Quadro que representa o Grito do Ipiranga foi encomendado pelo governo imperial e finalizado décadas após o acontecimento (Pintura: Pedro Américo / Arte: UFJF)

A cena que a maioria de nós imagina quando pensa sobre a Independência do Brasil foi encomendada – literalmente. Pintado pelo artista Pedro Américo, o quadro “Independência ou Morte”, que mostra Dom Pedro I em uma cena heroica, cercado de cavalheiros e brandindo uma espada, foi comissionado pelo governo imperial e ficou pronto em 1888, mais de seis décadas depois do 7 de setembro que entrou para a história do país.

Além dos questionamentos sobre os mitos envolvendo o imaginário criado pela pintura, outras questões rodeiam esse marco histórico: o grito de Independência do Brasil representou conquistas e liberdade para quem? 

Pesquisadores defendem o rompimento com a leitura “romântica” da independência brasileira (Imagem: Arquivo Nacional / Arte: UFJF)

Segundo os pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ouvidos nesta reportagem, a data é, no mínimo, controversa. Isso porque, no entendimento científico e histórico mais recente, o apagamento de determinados personagens torna a narrativa em torno do 7 de setembro simplista e conservadora.

Professora do departamento de História do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF, Hebe Mattos, explica que essas narrativas, geralmente, destacam “a vontade de um príncipe absoluto e não o processo constituinte de independência”.  É como se o Brasil fosse formado apenas como uma simples continuação da colonização portuguesa e, depois, em torno da figura do príncipe proclamado imperador. “Esquecem-se dos muitos conflitos por trás dessa continuidade e de toda a diversidade étnica e cultural responsáveis pela formação do país.”

Outro ponto é a imposição da figura de um salvador no imaginário coletivo, colocando Dom Pedro I como principal motor do processo político. Para Hebe, isso acaba desconsiderando povos negros e indígenas que participaram das lutas pela separação de Portugal, representada, por exemplo, pelas guerras de independência da Bahia. “São silenciados uma série de conflitos, muitos deles armados, verdadeiras guerras civis, que marcaram os trinta primeiros anos do período imperial.”

Atualmente, segundo o pesquisador Alexandre Barata, também do departamento de História do ICH-UFJF, “procura-se cada vez mais romper com dada leitura ‘romântica’ que começou a ser construída no século XIX, sobretudo por historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que toma a Independência como expressão de anseios nacionais que já estavam presentes no conjunto da sociedade colonial e que, no início do século XIX, emergiram em defesa da ruptura com Portugal”.

Para os professores, é essencial entender a independência como processo, e não apenas como marco, levando em conta, por exemplo, as dificuldades de manutenção da unidade territorial, o caráter violento e excludente desse processo, a relação intrínseca entre independência e manutenção da escravidão, assim como a resistência das províncias, principalmente no Norte e no Nordeste do país.

Sem liberdade – nem mesmo a tardia
Apesar da Constituição Política do Império ser o primeiro documento que abre discussões sobre cidadania e direitos no Brasil, esses conceitos permaneceram restritos apenas a uma pequena parcela da população. 

Africanos que vieram escravizados para o Brasil, ainda que recebessem alforria posteriormente, não foram considerados cidadãos. Mesmo aqueles que já nasciam libertos da escravidão eram vistos como “de segunda classe”, pois tinham direitos civis na teoria, mas não direitos políticos.

Juramento de D. Pedro I à Constituição de 1824 (Imagem: Arquivo Nacional / Arte: UFJF)

A professora Hebe Mattos explica que negros livres sofriam uma série de restrições ao acesso a cargos públicos, eclesiásticos e de altas patentes militares no período colonial. Essas restrições caíram formalmente com a constituição outorgada em 1824. Apesar disso, os libertos (ou seja, ex-escravizados que conseguiram a alforria), mesmo que conseguissem a renda exigida para serem eleitores, continuaram proibidos de se candidatar a cargos políticos. Seus filhos e netos livres, ainda que, formalmente, tivessem todos os direitos, podiam ser confundidos com “escravos fugidos” e tratados como tal apenas em função de sua cor.

Já em relação aos indígenas, os constituintes estabeleceram uma pré-condição para que passassem de “brasileiros” para “cidadãos”: abandonar a “selva” e “abraçar a civilização” – o que, na prática, significava deixar os costumes e os papéis já estabelecidos entre as sociedades indígenas para atuar como mão de obra produtiva para o império e os proprietários de terra.

O próprio conceito de propriedade privada de terras era diretamente ligado ao de cidadania, como lembra o pesquisador Lourival Batista de Oliveira, vinculado ao departamento de Economia da UFJF. “E o acesso à terra era dificultado, tanto a compra quanto a venda. E a possibilidade de inclusão cidadã foi obstaculizada institucionalmente, seja por instrumentos como os que perpetuavam a escravidão, seja como medidas como a Lei de Terras, que dificultava o acesso à Terra ao vinculá-lo aos processos mercantis de compra e venda.”

Para os indígenas serem considerados cidadãos, era necessário abandonar a “selva” e “abraçar a civilização” (Foto: Bento Pereira de Lemos/ Arte: UFJF)

O professor reforça a dificuldade de se realizar leituras sobre episódios passados com os “nossos olhos do século XXI”. Para ele, no entanto, é possível, passados esses séculos, “avaliar que, em termos econômicos, o Brasil formou-se com base na manutenção e no reforço das desigualdades e da exclusão – uma realidade na qual parcela expressiva da nação opta pela não inclusão das outras pessoas que viviam, e seguem vivendo, nesse território”.

Hebe Mattos cita que nas primeiras décadas após a independência existiam propostas de abolição da escravatura a médio prazo, a partir do compromisso assumido pelo estado imperial de interromper o tráfico de africanos escravizados para o reconhecimento da independência pela Inglaterra. “Havia aqueles que reconheciam a escravidão apenas como uma instituição histórica, que estava baseada no direito de propriedade e não em diferenças raciais, e uma elite política de ‘homens de cor’ que lutava pela igualdade”, elucida Hebe.

“Então, a escravidão deveria terminar apenas a médio prazo por conta da lógica econômica do país, mas o tráfico atlântico devia ser interrompido e a população livre ‘de cor’ devia ter plenos direitos de cidadania. A importância da reivindicação dessa elite parda no contexto da independência brasileira foi derrotada na prática, visto que a primeira proibição do tráfico de africanos é desrespeitada e o Brasil se torna um império contrabandista de africanos escravizados, mesmo sob a pressão inglesa”, conclui a pesquisadora.

A independência do Brasil tem relação intrínseca com a manutenção da escravidão (Foto: Alberto Henschel, Instituto Moreira Salles / Arte: UFJF)

Com o fim da escravidão nos Estados Unidos 1865, após uma violenta guerra civil, o Brasil permaneceria como a única nação escravista do continente até 1888, com a Lei Áurea. Do ponto de vista histórico e econômico, tais questões raciais são fundamentais para a compreensão sobre o processo. Segundo Barata, “é fundamental a compreensão da Independência como processo e não como mero evento isolado, inserido no quadro das ‘revoluções atlânticas’, mas que, por outro lado, significou a continuidade da escravidão e a exclusão de direitos de amplos segmentos da sociedade”.

Na Economia, o Brasil também tem um longo passado pela frente
Paradoxalmente, a Independência do Brasil significou a dependência econômica de outra nação. Em 1825, Brasil e Portugal firmaram o Tratado de Paz e Aliança, que instituía o reconhecimento português da independência brasileira – porém, ela só seria feita mediante o pagamento de dois milhões de libras esterlinas, uma espécie de indenização para compensar Portugal pela “perda” de sua colônia lucrativa. Recém-nascido e zerado, o Brasil precisou recorrer a empréstimos com bancos da Inglaterra para conseguir pagar a coroa portuguesa.

Ao refletir sobre o legado econômico do Brasil pós-Independência, o pesquisador Lourival Batista de Oliveira avalia que a formação histórica do país, baseada na pouca preocupação com a geração de oportunidades para o próprio povo, acabou por voltar a economia brasileira para atender o mercado internacional como forma de garantir a “modernização pelo consumo”; ou seja, “voltamos nossa economia para gerar dólares para atender a compra de produtos ‘modernos’”. 

“São várias as formas possíveis para definir o que é desenvolvimento. Na maioria delas, ainda é legítimo classificar o Brasil como subdesenvolvido. Falta, por exemplo, a autonomia tecnológica nacional – requerimento que está cada vez mais distante diante de medidas como a de cortes de verbas para o setor de ciência e inovação.” 

Por uma nação mais justa, democrática e inclusiva
Para os pesquisadores, a data do 7 de setembro deve ser uma oportunidade de reflexão sobre o processo de construção da nação brasileira na sua diversidade. “E também para a defesa dos valores democráticos e da cidadania e para possibilitar a expressão de narrativas até agora invisibilizadas pela historiografia”, complementa Barata. “É preciso aproveitar essas efemérides para aprofundar o debate sobre a necessidade de completar a tarefa de construção de uma nação mais justa, democrática e inclusiva.”

“Em termos econômicos, o Brasil formou-se com base na manutenção e no reforço das desigualdades e da exclusão – uma realidade na qual parcela expressiva da nação opta pela não inclusão das outras pessoas que viviam, e seguem vivendo, nesse território” (Foto: Alberto Henschel / Felipe Augusto Fidanza / Instituto Moreira Salles / Arquivo Nacional. Arte: UFJF)