Monitoramento do acondicionamento técnico e embalagem da obra por empresa especializada em acervos musealizados (Foto: Divulgação)

Parte integrante da biblioteca do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o livro “Janela do caos”, escrito pelo poeta juiz-forano Murilo Mendes, em 1949, verdadeira raridade bibliográfica internacional, é um dos destaques da exposição “Era uma vez o Moderno: uma breve história do Modernismo brasileiro. 1910-1940”, que acontece até maio na Galeria de Arte do Sesi, na capital paulista. Trata-se de uma edição especial com tiragem reduzida a 220 exemplares numerados, e é uma parceria entre o autor e o pintor francês Francis Picabia, que ilustra a obra.

O livro é um empréstimo do Mamm ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP0 e Centro Cultural Fiesp, que se soma a documentos, obras de arte e recursos tecnológicos avançados para apresentar a trajetória do modernismo no Brasil, justamente no momento do centenário de realização da Semana de Arte Moderna de 1922. A exposição, que aborda três décadas de realizações criativas, enfoca o ideal de rupturas e subversões da linguagem cultural do passado a partir de três núcleos interrelacionados: artes plásticas, literatura e pensamento social. 

O pesquisador e restaurador Aloísio Castro, à frente do Laboratório de Conservação e Restauração de Papel do Mamm, assinala que a concepção de “Janela do caos” se localiza entre 1948 e 1949, a partir de correspondências entre o poeta e Roberto Assumpção, diplomata brasileiro estabelecido na embaixada francesa, e o responsável pela edição. As conversas entre ambos estão registradas em “Cartas de Murilo Mendes a Roberto Assumpção”, livro que tem organização de Júlio Castañon Guimarães.

“O que se sabe é que nas correspondências enviadas pelo poeta ao amigo, a proposta de editar um livro ilustrado por Francis Picabia partiu do diplomata no mesmo espaço de tempo em que o escritor juiz-forano pensava em lançar uma antologia de seus poemas no Brasil.” Para compor o volume foram selecionados os textos “As lavadeiras”; “Janela do caos”; “Poema dialético”; “Choques” do livro “Poesia liberdade”;  “Poema barroco” e “Tobias e o anjo” de “Mundo enigma”, representando uma síntese do espírito poético muriliano, no qual um certo surrealismo convida à reflexão sobre temas como ordem e loucura.

A edição de Roberto Assumpção harmoniza o diálogo entre a escrita e a imagem, ressaltando, também, o cuidado com a diagramação à cargo do artista francês Michel Tapié, que, no ano de publicação do livro, 1949, havia sido curador da exposição “Cinquante ains de plaisir” de Picabia, que, embora ainda não conhecesse a obra de Murilo Mendes, conseguiu traduzir magistralmente o pensamento do poeta. Em carta a Assumpção, Murilo Mendes elogiou e agradeceu a Picabia pela dedicação, materializando muitas de suas aspirações. 

Tesouros culturais

“O pedido de empréstimo formulado pelos curadores do IEB/USP exemplifica a importância e a raridade do exemplar pertencente ao expressivo acervo bibliográfico do Mamm. A obra’“Janela do Cao’” revela, de modo muito peculiar, a ideia do livro como um artefato histórico-cultural, aliando-se ao conteúdo intelectual de que ele é portador. Sob a perspectiva da Bibliografia Material, disciplina que pode ser entendida como a ciência do livro impresso, vislumbramos múltiplas possibilidades de estudo da materialidade, da anatomia e da arqueologia desse livro-objeto”, analisa Castro. 

Ilustração com litografia do artista Francis Picabia (Foto: Divulgação)

Em formato 25 cm × 32 cm, “Janela do caos” apresenta edição única, com 197 exemplares numerados e 23 fora de comércio. A obra, apresentada de forma inédita na Galerie René Drouin, place Vendôme, na Paris de 1949, foi enaltecido pela crítica. Na impressão, foi utilizado o papier d´Auvergne, com destaque para a fabricação artesanal no pioneiro Moinho Richard de Bas, em Ambert, França, atual sede do Museu Histórico do Papel.

As peculiaridades do Auvergne dão conta de bordas irregulares e textura suave e porosa, assegurada por fibras de papel aparentes. O observador atento pode constatar marcas d’água no rodapé de cada uma das 40 páginas do livro, com a inscrição “Auvergne a la Main” (Auvergne feito à mão) e o brasão do Richard de Bas, com um coração e uma cruz ao meio, sob registro da data de criação do Moinho em 1326.

Em sintonia com o número de poesias, o livro dispõe de seis gravuras em litografia preparadas na cor preta por Picabia para acompanhar os poemas. Finalizando o volume, existe uma suíte com as ilustrações do artista francês, que podem ser vistas na cor vermelha, evidenciando o trabalho harmônico da obra entre textos e imagens. 

Trâmites museológicos

“Nosso livro ‘Janela do Caos’, bem como a obra ‘Poesia em Pânico’ do poeta Murilo Mendes, ocupam lugar privilegiado no contexto curatorial que aborda o Modernismo brasileiro, estando ao lado de desenhos de Pedro Nava (inspirados na estética de Tarsila do Amaral), dialogando também com obras de outros importantes nomes modernos, como Ismael Nery e Cícero Dias”, destaca o restaurador e pesquisador do Mamm. 

Ele ressalta os bastidores desse empréstimo solicitado pelo IEB/USP como em consonância com a tríade conceitual museológica: preservação, pesquisa e divulgação, bem como em relação à missão institucional de divulgação da vida e da obra do poeta Murilo Mendes. “No entanto, vale destacar os esforços empreendidos, ao longo de 2021, no que se refere à tramitação dos protocolos dos trâmites, de acordo com as formalidades institucionais museológicas e legais.” 

“Em resposta positiva à carta de solicitação de empréstimo formulada pelo IEB/USP, iniciou-se a elaboração do Termo de Comodato, acordando-se entre as partes, as formalidades e cláusulas técnicas de empréstimo. Com a efetivação da apólice de Seguro, modalidade all risks – prego a prego, deu-se continuidade aos trabalhos de contratação de transportadora especializada em obras de arte e bens musealizados, feitura de embalagem especial e elaboração de laudos do estado de conservação da obra.” 

Castro relata que “em seguida, um Conservador-Restaurador de Bens Culturais foi contratado para averiguação dos pareceres técnicos, antes do despacho da obra para São Paulo. Posteriormente, um técnico do Mamm trabalhou como ‘courrier’, acompanhando a abertura das caixas e nova confrontação dos laudos com a Conservadora-Restauradora contratada pela organização da mostra em São Paulo. Tais procedimentos técnicos, muitas vezes desconhecidos do público em geral, são fundamentais para a conservação preventiva e salvaguarda da obra musealizada.”  

A exposição

“Era uma vez o Moderno: uma breve história do Modernismo brasileiro. 1910-1940” tem curadoria de Luiz A. Bagolin e Fabrício Reiner, estando em cartaz no período entre 10 de dezembro e 29 de maio de 2022, com visitações programadas de quartas-feira a domingo, das 11h às 20h, no Sesi da Avenida Paulista 1.313 (em frente ao Metrô Trianon-Masp). À disposição do público, áudios acessíveis por Qrcode trazem comentários e análises da curadoria, assim como informações históricas e reproduções em formato digital dos documentos e cartas presentes na exposição. 

Trata-se de uma parceria entre o Centro Cultural Fiesp (CCF) e o IEB/USP, onde está um dos maiores acervos sobre o modernismo no Brasil. Contando com mais de 300 obras e documentos, pretende revisitar três décadas da história do Modernismo no Brasil, levando ao público as produções dos autores e pensadores que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922.

Mário de Andrade; Oswald de Andrade; Tarsila do Amaral; Anita Malfatti; Manuel Bandeira; Cícero Dias; Di Cavalcanti; Osvaldo Goeldi; Ismael Néry; Guilherme de Almeida; Gilberto Freire; entre muitos outros, impregnam a mostra com suas reflexões centenárias. A exposição pretende mostrar a dimensão humana das mulheres e dos homens que discutiram a possibilidade de se fazer uma arte moderna no Brasil, assim como a diversidade de manifestações e direções do que se convencionou chamar de Modernismo Brasileiro.

A exposição vem sendo considerada a maior sobre o Modernismo Brasileiro já realizada e traz curiosidades como o diário de Anita Malfatti, de 1914, no qual a artista, aos 24 anos, registra os preparativos para a sua primeira exposição individual. A fim de trazer esse universo intimista para mais perto do público, podem ser acessados vídeos com atores que interpretam grandes nomes do movimento modernista. Há também personagens virtuais,  todos relacionados à Semana de Arte Moderna de 1922.