes em saúde, tecnologia, cosmologia, espiritualidade, meio ambiente e psicologia.
Em sua última edição, em 2023, foi oferecido o curso “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”, com a participação do pajé Tohõ Pataxó, reconhecido, entre outros pontos, pelos trabalhos de valorização da identidade Pataxó e pelo reflorestamento natural em sua região, em Porto Seguro (BA). Nesta última edição, a disciplina extensionista também foi realizada pela primeira vez no campus de Governador Valadares, coordenada pelo professor Reinaldo Duque, com a presença de mestres indígenas.
O professor e um dos coordenadores do módulo “Povos Indígenas” no campus Juiz de Fora, Daniel Pimenta, ressalta a relevância da introdução desse tipo de saber na Universidade. “Acho fundamental porque vai contra esse cotidiano de academia que é muito racional e com pouca exploração da sacralidade e outros níveis de valor. É importante ressaltar que temos que trazer a sabedoria ancestral para que o conhecimento científico e tecnológico caminhe junto com os saberes tradicionais.”
As aulas foram conduzidas em ambientes variados, abrangendo tanto espaços convencionais, no campus, quanto ao ar livre, como a mata do Jardim Botânico, e locais simbólicos da cultura ancestral, como a Oca JF – Negociação, Mediação e Cultura, construída por um dos convidados, Anuiá Yawalapiti, do Alto Xingu (MT).
Inclusão também no Ensino Médio
O programa “Troca de Conhecimentos Indígenas, Quilombolas e Caiçaras” do Colégio João XXIII destaca-se como outro exemplo de tais iniciativas promovidas pela Universidade, visando estimular a discussão sobre o tema e promover a integração dos jovens com os povos originários.
Idealizado pela coordenadora do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) do Departamento de Educação Física do Colégio João XXIII, Cátia Duarte, o projeto nasceu de sua bagagem cultural e acadêmica, que inclui estudos sobre danças tradicionais. Com a participação de noventa alunos do terceiro ano do Ensino Médio, o projeto buscou uma abordagem que possibilitasse uma imersão mais profunda na cultura desses grupos, ultrapassando os limites do estudo meramente teórico.
Segundo a coordenadora, a concepção do projeto ocorreu por meio de diálogo com comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras, visando trazer suas tradições para dentro da escola. As atividades ocorreram entre 2019 e 2022, tanto de forma presencial quanto remota, incluindo atividades práticas, como jogos, danças, confecção de bonecas e aprendizado de tranças, além de debates teóricos.
“Os alunos, quando se envolvem, levam isso pra casa, o que atinge a comunidade de uma forma diferenciada. É muito melhor você ter conversado e tirado dúvidas com uma indígena presencialmente do que você ler alguma coisa, algum artigo científico sobre isso, que era o que a gente costumava fazer no terceiro ano do Ensino Médio”, ressalta Cátia.
Apesar dos resultados positivos, a logística de trazer representantes dessas comunidades de todo o Brasil para Minas Gerais é bastante complexa, devido às exigências burocráticas e aos desafios de financiamento. Essa complexidade foi um dos motivos para a interrupção das atividades presenciais. Atualmente, a troca de saberes acontece de forma virtual.
Pesquisa com a participação direta das comunidades indígenas
Na pesquisa, a professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) na UFJF, Elizabeth Pissolato, concentra seus estudos na etnologia indígena, destacando questões pertinentes às sociedades e culturas das terras baixas sul-americanas. Entre as etnografias desenvolvidas em dissertações, teses e outros estudos, estão as dos Xakriabá, Krenak, Guarani, Maxakali, Huni Kuin, Karitiana e Puri.
“Os próprios povos indígenas, cientes de seus direitos de autodeterminação e nos termos de seus regimes próprios de memória, têm desenvolvido políticas culturais, elaborado seus museus e centros de ciência e saber. Cabe às universidades criar oportunidades para que possamos nos tornar parceiros e apoiadores nesses projetos.”
Ainda segundo a antropóloga, além de políticas de incentivo ao ingresso e permanência de indígenas, é preciso desenvolver programas interculturais que possam atrair os povos que vivem em Minas Gerais ou em estados vizinhos para nossa instituição.
Para Pissolato, universidades que têm acolhido um número cada vez maior de estudantes indígenas demonstram como a presença dessas pessoas, de diversas etnias, transforma e enriquece as ciências acadêmicas, deslocando modelos de conhecimento produzidos sob o regime colonizador do Ocidente Moderno.
Outras chaves de leitura do mundo
Na comunicação, debater outras leituras de mundo tem sido uma preocupação de eventos da área. Uma das mesas promovidas pelo 20º Encontro Regional de Comunicação (Erecom), realizado no fim de 2023, propôs pensar nas possibilidades do fazer comunicacional em contrapartida aos modelos tradicionais da área da comunicação.
“Foram apresentadas, por exemplo, a partir dos povos originários, outras chaves de leitura do mundo, modos outros de perceber, sentir e conceber aquilo a que chamamos realidade e como isso pode ampliar os significados que em geral atribuímos à palavra comunicação”, conta o professor da Faculdade de Comunicação (Facom) Eli Borges Júnior.
Segundo ele, é preciso refletir sobre teorias da comunicação ainda fortemente influenciadas por uma perspectiva instrumental, racional, lógica, de transmissão de mensagens. “De fato, essa ideia é muito presente em nossa maneira de entender e também de ensinar comunicação. O diálogo com representantes de povos originários e suas várias culturas nos permite ampliar as possibilidades de compreensão do próprio significado de comunicação. Temos a possibilidade de construção de outros modelos de universidade, colocando em xeque aquilo que ainda sustenta nosso modelo acadêmico.”
Reconhecimento das lideranças
Líderes indígenas também têm sido reconhecidos pela UFJF, que concedeu, em 2016, o título de doutor Honoris Causa a Ailton Lacerda Krenak, um dos principais nomes do movimento indígena brasileiro. Krenak atua na UFJF em várias atividades, com destaque no curso de especialização “Cultura e História dos Povos Indígenas” e na disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”.
Na esteira de Ailton, Shirley Krenak acaba de receber a indicação do título, motivada pelo papel que desempenha na aproximação da Universidade com os povos originários e seus saberes ancestrais. A proposta foi feita por membros da comunidade acadêmica do campus de Governador Valadares, onde Shirley Krenak tem atuado como educadora e coordenadora pedagógica em pelo menos dois programas de extensão: o Núcleo de Agroecologia (Nagô) e o Centro de Referência em Direitos Humanos.