“A democracia nunca é um conceito fechado. Sendo algo em permanente transformação, ela é um resultado das disputas políticas colocadas em uma sociedade”, Fernando Perlatto. 

O Dia Internacional da Democracia, comemorado neste 15 de setembro, foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007, com o intuito marcar a importância da Declaração Universal da Democracia, assinada em 1997 por 128 estados-membros da organização. No Brasil, é sempre importante relembrar que a democracia é uma conquista muito recente, tendo em vista que o fim da ditadura militar somente ocorreu no final da década de 1980. Entretanto, os efeitos das rupturas institucionais anteriores repercutem até os dias atuais.

Diante dos recentes episódios de manifestações antidemocráticas no país, Odilon Caldeira, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPgHistória/UFJF), comenta que a atual crise na democracia é, principalmente, uma crise global. “Existe uma larga literatura que discute quais são as causas e os efeitos desta crise, mas em algumas localidades elas se expressam com maior intensidade. No caso brasileiro, o interessante é que essa crise da democracia se coaduna com uma crise política em desenvolvimento nos últimos anos. E essas questões tornam-se nítidas no momento em que a eleição de Jair Bolsonaro traz elementos antidemocráticos bastante visíveis, como a crítica e o ataque sistemático às minorias, à liberdade de imprensa, às universidades e aos partidos políticos opositores”, avalia.

O também pesquisador do PPgHistória, Fernando Perlatto, relembra que o Brasil sempre teve sua história marcada pelo autoritarismo. “As pessoas se esquecem que também tivemos uma ditadura anterior ao período de 1964 a 1985. Se somarmos com o tempo da ditadura do Estado Novo, que ocorreu de 1937 a 1945, podemos dizer que o país viveu três décadas de regimes abertamente autoritários e ditatoriais. E mesmo na curta experiência democrática, entre os anos de 1946 a 1964, nós tínhamos partidos como o PCB na ilegalidade. Desta forma, é importante destacar que ainda existem legados desses autoritarismos nas atuais instituições, para assim compreender as particularidades do país “, comenta o professor. 

“Características antidemocráticas estão escancaradas nos ataques às instituições democráticas feitos pelo presidente e seus apoiadores”, Caldeira 

Caldeira explica que se as características antidemocráticas poderiam ser caracterizadas como latentes em um momento anterior, atualmente elas estão escancaradas de maneira sistemática nos ataques às instituições democráticas, seja por parte de apoiadores do presidente ou dele próprio. “É importante lembrar que a democracia não existe apenas nas instituições, ela existe em torno de uma cultura democrática. Desta forma, os ataques na gestação do bolsonarismo e na execução dessa escalada antidemocrática são elementos perigosos ao sistema democrático”.

“A democracia nunca é um conceito fechado, sendo algo em permanente transformação. Ela é um resultado das disputas políticas colocadas em uma sociedade. Nesse processo de construção, foi possível chegar a alguns consensos que se tornam permanentes de certa forma, como por exemplo, a questão da separação dos poderes, da existência de partidos políticos, etc”, avalia Perlatto. Desta forma, uma democracia efetiva não pressupõe somente esses ideais, mas também necessita da participação plena da sociedade e dos setores consequentemente já excluídos desse processo.

Deficiências do processo de transição democrática 

Caldeira, coordenador do Observatório da Extrema Direita, avalia que diante do processo de transição democrática estabelecido nas décadas de 1970 e 1980, existem diversos problemas que não foram resolvidos ou debatidos na época. “Ao analisar a questão das propostas antidemocráticas e neofascistas, a discussão deve levar em consideração a forma como não se discutiu efetivamente na sociedade brasileira os legados e as persistências autoritárias, mesmo no momento da criação e da consolidação da Nova República.  Então essas questões “esquecidas” retornaram com força num momento de crise política de maior intensidade. E a partir do momento que essas posturas estão além de um nicho mais particular do neofascismo e são incorporadas pelo léxico da hegemonia do governo federal, vemos que a dimensão antidemocrática não é apenas um discurso de grupos mais radicais que não tem poder político efetivo e sem proeminência política”.

Da mesma maneira, Perlatto aponta a questão da Lei da Anistia, de 1979, como uma das falhas do processo de transição democrática no país. “Essa lei tem sua importância, não só porque ela destaca que não serão punidos aqueles que cometeram crimes durante a ditadura, mas devido ao pressuposto de um discurso muito claro de que devemos esquecer o passado e olhar somente para o futuro. E essa concepção, que claramente evita resolver os problemas no passado, torna-se assim uma questão muito importante, porque fomos seguindo no processo de transição democrática sem resolver, efetivamente, uma série de questões em aberto”. 

“Até alguns anos atrás, tínhamos a crença de que a democracia brasileira estava avançando – e, de fato, ela estava – mas que esse processo seria somente para frente. E eu acho hoje que com esse choque que estamos vivendo, não só do ponto de vista do governo, mas ao percebermos que vários setores da sociedade defendem abertamente pautas autoritárias, o desafio que nós temos é construir uma cultura política democrática. Ou seja, uma cultura que valorize sobretudo uma agenda de direitos humanos, o respeito aos direitos básicos sociais, políticos e civis. O principal desafio para a democracia também passa pela formação nas escolas e por debates mais amplos”, comenta Perlatto.