No mês que marca o Dia Internacional da Mulher, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) anunciou que irá começar o debate sobre cotas trans na graduação. Política que já é realidade em outras universidades e que a comunidade acadêmica demanda da Instituição. O primeiro debate público, promovido pela Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), será na próxima quinta-feira, 13 de março, às 14h, no Anfiteatro das Pró-Reitorias, com transmissão pelo canal TV UFJF no Youtube.
Debaterão o tema a professora doutora Joyce Alves da Silva, atualmente pró-reitora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); a servidora da UFJF Dandara Felícia, mestre em Serviço Social e coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores Técnico-Administrativos em Educação das Instituições Federais de Ensino no Município de Juiz de Fora (Sintufejuf); e Lev Hellbrugge, aluno do 5º período da Faculdade de Medicina.
A UFJF foi uma das primeiras instituições a adotar as ações afirmativas na graduação no final de 2004 e, nos programas de pós-graduação, em 2021, incluindo nesta última ocasião a comunidade trans (transgêneros, transexuais e travestis). Agora, se prepara para embasar as discussões sobre o tema para levar a pauta ao Conselho Setorial de Graduação (Congrad) e ao Conselho Superior (Consu).
‘Embora a transfobia seja um fato, voltar para o armário não é uma opção’
Aprovada pelas cotas para pessoas trans no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFJF, a doutoranda Mayara Saraiva acabou de terminar as disciplinas do curso e retorna agora ao Ceará, para ser assistente social na rede municipal de Limoeiro do Norte. Passou também para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mas preferiu a UFJF. “Foi a melhor decisão, porque eu sou apaixonada por esse lugar.”

A liberdade tem um preço, mas também tem um gosto indescritível, diz a doutoranda Mayara Saraiva (Foto: Carolina de Paula)
Em sua pesquisa, Mayara trata da relação entre movimentos de pessoas trans e o chamado ‘feminismo radical trans-excludente’, tema do qual fala com propriedade. “É um grupo de mulheres que se dizem feministas, que, nos termos de Judith Butler, nem deveriam ser chamadas de feministas, que são contrárias aos nossos direitos. São mulheres cisgênero que partem de uma perspectiva extremamente essencialista. Sabe essa ideia de que mulher é a que tem útero, a mulher é a que pode procriar?”, explica. Segundo a doutoranda, o grupo se posiciona contra os direitos das pessoas trans. “Nos chamam de termos horríveis como ‘machos de saia’. Para elas, somos uma espécie de patriarcado de glitter, homens querendo usurpar o lugar das mulheres.”
Mayara é uma exceção no cenário brasileiro – país que pelo 17º ano consecutivo é o que mais mata pessoas trans. Em 2024, segundo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), foram 117 mortes, sendo o Ceará, estado natal da doutoranda, uma das unidades da federação mais violentas em relação a esse grupo. A assistente social fez sua transição há poucos anos, durante o curso de mestrado, mas sabe como é difícil a vida de meninas que passam pela transição de gênero cedo. A maioria é expulsa de casa aos 13 anos. Sem apoio da família e da escola, têm como destino a prostituição.
Embora a transfobia seja um fato, voltar para o armário não é uma hipótese, não é uma opção. Porque viver se escondendo de quem você é, se escondendo do mundo, é muito ruim. A liberdade tem um preço, mas também tem um gosto indescritível – Mayara Saraiva
Por isso, o atual título de mestre e o futuro de doutora são motivos de celebração. “Estamos criando outras narrativas sobre os nossos corpos e dizendo, ‘olha, é possível’. É um caminho que não é fácil, mas a gente consegue. Na minha vida enfrentei e enfrento muitas questões por ser uma mulher trans. Preconceitos cotidianos. No momento em que a gente se torna uma pessoa um pouco mais elaborada, os preconceitos se tornam mais sutis. Violências mais veladas. Ninguém me chama de ‘traveco’, por exemplo. Mas eu sofro outras microviolências, um olhar, um tratamento desigual, na negação da oferta de um serviço. É estrutural”, reflete.
Ela acredita em um feminismo que não deixa nenhuma mulher para trás, independentemente da raça, classe, credo, orientação sexual ou identidade de gênero. “Entendendo que embora a sua luta seja diferente da minha, quando você perde, eu perco também”, diz a doutoranda em referência ao avanço mundial do conservadorismo, das políticas ultraliberais e fascistas.
Mulheres e mães no mercado de trabalho
Assim como Mayara Saraiva, a professora do Departamento de Ciências Administrativas Renata Bicalho discute os feminismos e a posição da mulher no mercado de trabalho. “Apesar do que o feminismo liberal coloca para a gente, que a mulher já conquistou seu espaço no mercado de trabalho, temos um contexto bastante desfavorável para a mulher ainda. Principalmente se a gente considerar as intersecções, da mulher preta, das questões periféricas, das questões de classe e das questões sexuais.” Renata faz parte do Grupo de Estudos em Gênero e Interdisciplinaridade (Geni), que aborda em uma de suas vertentes de pesquisa os marcadores sociais da diferença.

Se eu estou trabalhando hoje, se eu estou votando hoje, se eu tenho direito de falar, se eu tenho direito de viajar, é graças ao feminismo e ainda há muito por lutar. Principalmente, pelos grupos que são mais vulneráveis socialmente, diz a professora Renata Bicalho (Foto: Carolina de Paula)
“Dados da ONG Think Olga mostram que faltam 134 anos para que as mulheres consigam a igualdade política, econômica e social com os homens, se continuaremos na levada que temos hoje. Então, os dados mostram que essa igualdade que o feminismo liberal coloca não é real”, avalia. Prova disso é a defasagem salarial das mulheres em relação aos homens – em média, de 20,7% – mesmo elas sendo mais qualificadas, de forma geral. E a diferença é ainda maior, se considerada a questão racial.
Para a professora, a principal razão que justifica essa defasagem é a associação da mulher à questão do cuidado. “Compomos um percentual significativo do mercado de trabalho, temos uma representatividade muito importante nas atividades de subsistência da população, mas também somos sobrecarregadas com atividades de cuidado, com atividades que exercemos dentro de casa e que não são remuneradas.” A maioria das meninas começa a exercer essas tarefas ainda na infância ou na adolescência.
A ideia de que o cuidado é responsabilidade da mulher, inclusive, é referendada pelo Estado, que dá direito à licença-maternidade de quatro meses à mãe e apenas de cinco dias ao pai. E isso se reflete nos dados sobre o mercado de trabalho – metade das mulheres deixam o emprego após serem mães, a maioria delas por vontade do empregador.
A empresa espera que você trabalhe como se você não fosse mãe. E a sociedade espera que você materne como se você não tivesse trabalho – Renata Bicalho
Também assusta a discrepância em relação aos cargos de liderança, grande parte das mulheres não concorre para essas posições em condições de igualdade com os homens, pelo próprio preconceito de uma sociedade machista ou por estarem sobrecarregadas mentalmente e com as tarefas de cuidado da família. “Conquistamos espaço no mercado de trabalho, mas não nos desoneramos das atividades de cuidado, do cuidado doméstico, do cuidado dos filhos, dos enfermos, da casa e do próprio marido. A empresa espera que você trabalhe como se você não fosse mãe. E a sociedade espera que você materne como se você não tivesse trabalho.”
Para a pesquisadora, o cuidado, seja das crianças ou dos enfermos, deveria ser uma meta social, uma responsabilidade que não é exclusiva da família. “A sociedade tem que se comprometer com isso porque não há justificativa cabível, fisiológica, biológica, neurológica que responsabilize a mulher pelo cuidado. A ciência já desmistificou isso.” Por isso, políticas públicas são importantes, entre elas, o mesmo período de licença para os pais, maior flexibilidade da jornada de trabalho para ambos e ampliação de creches. “Para a mulher conseguir efetivamente ser colocada em pé de igualdade com o homem no mercado de trabalho, esse modelo de maternidade de hoje tem que ser repensado.”
O efeito tesoura na ciência
Tanto a professora Renata Bicalho como a docente do Departamento de Química Celly Mieko Izumi vivenciaram na pandemia de covid-19 situações desafiantes que as fizeram voltar suas pesquisas para as questões de gênero. “Vi minha produtividade ir a zero nesse período”, admite Celly, que é mãe de duas crianças, hoje com 6 e 9 anos. Ela acredita que os impactos da pandemia na ciência não ficaram tão evidentes, pois os homens acabaram intensificando seus estudos, ao passo que as mulheres, especialmente as mães, voltaram-se para as atividades domésticas e de cuidado.

Celly conta que um dos vestibulares mais disputados na época em que era estudante, o ITA, não permitia mulheres, e, hoje, apesar dos avanços, chegar ao topo da carreira é difícil (Foto: Alexandre Dornelas)
Celly é de São Paulo e morou em São Bernardo do Campo, cidade com forte vocação para a área técnica. Ao ingressar na Química não viu, a princípio, grandes diferenças entre o número de homens e mulheres em sala de aula – isso aconteceu mais tarde. “Até a graduação tem essa igualdade do número, mas a partir do momento que a gente vai subindo, acontece o efeito tesoura”. A docente se refere ao significativo corte da presença feminina na medida em que as carreiras científicas avançam. “Quando você avalia, por exemplo, o número de bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a participação de professores nos programas de pós-graduação, aí vemos esse afunilamento.”
Para driblar essa questão estrutural, Celly acredita que é preciso investimento desde a base, com letramento sobre gênero, fazendo com que as meninas se interessem pela ciência e, principalmente, tenham apoio para permanecerem no curso. Além da área de exatas ter grande evasão, segundo a professora, é possível notar que as estudantes precisam se ausentar mais do que os alunos homens, e não conseguem se dedicar integralmente aos estudos. “Acho que só agora o CNPq e as agências de fomento começaram a ter um olhar diferente, uma política voltada para essa questão.”
“Acredito que para a gente avançar na ciência, precisamos de diversidade. Não só a inclusão das mulheres, mas a diversidade como um todo. Se a gente ficar só com aquele mesmo padrão de pesquisador, teremos sempre a mesma visão”, adiciona.
Recentemente, por meio de um edital do CNPq, foi aprovada a Rede Nacional de Mulheres na Nanociência, da qual Celly Mieko e outras 16 pesquisadoras da UFJF fazem parte. Entre elas, a professora do Departamento de Física Zelia Ludwig, que há anos trabalha com o tema na Instituição. O objetivo é capacitar e formar uma nova geração de cientistas e profissionais, com distribuição equitativa no acesso a oportunidades educacionais e de pesquisa em todas as regiões. O projeto envolve 21 Instituições de Ensino Superior, quatro empresas e 20 escolas de Educação Básica, alcançando 80 pesquisadoras e mais de 10 mil estudantes. A UFJF irá sediar o primeiro encontro da rede no Simpósio Nacional de Mulheres na Nanociência, em junho.
“Temos que trabalhar o letramento sobre a questão de igualdade de gênero – tanto para quem já está no meio acadêmico, mas, principalmente, para quem está chegando. A mudança vai vir nas próximas gerações. Mas é lógico que para isso a gente vai precisar de muita política pública. Só discussão não vai resolver.”
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