“Não deixar ninguém para trás” é a premissa da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e prevê, entre seus 17 objetivos, a educação inclusiva, equitativa e de qualidade por meio da promoção de oportunidades de aprendizagem para todos e todas. Reunidos em 2015 na sede da Organização das Nações Unidas, líderes mundiais pautaram os caminhos para tentar reduzir desigualdades no mundo, a partir de uma sociedade mais justa e igualitária. A data é mais um dos marcos históricos de luta pelos direitos das pessoas com deficiência, que começa bem antes, em meados do século XX.
As diretrizes para inclusão no ensino são formalizadas efetivamente a partir dos anos 1990, com a Declaração Mundial de Educação Para Todos, aprovada em Jomtien, na Tailândia. E, no Brasil, oficialmente colocadas em prática apenas em 2008 com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva. A medida determina que todos os alunos com deficiência, em qualquer condição, devem ser matriculados nas classes regulares das escolas, assim como os demais estudantes. No país, 12,5 milhões declararam possuir deficiência – o que equivale a 6,7% da população total -, segundo o Censo de 2010.
O caminho que tenta não deixar ninguém para trás chega ao ensino superior em 2016, com o decreto 13.409, o qual determina a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas universidades e cursos técnicos de nível médio. A inclusão desse grupo amplia, então, o sistema de cotas implantado por essas instituições a partir da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012.
“A inclusão pensa uma dimensão mais universal, em uma educação para todos. E aí, devemos refletir as discussões sobre as ações afirmativas quando perguntamos: quem são esses todos?” questiona a professora da Faculdade de Educação (Faced) da UFJF, Mylene Santiago, que, em 2018, integrou a equipe de criação do Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) junto à atual coordenadora geral de Processos Seletivos da UFJF, Katiuscia Antunes.
Ela destaca os grupos considerados excluídos e que devem ser atendidos pelo plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem: pobres; meninos e meninas de rua ou trabalhadores; populações das periferias urbanas e zonas rurais; nômades e trabalhadores migrantes; povos indígenas; minorias étnicas, raciais e linguísticas; refugiados; deslocados pela guerra; povos submetidos a um regime de ocupação; pessoas com deficiência e população LGBTQIA+. Para a professora, as cotas no ensino superior vem justamente “tentando superar, driblar a realidade que se apresenta extremamente desigual” para esses grupos.
Percentual de cotistas com deficiência é pequeno
Realidade como a da estudante Ana Paula de Souza Domingues, de 20 anos, que cursa o primeiro período da Faculdade de Medicina (Famed) da UFJF. Com paralisia cerebral, ela fez os ensinos fundamental e médio em escola pública. A família é da pequena cidade mineira Visconde do Rio Branco. Ana Paula entrou na Universidade através do grupo de cotas destinado a pessoas negras, com deficiência e estudantes de escolas públicas. “As cotas têm papel fundamental para nós. Não se trata de sermos incapacitados. O que acontece é que, na maioria das vezes, não temos as condições de ensino que outros alunos têm. Minha vida escolar, por exemplo, sempre foi muito complicada devido às questões de acessibilidade”, explica a estudante, que faz uso de cadeira de rodas para se locomover.
Ana Paula é uma dos 39 candidatos com deficiência que ingressaram na UFJF no ano de 2022, representando 1,7% do total de estudantes admitidos nos processos seletivos de ingresso da UFJF. O percentual vem se mantendo praticamente estável desde o segundo semestre de 2017, quando entraram os primeiros alunos com deficiência via sistema de cotas. Na instituição, as vagas são divididas em quatro grupos, que além da deficiência, englobam os critérios de raça e renda.
A maioria das vagas disponibilizadas para esses quatro grupos não são preenchidas pelos processos seletivos de ingresso (Pism e Sisu), o que revela a necessidade de avanço na democratização do acesso ao ensino superior, no caso das pessoas com deficiência. E, para além do ingresso, ainda é preciso garantir a permanência e a formatura desses alunos, promovendo inclusão e também equidade, palavras destacadas pela professora Mylene Santiago.
“Inclusão é o processo que ajuda a superar barreiras que limitam a presença, participação e conquistas dos estudantes. Ela prevê o rompimento de barreiras que impedem os estudantes de avançar. Por isso, criamos estratégias para auxiliar na permanência desses alunos. Já equidade é garantir que exista uma preocupação com justiça e processos justos, de modo que a educação de todos os estudantes seja considerada como de igual importância, com ações como, por exemplo, a promoção de acessibilidade para cadeirantes e a presença de intérpretes de libras para as pessoas surdas”, explica.
O caminho trilhado pela UFJF para garantir essas condições é marcado por desafios constantes, exigindo da instituição adaptações estruturais, aquisição de materiais e equipamentos, ampliação do quadro de servidores, além da manutenção de projetos e bolsistas. Nesse sentido, o Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI) desenvolve papel importante no acolhimento aos alunos cotistas. A atual coordenadora, Nádia Faria, reforça que, inclusive, é primordial que os estudantes com deficiência procurem o espaço – já que nem todas as pessoas com deficiências utilizam as cotas no ingresso.
“O nosso primeiro desafio é vincular esses discentes ao NAI para que, depois, possamos executar o nosso trabalho de identificação das necessidades do estudante. Fazemos um trabalho personalizado, levando em consideração ainda os cursos de cada um, para identificar possíveis barreiras. Não basta ter a política de ingresso das cotas. É preciso garantir a permanência dos alunos com deficiência.”
Entre os avanços, cita Nádia, está a efetivação de 13 intérpretes de libras. “Essa foi uma conquista, principalmente depois da implantação do curso de Letras-Libras. Hoje, ainda seguimos lutando para aumentar a quantidade de intérpretes, porque isso é fundamental para garantir a acessibilidade dos alunos surdos.” Na parte estrutural, destaca a construção de novas rampas de acesso, fruto da parceria entre o NAI, a Pró-Reitoria de Infraestrutura e Gestão (Proinfra) e a Reitoria, como as recentemente feitas nas Faculdades de Direito e de Administração e Ciências Econômicas, e a reforma das passarelas de travessia no anel viário. “Precisamos urgentemente discutir sobre a acessibilidade arquitetônica na Universidade, para que essas medidas sejam permanentes e efetivas”, acredita Nádia.
Para ela, ações como essa interferem diretamente na rotina de alunas como Ana Paula, que enxerga ainda tímida a presença de pessoas negras e com deficiência no ambiente universitário. “Mas é gratificante ver que, através da política de cotas, estamos conquistando um espaço que é de todos nós, independente da cor ou classe social”, destaca a estudante de Medicina.
Confira as matérias já publicadas na série especial 10 Anos da Lei de Cotas.