No Dia Nacional do Teatro, pesquisadores abordam os desafios e a resiliência da arte (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

Em celebração ao Dia Nacional do Teatro, comemorado neste domingo, 19 de setembro, o portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) convida os pesquisadores José Luiz Ribeiro e Márcia Falabella para traçar uma perspectiva histórica do teatro ao longo de diferentes cenários de crises – sejam impostas por guerras, regimes autoritários ou condições epidemiológicas. Indo além da pandemia de coronavírus, os professores discutem como o teatro, além de arte experiente em sobrevivência, é reflexo da comunicação, da história e da educação de um povo.

Em um dos atos de Rei Lear (à esquerda), uma personagem faz menção a beijar as mãos do soberano, que responde: “Vou limpá-las primeiro; cheiram a mortalidade”. Especialistas leem o trecho como uma das influências da peste bubônica na obra do Bardo (Pintura: Bensell)

Da peste à política
Em busca de situações semelhantes ao isolamento imposto pela pandemia de Covid-19, jornalistas repercutiram, ao longo de 2020, a informação de que Shakespeare teria escrito uma de suas peças mais famosas, Rei Lear, durante um período de distanciamento social causado pela peste bubônica – o que implicou, inclusive, no fechamento do Globe, teatro britânico que abrigava as produções do dramaturgo, por 78 meses. Em um artigo publicado no jornal The Guardian, o jornalista e especialista em Shakespeare, Andrew Dickson, afirma que, ao comparar os registros da época, constatou que a possibilidade dessa estimativa ser verídica é alta – e, mais ainda, é correto afirmar que, independentemente disso, a peste foi uma constante na vida de Shakespeare e de toda a população de Londres na época; o próprio dramaturgo nasceu poucos meses depois de um surto que causou a morte de um quarto da população em sua cidade natal.

Os bastidores históricos da escrita de Rei Lear – bem como a própria carreira prolífera de Shakespeare, salpicada por referências ao período conturbado da época – é, como apontam especialistas, uma das amostras da resiliência do teatro ao longo da história. “O teatro está sempre um passo adiante: quando a sociedade está doente, ele adoece antes. A arte, a sensibilidade, são nitidamente afetadas em momentos como esse porque, quando sofremos males físicos, primeiramente, cuidamos dos problemas do corpo; só depois nos preocupamos com os problemas do espírito”, contextualiza o dramaturgo, pesquisador e fundador do Grupo Divulgação (GD), José Luiz Ribeiro. 

O “espírito”, na fala de Ribeiro, representa o aspecto humano que é tocado e nutrido pelas emoções que emanam da arte. O pesquisador elucida que o teatro, além de alimento para cada indivíduo, é parte do anseio humano de se comunicar. Além do reconhecimento da importância individual dessa arte, ela também teve sua relevância reconhecida por instituições, regimes e religiões – e, com isso, o teatro foi temido, instrumentalizado, censurado e admirado. 

Penso que o momento que vivemos é revolucionário; doloroso, mas revolucionário” (Márcia Falabella)

“Um dos exemplos é a Igreja Católica que, inicialmente, perseguiu o teatro pois era considerado pagão. No entanto, tempos depois, ele foi incorporado à Igreja, ainda durante a Idade Média, porque demonstrou ser um importante instrumento de comunicação para transmitir a ideologia da religião para a população na época, em sua maioria analfabeta”, afirma a atriz, pesquisadora e professora da Faculdade de Comunicação da UFJF, Márcia Falabella. “Afinal de contas”, completa, “o povo não falava latim”.

Justamente por ser uma “representação do ser humano e, consequentemente, da própria humanidade”, como define Ribeiro, o teatro também possui uma carga política inerente. Para o pesquisador, mesmo a ausência do teatro carrega um significado político; inclusive em governos que atacam a arte, a teatralidade é instrumentalizada para que figuras políticas ocupem o imaginário popular. “Parte desse teatro político é encenado através da utilização de signos semióticos – como, por exemplo, a apropriação da figura de ‘mito’. Atualmente, o jornalismo não está dando conta de desconstruir essas representações com a rapidez necessária, e os ataques ao conhecimento e ao ensino garantem que a população siga acreditando nessa máscara.”

Lado a lado, Márcia Falabella e José Luiz Ribeiro (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

“O teatro reflete cada momento, cada época e suas respectivas relações sociais. Portanto, mesmo quando está hibernando, como é o caso durante a pandemia de Covid-19, o teatro sempre persiste. E, por ser reflexo de seu tempo, é sempre político por natureza.” A própria criação do Grupo Divulgação (GD) ilustra a fala do pesquisador: o núcleo de ensino, pesquisa e extensão em artes cênicas foi fundado em 1966 por membros da antiga Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile) da UFJF, encabeçados pelo próprio Ribeiro, em meio ao contexto de repressão da ditadura militar brasileira. No ano em que completa 55 anos, o Divulgação persiste durante a pandemia apoiando-se, principalmente, em dos componentes da tríade presente desde a sua concepção: o ensino.

Há teatro na pandemia?
Com a impossibilidade de realizar encontros presenciais, o Grupo Divulgação migrou – e criou – atividades para o meio virtual. Ao longo de meses, Ribeiro, coordenador do Centro de Estudos Teatrais (CET) do GD, sediou mais de 200 lives em seu perfil no Instagram, recebendo convidados para conversas transmitidas ao vivo para os seguidores. “As lives foram importantes no sentido de congregar pessoas que passaram pela mesma ruptura brusca de atividades durante a pandemia. Essas transmissões também representam uma produção de memória importante, porque, ao registrá-las, também resgatamos depoimentos e convidados que discorrem sobre o grupo, o teatro e os seus elementos”, define Márcia Falabella, integrante do Divulgação desde 1986.

Recentemente, o grupo retomou, de forma remota, parte das atividades. “São encontros semanais com os núcleos da Terceira Idade e de Introdução ao Teatro. Este último, agora, conta com participantes de várias regiões do Brasil. Também temos uma espécie de palco virtual: são experiências dramatúrgicas em redes sociais. Essas, por sua vez, são chamadas assim porque não podemos classificá-las como teatro, sendo que ele é caracterizado pela presença”, continua a pesquisadora. 

“Teatro é o verbo feito carne na presença de testemunhas” (José Luiz Ribeiro)

“Claro, essas atividades têm pontos positivos e abrem caminhos interessantes. Precisamos, inclusive, enaltecer que faz uso dos recursos disponibilizados por aplicativos e redes sociais”, acrescenta Márcia, citando iniciativas capitaneadas por outros grupos culturais de Juiz de Fora, o Sala de Giz e o O andar de baixo. “Penso que o momento que vivemos é revolucionário; doloroso, mas revolucionário. As redes sociais tomaram uma nova dimensão;  o que antes era uma espécie de vitrine agora é constituído por uma nova força. As tecnologias, constantes aliadas da arte, também avançam rapidamente.”

Ribeiro concorda, explicando que as experiências on-line, embora importantes, estão mais próximas do cinema. O teatro é o tema dessas transmissões, mas elas não chegam a constituir uma representação teatral. “Teatro é o verbo feito carne na presença de testemunhas. Esse verbo é a palavra de ordem, a palavra de ação. O teatro é o ato feito na presença de um público; essa é a sua essência.”

Márcia Falabella e José Luiz Ribeiro em cena (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

Para Márcia Falabella, é possível que, uma vez que seja seguro voltar a apresentar espetáculos presenciais, o teatro passe por um cenário semelhante ao vivido após a Segunda Guerra Mundial. A pesquisadora referencia o trabalho do ator e diretor francês Jean Vilar, fundador do Théatre National Populaire, dono de um papel importante na formação e modernização de valores teatrais. “Uma das ações popularizadas pelo Vilar no pós-guerra foi montar espetáculos – tanto clássicos quanto contemporâneos à época – e marcá-los em horários mais acessíveis para trabalhadores, de forma que eles pudessem sair de seus trabalhos, ver uma peça e, então, voltar para a casa.”

A acessibilidade (englobando desde o preço do ingresso até a estruturação adequada para garantir que os espaços sejam aptos para receber pessoas com dificuldade de locomoção motora, por exemplo), junto ao enfrentamento da desvalorização da cultura e aos cortes de verbas destinadas à arte, são desafios citados por ambos os pesquisadores. Márcia, ao concluir, pondera: “o teatro vai acabar? Claro que não. Enquanto existir uma criança que brinca, existirá teatro. A pergunta em aberto é ‘como resgataremos tudo isso após esse período conturbado?’. É uma questão muito complexa, mas penso assim: se conseguirmos fazer espetáculos que evoquem a humanidade nas pessoas, aí estabeleceremos, com sucesso, um canal de comunicação. Teatro é uma celebração de afeto. Fácil não será, mas trabalharemos com essa esperança.”