Brune Brandão com a mãe e o pai no dia da defesa da tese (Foto: Alexandre Dornelas)

A pesquisadora Brune Coelho Brandão se tornou a primeira mulher trans doutora pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A defesa da tese, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, aconteceu na última quinta-feira, 27, reunindo a comunidade acadêmica, familiares, amigos e amigas de Brune.

O estudo “Psicologia e modos de subjetivação: a produção das transidentidades a partir da metodologia grupal” foi orientado pela professora Juliana Perucchi, trazendo questionamentos sobre cisheteronormatividade e LGBTQIA+fobia estrutural.  Para a pesquisadora, ao refletir sobre os processos de subjetivação, é fundamental levar em consideração determinados marcadores sociais.

“Não trabalhamos com a perspectiva de neutralidade. Por isso, percebo a necessidade de conhecimentos produzidos por pessoas trans para pessoas trans. Existem muitas pessoas cis pesquisando as pessoas trans e isso gera certos impactos sobre esses corpos trans e travestis. Então, como estratégia de resistência epistêmica, comecei a pensar, produzir e me colocar enquanto uma pesquisadora que busca conhecimentos mais socialmente engajados”, explica Brune sobre sua metodologia de trabalho. 

Não trabalhamos com a perspectiva de neutralidade. Por isso, percebo a necessidade de conhecimentos produzidos por pessoas trans para pessoas trans.

O interesse de Brune pela pesquisa teve início ainda na graduação, quando ela participou de projetos ligados ao Núcleo de Pesquisas e Práticas em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde (PPS). Entre eles, o Visitrans, projeto de extensão que promove uma rede de troca de experiências e vínculos entre as pessoas travestis e transexuais da cidade de Juiz de Fora, através de atendimentos realizados no Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UFJF. “Estar vinculada a uma prática socialmente engajada faz com que a gente aprenda muito, possibilita que construamos junto com os sujeitos”, destaca.

As histórias compartilhadas por meio do Visitrans foram determinantes para a construção do estudo. “Não escrevi essa tese sozinha. Essas pessoas me ajudaram indiretamente no processo de escrita e de produção científica, nos quais busquei ouvir pessoas em situação de vulnerabilidade, escutando marcadores sociais que não só gênero, mas também classe, raça, território, geração, sexualidade, utilizando uma metodologia de pesquisa-ação participativa”.

Pesquisas de pessoas trans podem (e devem) transformar o conhecimento
Ainda que a universidade tenha ampliado suas formas de acolhimento, a valorização da produção acadêmica e científica produzida pelas pessoas trans é um desafio a ser superado. “A universidade, por vezes, aceita nossos corpos, mas não as nossas ideias e epistemologias. Por isso, há de se refletir sobre a universidade que temos e a que queremos. Estarmos nesse espaço de uma maneira mais propositiva é uma forma de transformá-lo, no sentido de torná-lo mais acolhedor, de fazer com que o contexto acadêmico encare novos sujeitos protagonizando esse lugar”.

No campo específico da Psicologia, historicamente, essa ciência reivindica para si a autoridade sobre a avaliação e diagnóstico do gênero da pessoa. “A Psicologia impôs, durante muitos anos, como deveria ser o processo de transição de gênero, os procedimentos cirúrgicos que o sujeito deveria eleger ou não, as identidades binárias e que, para ter acesso a políticas de saúde, era preciso que o sujeito assumisse ter um transtorno psicológico.”

Para a professora Juliana Perucchi, a pesquisa é só o início de uma série de discussões contemporâneas realizadas em todo mundo. “Estamos vivendo um processo de reconstrução de uma nova Psicologia, de uma nova ciência e de uma nova Universidade, que respeitem novas metodologias, que não irão violar as pessoas trans, travestis e não binárias”, completa Brune.

Estamos falando de vidas, e de vidas que valem a pena ser vividas, que queremos dignificar, levando em consideração toda a necessidade de reparação histórica e violações que a ciência tem imposto a nós ao longo dos anos

Juliana ainda reforça o impacto do estudo para a UFJF e para sociedade juiz-forana, bem como para a produção científica mineira. “Tomara que a Brune seja a primeira de muitas outras pessoas transexuais a ingressarem no nosso e em outros programas de pós-graduação da UFJF. Queremos esses sujeitos como parceiros de trabalho e, talvez em um futuro próximo, em outra conjuntura de país, concorrendo às vagas de professores e pesquisadores. Isso só agrega valor à nossa comunidade acadêmica.”

Brune concorda com a orientadora sobre o significado da conquista do título de doutora por uma mulher trans: “estamos falando de vidas, e de vidas que valem a pena ser vividas, que queremos dignificar, levando em consideração toda a necessidade de reparação histórica e violações que a ciência tem imposto a nós ao longo dos anos”.

Banca foi composta por docentes da UFJF e de outras instituições (Foto: Aline Avellar)

A banca de doutoramento foi composta pelas professoras Flávia Teixeira, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Jaqueline Gomes de Jesus, do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (DIHS/ENSP/Fiocruz); Fabiane Rossi, do Departamento de Psicologia da UFJF; e pelo professor Marco José Duarte, da Faculdade de Serviço Social da UFJF.