Pesquisadoras da UFJF mostram novo formato de anel vaginal que proporciona diversas melhorias funcionais (Foto: Carolina de Paula)

“Homem” é uma palavra cujo sinônimo pode ser, entre outros, “humanidade”. Por séculos, até mesmo por milênios, esse entendimento foi refletido na ciência: o modelo de corpo entendido como universal foi o masculino. Essa visão estreita resultou na recorrente desconsideração da anatomia feminina, especialmente suas particularidades em relação à masculina, bem como a restrição da mesma ao papel de gerar bebês. 

Justamente por estar em constante movimento e questionamento, a ciência – ou melhor, aqueles que fazem a ciência – abriu os olhos para as oportunidades perdidas, o tempo desperdiçado e as vidas impactadas por não ter o corpo feminino e suas muitas singularidades em conta. Um exemplo de pesquisa nesse sentido é sediada na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), desenvolvida no Núcleo de Pesquisa e Inovação em Ciências da Saúde (Nupics) da Faculdade de Farmácia. 

Os frutos dessa pesquisa já são visíveis: foi registrado pelos pesquisadores, junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), um novo formato de anel vaginal que resulta em uma aceitação mais confortável, aumentando a acessibilidade do produto para que pessoas com vaginas façam reposição hormonal e adotem métodos de contracepção – e, em um futuro próximo, possa impactar até mesmo na prevenção e no tratamento de doenças sexualmente transmissíveis.

Impressão 3D de anéis vaginais

Reflexo da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), o projeto “Impressão 3D de anéis vaginais: avaliação das percepções de mulheres e ginecologistas” é conduzido por Laura Junqueira, Francisco Raposo, Geraldo Sérgio Vitral, Marcos Brandão e Nádia Raposo. Os pesquisadores ressaltam que o uso desses anéis (que são uma opção para a liberação controlada de medicamentos por um período prolongado de tempo, de semanas a meses) tem vantagens claras: “segurança, aplicação local realizada pela própria mulher, poucos efeitos adversos, liberação controlada do fármaco e baixa frequência de administração”. 

Coordenado pela professora Nádia Raposo, o Nupics foi concebido para aproximar o setor produtivo da área de saúde com o setor acadêmico (Foto: Carolina de Paula)

Porém, por serem fabricados em larga escala em uma geometria fixa, ou seja, sempre nos mesmos tamanhos e com pouca variagem da dosagem, os anéis vaginais no Brasil ainda encontram obstáculos para ser uma opção viável, já que não é levado em conta que o público-alvo tem diferentes necessidades, hábitos e preferências. “A geometria, a cor, a textura e até mesmo o odor são características relevantes a serem consideradas durante o desenvolvimento de formulações vaginais. E o formato (design) tem particular importância, pois pode impactar na percepção da facilidade de aplicação dos medicamentos vaginais.”

De acordo com os pesquisadores, é aí que entra a tecnologia da impressão 3D, também chamada de manufatura aditiva. “Essa opção vem sendo descrita como uma tecnologia inovadora e emergente que pode possibilitar uma transição da abordagem atual de produção em massa para a fabricação de medicamentos personalizados de acordo com as necessidades individuais. Adicionalmente, devido a sua versatilidade, a impressão 3D possibilita a fabricação de formatos diferenciados, os quais seriam difíceis de serem produzidos tradicionalmente”, compartilham. 

É por isso que os cientistas da UFJF empregaram esse tipo de impressão para fabricar quatro formatos diferentes de anéis vaginais e, desta forma, avaliar as percepções de mulheres e ginecologistas em relação aos dispositivos desenvolvidos. “Os formatos avaliados no trabalho incluem: o tradicional de círculo, dois formatos previamente descritos na literatura e um inovador, desenvolvido e patenteado junto ao Inpi pela equipe de pesquisa, via o Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia (Critt) da UFJF.” 

Segundo os resultados já constatados pela pesquisa, esse novo formato criado na UFJF proporciona melhorias funcionais, como melhor manuseio, adaptação e fixação à mucosa vaginal, evitando expulsões involuntárias e promovendo adequado conforto genital; possibilidade de trânsito de fluidos biológicos (sêmen, fluxo menstrual, fluido vaginal); e aumento da área de contato com a mucosa, com consequente facilitação da liberação de fármacos.

Após o registro de propriedade industrial, os pesquisadores da UFJF pretendem articular o intercâmbio de dados gerados na pesquisa, protegidos com ênfase na transferência de tecnologia para o setor produtivo para uso e benefício da população feminina. 

Mulheres não são um grupo homogêneo

Pesquisa de doutorado de Laura Junqueira tem como foco dispositivo intravaginal de liberação controlada (Foto: Carolina de Paula)

Junqueira, Raposo, Vitral e Brandão frisam que as pesquisas e o desenvolvimento de produtos voltados para o corpo feminino devem levar em consideração fatores como idade, raça, sexualidade, deficiência, território, classe, preferências, necessidades, entre outros. “A personalização dos anéis vaginais, especialmente em relação ao formato, com mais opções para que a mulher consiga escolher o seu preferido, pode levar a uma maior aderência à terapêutica e diminuição dos efeitos adversos, fazendo com que o tratamento seja mais efetivo e em última análise melhore a qualidade de vida da mulher.”

Quando questionados se as políticas que envolvem pesquisas para esse público estão mudando para levar em consideração as necessidades específicas do corpo feminino, os pesquisadores lembram que, de acordo com a teoria social, o gênero é também dependente de fatores históricos e sócioculturais. “Um olhar para o ser mulher como algo além da biologia e anatomia é imprescindível para a evolução dos cuidados em saúde da mulher. Nessa perspectiva, as políticas em saúde voltadas para a pesquisa e desenvolvimento de fármacos devem caminhar no sentido de uma atenção integral, cada vez mais centrada nas necessidades específicas de saúde de cada indivíduo e reconhecendo como as diferenças podem influenciar, por exemplo, na adesão à terapia e, portanto, no processo de saúde”, refletem. 

Por isso, eles defendem que é indispensável para o processo científico incluir a escuta atenta às mulheres para, assim, “identificar as melhores práticas e o desenvolvimento de produtos mais adequados para atendê-las, visando não só a humanização e a personalização, mas permitindo que as mulheres avancem nas suas conquistas, na perspectiva da saúde como direito de cidadania.”

Relembre: O gênero importa: por uma ciência mais diversa e equânime