Quando criança, quantas vezes o médico lhe perguntou o que está sentindo? Em geral, independente da idade, os questionamentos são direcionados ao responsável que está acompanhando. Essa situação não é isolada e representa o tipo de cuidado praticado no tratamento em saúde, focado na família e não na criança. A temática é foco de investigação, que resultou no artigo “Cuidado centrado na criança e sua interface com os direitos humanos do paciente pediátrico: uma crítica ao modelo de cuidado centrado na família”, publicado nos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário.
Nesta quinta-feira (13), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 33 anos. Embora a data marque grandes avanços para a garantia dos direitos e da dignidade de meninos e meninas do Brasil, as autoras da publicação tecem críticas sobre o documento. Na visão das pesquisadoras Kalline Eler, Maritza Breder, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Aline Albuquerque, da Universidade Federal de Brasília (UnB), o ECA negligencia os direitos do paciente pediátrico, de maneira a garantir o direito à saúde, mas não abranger a autonomia da criança, junto às suas necessidades e seu bem-estar.
“É preciso primeiro considerar a criança como paciente. O ECA foca no acesso a bens e serviços de saúde, mas é necessário incorporar, de fato, a participação da criança em todos os aspectos da sua vida” (Maritza Breder)
A saúde brasileira, como destacam as autoras, ainda carece de discussões para o Cuidado Centrado na Criança (CCC), uma vez que as metodologias e a didática aplicada nos cursos da área de Saúde priorizam o Cuidado Centrado na Família (CCF), e propiciam situações em que a criança sequer é consultada quanto aos seus sintomas e o cuidado que será prestado.
“O CCC promove uma nova forma de prover cuidados em saúde: de respeito às necessidades, vontades e preferências da criança, bem como seus melhores interesses”, ressalta a professora de Direito da UFJF, Kalline Eler. A abordagem defende que a criança seja protagonista. Estudos realizados na Irlanda são destaque, uma vez que mostram que crianças e adolescentes são largamente excluídos do processo de cuidados com a saúde, porque todo cuidado é direcionado aos pais.
Esses jovens percebem que estão sendo excluídos, se sentem impotentes e, em cuidados a longo prazo, desenvolvem uma maior ansiedade, além de desencadear sintomas de depressão. “A criança ainda é invisibilizada como sujeito do cuidado”, destaca a professora da Faculdade de Direito, Kalline Eler.
Exemplos na prática
Uma reflexão importante é na questão ética e do envolvimento da família no processo, como relata Maritza, profissionais de saúde encaram situações onde escolhas de familiares retiram a criança do seu próprio cuidado. “Uma profissional foi atender uma criança que já tinha passado por químio e radioterapia e, quando ela chegou na casa da paciente para fazer um atendimento, a mãe pediu para não falar nada sobre câncer, porque a criança não sabia que tinha câncer.” Para a pesquisadora, até que ponto a família tem o direito de esconder essa informação da criança.
“A profissional ficou sem saber como agir, porque até que ponto a gente tem esse direito de tratar como mal estar ou alguma outra coisa que não tenha essa gravidade? A criança percebe que tem alguma coisa acontecendo com ela, porque não está indo na escola e é angustiante essa relação de não saber o que que está acontecendo com o seu corpo, inclusive, para se preparar quando envolvemos, por exemplo, questões sobre morte. Será que é direito nosso esconder isso desse paciente? A família tem esse poder todo de fazer essa escolha, de esconder totalmente? “Será que essa criança não tem o direito à informação?” ressaltam a pós-graduanda e a doutora.
Confira o relato da pesquisadora sobre essa situação no áudio abaixo:
Outro exemplo importante está relacionado ao desejo da família que, para atender certas convenções sociais, interfere em questões essenciais para o bem-estar daquele jovem ou criança. A pesquisadora relembra o caso de um profissional que retirou a estereotipia a pedido dos pais, um movimento de mãos que funciona como uma autorregulação emocional e é característico de pessoas com autismo, de um adolescente. Como consequência, a comunicação da criança ficou comprometida, de maneira que a expressão manual se transferiu para um tique nos olhos. “Aquela estereotipia é importante para ele, independentemente do incômodo social, porque as pessoas é que estão erradas”, ressalta.
Mudanças necessárias
Para efetivamente colocar em prática o CCC, devem ser adotadas algumas mudanças. O artigo 11 do primeiro capítulo do ECA, por exemplo, prevê: “é assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”. Entretanto, a forma como o cuidado é prestado não é especificada e, no âmbito da legislação, a criança é abordada como um consumidor ou usuário de um serviço, e não como paciente, como destacam as pesquisadoras.
O Estatuto restringe a participação da criança a processos que envolvem sua proteção, mas não no âmbito da participação do jovem em todos os aspectos da sua vida. “É preciso primeiro considerar a criança como paciente. O ECA foca no acesso a bens e serviços de saúde, mas é necessário incorporar, de fato, a participação da criança em todos os aspectos da sua vida, porque ela está restrita a essas questões de violência familiar, para proteger e ouvir essa criança. Mas não tem a participação da criança na saúde”.
A participação vai além de apenas ouvir a criança, mas considerar suas perspectivas e garantir que todo o processo é envolto na influência e na relevância que aquele paciente tem durante o processo, principalmente para tomada de decisões. Nesse sentido, a capacitação do profissional de saúde é fundamental, para que este conheça os direitos da pessoa que está atendendo e tenha a possibilidade de atuar com o tratamento do indivíduo como sujeito de direito, resguardado por uma legislação.
Passos a serem implementados
Dentro do contexto de cuidados em saúde, diversos fatores culminam para a negligência do CCC, mas dentre eles, para as autoras, se destacam a defasagem educacional, com relação ao ensino do profissional de saúde quanto aos direitos humanos e dos pacientes, e a forma com que se constituem as operações de saúde no Brasil.
Instituições que oferecem esses serviços, ainda que públicas, trabalham com sistemas de metas que precisam ser alcançadas, muitas vezes relacionadas ao número de atendimentos, de forma que o cuidado é negligenciado, não considerando que aquele paciente possui direitos como indivíduo e sujeito do cuidado.
Para melhorar esse cenário, o início da prática é bem simples e envolve, principalmente, o diálogo. “Começar a olhar a criança, falar com ela diretamente, eu acho que já é o primeiro passo. Perguntar pra ela: ‘como você se sente? Qual é a sua dor?’ E não assim: ‘mãe, o que o seu filho está sentindo? Mãe, que que a criança tem?’ É uma frase: ‘o que importa pra você? O que você está sentindo? Qual é a sua dor?’ Isso já muda já muda a relação.”
A contribuição dos programas de graduação e pós-graduação são fundamentais para capacitar os profissionais da área pois, como pontua Kalline, a saúde se relaciona diretamente com o direito, uma vez que, inclusive, enfermeiros estudam e publicam grande parte dos artigos sobre o CCC. A oferta de matérias sobre Direitos Humanos e Direitos do Paciente são urgentes na mudança do paradigma, além de um desenvolvimento de uma comunicação empática, para uma relação mais igualitária entre o paciente e o profissional.
“A gente precisa fazer esse movimento de conscientização de que os pacientes titularizam direito, e capacitar os profissionais a serem promotores desses direitos. Isso é urgente, porque as violações ocorrem sem o profissional saber, porque não há esta capacitação. Por causa da reforma sanitarista no Brasil, a gente se preocupa muito com as questões de acesso à saúde”, destaca Kalline.
Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário
O periódico faz parte do Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz, sendo publicado de maneira trimestral. O foco da publicação está na responsabilização do Estado, nas restrições de liberdades individuais, nos dilemas éticos-legais da sedação paliativa, além da relação dos projetos de lei sobre Covid-19 apresentados na Câmara dos Deputados com as competências da Anvisa.
Pesquisa está alinhada aos ODS da ONU
As ações de pesquisa da UFJF estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). A pesquisa citada nesta matéria se alinha aos ODS 3 (Saúde e bem estar) e 16 (Paz, justiça e instituições eficazes).