A discriminação por conta da cor da pele é uma pauta que atravessa gerações. Em todo mundo, pessoas vivem e convivem com ela todos os dias. Presente em todas as esferas da sociedade, o racismo é crime e precisa ser combatido com ações efetivas de enfrentamento e por meio da educação. No dia 7 de julho é celebrada a criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) – evento importante para repensarmos a representatividade de pessoas negras na sociedade, suas contribuições e saberes milenares, discutir a exclusão, a falta de oportunidades e a importância da luta pela igualdade e reparação histórica.
Histórico e conquistas do Movimento Negro Unificado
Há 45 anos, no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, surgia o Movimento Negro Unificado (MNU). Em uma manifestação expressiva, mais de duas mil pessoas entoaram suas vozes em busca de respeito, liberdade e democracia, após lamentáveis casos de discriminação racial. Em maio de 1978, agentes da 14ª Delegacia de Polícia da Capital torturaram e mataram Robson Silveira da Luz, de 21 anos. Também naquele ano, quatro garotos negros, atletas da equipe juvenil de vôlei do Clube de Regatas Tietê, foram barrados no clube.
Uma carta aberta do movimento foi lida pelos manifestantes convocando a população para se organizar em seus espaços de convivência contra a discriminação racial e a violência das instituições policiais. As principais figuras na criação do MNU foram Abdias Nascimento, Milton Barbosa e Lélia Gonzalez.
O racismo só veio a ser considerado crime no Brasil em 1988, com a Lei Caó, do deputado federal Carlos Alberto Caó de Oliveira. Antes disso, um episódio de racismo ocorrido em 1950 com a dançarina norte-americana Katherine Dunham, no Theatro Municipal de São Paulo, motivou a aprovação do projeto de lei de Afonso Arinos, o qual determinava que atitudes racistas se transformassem em contravenção penal. Considerada a primeira norma a punir atos racistas, a lei, por outro lado, proibia a formação “de ‘frentes negras’ ou de quaisquer modalidades de associação com fins políticos baseadas na cor”.
De lá pra cá, no campo da educação, o movimento conseguiu várias conquistas. Em 2003, foi promulgada a Lei 10.639/03, que inclui a cultura afro-brasileira no currículo escolar. Houve também a inclusão da história e da cultura indigena como obrigação na educação básica.
Também pode-se destacar a Resolução 01 de 17 de junho de 2004, que trata da instituição das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, principalmente para que essas diretrizes sejam trabalhadas na formação, com enfoque especial para a formação de professores.
Outra vitória do movimento é o reconhecimento do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, incluído no calendário escolar. A data é marcada pela morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Além disso, em 2012, a Lei de Cotas do Ensino Superior foi instituída no Brasil (Lei 12.711/12), onde é destinado 50% das vagas para alunos de escola pública, sendo metade desse percentual, para negros.
A busca por maior representatividade na UFJF
Servidora da Universidade há 12 anos, a advogada Roberta Oliveira se considera um ponto fora da curva. “Sempre soube, em especial observando meus próprios familiares, que estudar era minha única opção de mudar aquele ciclo de séculos: meus avós eram analfabetos, trabalhadores rurais; meus pais sempre tiveram empregos medianos, da mesma forma que meus tios e primos mais velhos. Embora tenha sido sempre boa aluna, tive que começar a trabalhar cedo e, com isso, não pude me dedicar aos estudos da forma que desejava.”
Bolsista do Prouni, Roberta era uma das cinco pessoas negras em uma sala com 35 alunos do curso de Direito – realidade bastante comum até o início dos anos 2000. “Historicamente somos um povo de identidade roubada e desvirtuada. Somos um povo que precisamos provar o tempo todo a nossa capacidade.”
Questionada sobre o papel das cotas, Roberta acredita na sua importância para ampliação do acesso ao ensino superior, e destaca a necessidade das políticas de distribuição de renda para combater a desigualdade no país. Segundo ela, o principal obstáculo das pessoas pretas é a falta de renda. “Somos maioria na população, mas sempre minoria em espaços de oportunidades. E sem formação adequada, as únicas oportunidades são justamente em vagas de menor destaque para nós, enquanto população negra. Acredito que além das ações afirmativas, as políticas públicas que visem a melhor distribuição de renda são essenciais.”
A presença de pessoas negras trabalhando dentro da Universidade ainda é baixa. No campus Juiz de Fora, 76,32% dos professores e técnico-administrativos em Educação (TAEs) são brancos e, em Governador Valadares, 66,67% dos profissionais. Em três unidades do campus sede, sendo duas administrativas e uma acadêmica, há ausência total de trabalhadores negros. Os dados são do projeto “Conhecendo a Comunidade Negra no âmbito da UFJF”, realizado pelo professor do Departamento de Matemática da UFJF, Willian José da Cruz. As informações foram coletadas junto à Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas em 2021.
Roberta Oliveira, que trabalha no Departamento de Matemática, exemplifica. “Na UFJF tenho poucos colegas de trabalho negros. Somos quatro TAEs no meu setor, só eu sou negra. Dos 43 professores do departamento, acho que apenas uns quatro são negros. E dos três programas de pós-graduação que temos aqui, acredito também que nem 10% dos alunos sejam negros.”
De acordo com o coordenador, a pesquisa permitiu constatar com dados a enorme discrepância existente entre servidores negros e brancos, em termos quantitativos. Ainda de acordo com Cruz, mesmo após a criação da lei 12.990 de 2014, que determina a reserva de 20% de vagas nos concursos públicos para negros, o que se vê na prática é ainda um longo caminho pela frente para que essa realidade possa ser diferente.
“A nossa Universidade tem trabalhado, por meio da Diretoria de Ações Afirmativas principalmente e por vários colegas professores, técnicos, alunos e os diversos coletivos e grupos, para que sejamos uma Universidade que respeita e valoriza a diversidade e que seja uma instituição plural.” Segundo ele, existe a possibilidade de se fazer uma pesquisa complementar, diferenciando professores e técnicos, e mostrar quantos desses estão envolvidos com a luta antirracista.
Trabalhos devem avançar também sobre os currículos
Ainda de acordo com o professor Willian Cruz, está sendo desenvolvido um trabalho que visa analisar os currículos e livros didáticos da Educação Básica, em especial na Matemática, no intuito de identificar se há algum apontamento na Matemática que convirja para o estudo da História e da Cultura Afro-brasileira e Africana. O projeto foi enviado para avaliação do edital 02/2023 da Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa.
Se a Universidade é um retrato de nossa sociedade, temos que efetivar isto, modificando o cenário – Willian Cruz
“As cotas para a pós-graduação, graduação e no concurso público já são ações importantes, mas não é só isto, precisamos trabalhar para que as ações afirmativas se ampliem também para permanência e principalmente que tenhamos condições de construir reflexões e compromissos para uma sociedade antirracista. Se a Universidade é um retrato de nossa sociedade, temos que efetivar isto, modificando o cenário.”
De acordo com o diretor de Ações Afirmativas e professor da Faculdade de Educação, Julvan Moreira de Oliveira, o Brasil é um país multicultural, com saberes e conhecimentos de outros povos que fazem parte da nacionalidade, como negros e descendentes de africanos. Para ele, é necessário a inclusão do conhecimento das diversas áreas que foram e são desenvolvidas naquele continente e que marcam a identidade de parte de nossa população.
“Por exemplo, em Filosofia, que é a minha formação superior, por que só estudar os pensadores ocidentais e alguns norte-americanos? É urgente que os estudantes de filosofia possam conhecer algumas principais vertentes das Filosofias Africanas como a Etnofilosofia, Afrocentricidade, Ubuntuísmo, a Filosofia da Sagacidade, das questões políticas e das questões de identidade de gênero.”
O que denominamos ‘pacto narcísico da branquitude’, impede o acesso de negros, pois os brancos privilegiam os seus iguais – Julvan de Oliveira
Ainda segundo Oliveira, é necessário uma reflexão sobre a ampliação do quadro de pessoas negras dentro da Universidade. Ainda de acordo com ele, na atualidade, não há mais como se pensar em uma instituição sem que haja representação de todos os segmentos da sociedade em todos os seus espaços.
“O que denominamos ‘pacto narcísico da branquitude’, impede o acesso de negros, pois os brancos privilegiam os seus iguais. É só observar um pouco as nossas diversas instituições, um político que se projeta hoje é filho e neto de políticos ou numa universidade em que você encontra algum docente que é filho ou filha de um docente, marido ou mulher de outra docente, ou seja, há um compadrio nesse pacto da branquitude, que a única forma dos negros irem quebrar esses muros é pelas cotas.”
Tema é abordado em documentário por aluno do RTVI
Como forma de externar vivências, olhares e perspectivas, o estudante do curso de Rádio, TV e Internet (RTVI), Devanir Alves, produziu o documentário “A querela da primeira década”. A obra parte de uma visão pessoal sobre questões raciais, mobilizando o espectador a pensar sobre a presença de pessoas pretas na Universidade.
“Sempre gostei de narrativas de contraste, logo, optei por propor debates que surgissem através do próprio mecanismo. E é assim que as questões raciais aparecem dentro do filme, mobilizando o espectador a pensar sobre a presença de pessoas pretas no campus, principalmente no corpo docente e outras questões que atingem os negros no Brasil.”
Alves acredita que a Universidade trilha por um caminho de progresso em relação à pluralidade racial dentro do campus, mas “ainda há muito a ser feito pelo corpo docente, que, por sua vez, está muito longe de representar a pluralidade racial e étnica do território brasileiro”. Para o estudante, os atrasos de uma sociedade escravocrata ainda estão longe de serem superados e a política de cotas ainda engatinha em busca de uma total reparação histórica.
O filme busca dar voz aos personagens, principalmente aos trabalhadores negros. “O documentário quer encontrar essas pessoas, trazer elas para tela, para perto, dar voz e descobrir o que pensam, como enxergam a universidade, se sentem ou não parte deste corpo. É algo que já me incomodava antes mesmo do filme, e, o construindo, percebi que é também um incômodo para outras pessoas, sendo um tema que precisa ser cada vez mais discutido, trazendo mais abordagens e pontos de vista.” “A querela” será exibido na Mostra de Documentários, que acontece nos dias 6 e 7 de julho no Auditório da Faculdade de Comunicação.
Política de cotas
A UFJF aprovou seu próprio sistema de cotas em 2004, sendo a política de ingresso iniciada em 2006. O percentual destinado aos alunos de escolas públicas, e reservado a candidatos autodeclarados negros, foi sendo ampliado nos anos seguintes até chegar, em 2008, a 50% para as ações afirmativas. A Lei de Cotas, de 2012, tornou obrigatória a reserva de 50% das vagas nas universidades federais para alunos oriundos do ensino público, e está em permanente debate político, seja pelo marco de seus dez anos ou, mais recentemente, pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos.
“A gente vê que vem sendo ocupadas essas vagas e quem vem tendo esse aumento de pessoas pretas, pardas e indígenas dentro da instituição consolidando aquilo que vem dentro da legislação”, avalia o pró-reitor de Graduação, Cassiano Amorim. Segundo levantamento da Prograd, outra medida também vem contribuindo para a efetivação do acesso e para a garantia do direito à vaga – as bancas de heteroidentificação, implantadas em 2019.
Com as bancas, o número de denúncias recebidas por condutas racistas na UFJF foi de 152, em 2020, um, em 2021, três, em 2022, e até agora seis, em 2023.
Para a estudante do quinto período de Nutrição, Laura Silva, a política de cotas é um importante avanço para o acesso de pessoas negras na instituição. “É necessário entender que todos somos iguais e temos a mesma capacidade de aprender. Só que infelizmente há uma desigualdade de oportunidades.” Ela cita também a baixa representatividade no mercado formal de trabalho, seja por barreiras culturais ou pela pouca visibilidade.
“Antes de ingressar, eu já imaginava que a faculdade seria um ambiente onde predominam pessoas de pele clara, seja pela desigualdade racial ou social entre as raças. Porém, isso nunca me impediu de socializar e nunca me fez sentir menor do que ninguém por conta da cor da minha pele. Sempre tive bem fixo dentro de mim que somos todos iguais perante a Deus.”
A UFJF também implantou as cotas na pós-graduação em outubro de 2021, que determina 50% das vagas nos processos seletivos de mestrado e doutorado para negros, indígenas, quilombolas, ciganos, pessoas trans, com deficiência, refugiadas e migrantes humanitários. A portaria, de maio de 2016, do Ministério da Educação (MEC) orientava que as universidades promovessem políticas de ações afirmativas também em programas de pós-graduação.
Registro de denúncias
Qualquer manifestação racista pode e deve ser denunciada através da Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas da UFJF. O solicitante pode acessar a plataforma Fala-BR para registrar a manifestação, que pode ser feita de forma anônima. Os registros de denúncia também podem ser feitos de maneira presencial ou através do e-mail: ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.br.
Após a formalização da denúncia, será dado encaminhamento para as unidades competentes responsáveis pela apuração dos fatos. Cabe ressaltar que a Ouvidoria não é responsável pela apuração e determinação de possíveis sanções. A Ouvidoria está aberta a toda a comunidade acadêmica, o que inclui funcionários terceirizados, além da comunidade externa.
Em janeiro deste ano, entrou em vigor a lei que tipifica injúria racial como crime de racismo. De acordo com a mudança, a nova Lei diz que: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” pode gerar pena de reclusão (de dois a cinco anos) e multa.