Pesquisadora das políticas de saúde, Girlene acredita que mesmo com o subfinanciamento, o SUS tem conseguido acolher a população (foto: Gustavo Tempone/UFJF)

Ocupar a vice-reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) já poderia ser desafiador o bastante para a professora da Faculdade de Enfermagem, Girlene Alves da Silva. Primeira mulher a estar nesse posto na instituição, ela viu suas funções serem multiplicadas no segundo mandato com a pandemia de Covid-19. Como presidente do Comitê de Monitoramento e Orientação de Condutas sobre o Novo Coronavírus, desempenha no grupo papel fundamental para embasar as decisões acerca do funcionamento das atividades na UFJF. 

Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), com passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris e pós-doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Girlene é uma grande defensora do Sistema Único de Saúde (SUS), com pesquisas sobre políticas de saúde, em especial as voltadas para o cuidado de doenças infecciosas como o HIV/Aids. Ao final dessa entrevista, pediu para que reforçássemos o papel do SUS na crise sanitária. “A pandemia nos mostrou que todos, de alguma forma, acessam as questões de saúde por meio dele. É um sistema que estava invisível para cerca de 30% da população.”

Na entrevista, a vice-reitora também falou sobre como equilibrar sua formação na área da saúde com o cargo de gestão, do papel desempenhado pela UFJF no enfrentamento da pandemia em Juiz de Fora de Governador Valadares e sobre o legado científico deixado pela doença, com incríveis avanços no tempo da ciência. Ao chegar a marca de 500 mil mortes no país, a professora lamenta a insuficiência de vacinas para todos. 

Portal UFJF: Em um momento em que o Brasil lamenta pelas 500 mil vidas perdidas, como a senhora vê o percurso da pandemia e das políticas públicas de saúde traçadas até aqui no combate à Covid?

Girlene Alves da Silva: A pandemia pegou de surpresa as políticas públicas que não estavam estruturadas para combatê-la. É importante dizer que, mesmo tendo um Sistema Único de Saúde (SUS),  com todas seus ordenamentos, o quadro epidemiológico, de alguma forma, mostrou uma política que, talvez, não tenha tido o cuidado por parte de alguns gestores, em âmbitos municipal, estadual e nacional, em efetivar o SUS como possibilidade concreta de responder as necessidades de saúde da nossa população. Apesar disso, o Sistema Único tem sido capaz de aglutinar esforços de oferecer para o enfrentamento ao vírus. Nós começamos a pandemia com um ordenamento muito frágil do ponto de vista da liderança do Governo Federal, como por exemplo,  poucos recursos, negação da gravidade da doença,  fatores que dificultaram que avançássemos de forma mais organizada ao combate da Covid-19.

Na medida que fomos conhecendo mais sobre a doença, principalmente a sua repercussão na vida das pessoas, é notável a existência de um esforço da sociedade, dos municípios e dos estados, de certo modo,  na contramão das orientações do Governo Federal que em vários momentos da pandemia dificultou a nossa ação enquanto nação. Nesse sentido, a população e as universidades públicas brasileiras continuam tendo um papel muito importante na implementação de políticas mais efetivas. 

E como foi a resposta do Sistema Único de Saúde?

Todo brasileiro deveria saber da importância de defender o SUS. A pandemia nos mostrou que todos, de alguma forma, acessam as questões de saúde por meio dele. É um sistema que estava invisível para cerca de 30% da população. Destaco que mais de 70% dos brasileiros só têm acesso à saúde por meio do Sistema Único de Saúde.

O Sistema Único de Saúde precisa de cada um de nós e não podemos mais ter dúvida da responsabilidade do Estado com a saúde da nossa população

Graças ao SUS, apesar de todas as críticas e  do subfinanciamento, tem sido capaz de acolher a população em um momento desse de pandemia. Foi esse sistema que, mesmo considerando as diferenças e assimetrias no pais, acolheu os brasileiros no sentido de diminuir o número de mortes. O Sistema Único de Saúde precisa de cada um de nós e não podemos mais ter dúvida da responsabilidade do Estado com a saúde da nossa população.

O Plano Nacional de Imunização (PNI) é uma ferramenta consolidada no país, porém nunca antes usada em um momento assim, tão excepcional de crise. Considerando esse cenário, é possível melhorar a gestão do PNI? De quais formas?

Desde sua criação, o PNI, talvez, nunca tenha vivido uma crise como esta. Apesar de ter sido responsabilizado pelas falhas, é importante destacar que o nosso Plano Nacional de Imunização possui todo um planejamento, mas para que possa ser implementado é preciso que receba os imunobiológicos e insumos e tenha autonomia para definir as ações. É um programa de reconhecimento mundial, e para o qual devemos reforçar a importância de sua  qualidade técnica e organizativa.

As dificuldades que temos hoje não passam  somente pelo programa de imunização, mas pela decisão do Governo federal em estabelecer a aquisição de todos os meios necessários para que a população brasileira tivesse acesso aos imunizantes em um prazo mais curto, ou seja, o governo federal demorou para fazer acordos para a garantia das imunizações. Em relação à Covid-19, outro obstáculo, além da necessidade do recebimento dos imunizantes, é uma logística distinta das que eram realizadas costumeiramente.

A UFJF é uma importante parceira do município e do estado nas ações de combate à Covid-19. Você poderia avaliar como essas atividades impactam nas regiões em que os campi de Juiz de Fora e Governador Valadares estão inseridos?

Desde o surgimento da doença no Brasil, a UFJF se mobilizou e se colocou à disposição dos gestores locais para que fosse possível fazer parcerias.

Desde o surgimento da doença no Brasil, a UFJF se mobilizou e se colocou à disposição dos gestores locais para que fosse possível fazer parcerias. Por meio dessas cooperações, desenvolvemos a modelagem epidemiológica, para entender os dados e planejarmos ações de combate ao vírus. Também montamos laboratórios para respondermos, de forma mais rápida, às necessidades do município. Nesse sentido, tanto em Juiz de Fora quanto em Governador Valadares, a Universidade foi capaz de atender as cidades que está inserida, bem como aquelas que estão ao entorno. Atualmente, nosso termo de cooperação, envolve a nossa região, assim como, a nossa macro e microrregião e temos acordo com a regional de saúde.

Ainda há o nosso acordo com a Fundação Ezequiel Dias (Funed), à medida que nossos laboratórios foram credenciados, passamos a ter uma parceria de impacto no Estado e tem sido uma cooperação muito importante para o enfrentamento da pandemia. Também temos as ações de imunização, inicialmente tivemos uma participação importante na coleta de material para exames, laboratórios que produziram produtos e insumos, tivemos ação comprometida viabilizando cadastros para que o acesso ai auxilio emergencial fosse realidade para algumas pessoas e o próprio esforço da Universidade em colocar os estagiários da área de saúde em prática, é uma forma de dar suporte ao serviço de saúde, que precisa dar respostas ao quadro epidemiológico. Os estudos sobre modelagem epidemiológica, ferramenta importante para tomada de decisão dos gestores. 

Também destaco o papel estratégico do Hospital Universitário (HU), que se reinventou durante a pandemia.

Também destaco o papel estratégico do Hospital Universitário (HU), que se reinventou durante a pandemia. Iniciou os trabalhos sem nenhum leito destinado aos pacientes de Covid-19 e foi ampliando, não apenas os de enfermaria, mas os de Centro de Terapia Intensiva (CTI). O HU reafirma seu papel  de importância para o município e região. 

Como profissional de saúde e, ao mesmo tempo, ocupando um  cargo de gestão na Universidade, quais foram os principais desafios impostos durante o último ano? Gostaria que comentasse sobre esse equilíbrio entre a formação técnica e o lado político do seu cargo. 

Girlene vê sua formação como um facilitador para atuação na crise,  mas credita os esforços ao coletivo de atores da Universidade que tem se mobilizado no enfrentamento da doença desde seu surgimento (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

É sempre muito desafiador dar respostas às necessidades de uma sociedade, no momento em que se conhece muito pouco sobre o que está acontecendo. Nesse sentido, se por um lado havia uma dificuldade em compreender de qual doença estávamos lidando, por outro foi fácil reunir as pessoas e pensarmos, no conjunto da instituição, formas de enfrentarmos a situação.

Do ponto de vista técnico, a minha afinidade com a temática é um facilitador, mas o enfrentamento da crise funciona de forma mais tranquila quando aglutinamos os atores dentro da instituição. Temos diversas Unidades Acadêmicas, professores, servidores e alunos que se envolveram desde o primeiro momento e trabalham junto conosco até hoje. Dessa forma, quanto mais rápido conseguimos dar respostas, mais temos a perspectiva de uma segurança de um retorno da normalidade.

Conciliar minha capacidade técnica, pois sou da área da saúde, com a de gestora só não foi tão difícil porque não estive sozinha. Desde o primeiro momento, temos um Comitê de Monitoramento que tem orientado a gestão a tomar as melhores decisões e muitos trabalhadores ( professores e técnicos) e estudantes mobilizados . Diria que a comunidade acadêmica tem buscado as soluções.

O Comitê de Monitoramento e Orientação de Condutas sobre o Novo Coronavírus tem papel fundamental nas decisões da Universidade, o que, de certa forma, reflete nas medidas adotadas por outras autoridades municipais. Foi necessário conter a pressão pela aprovação ou não de atividades? Cito, por exemplo, o Pism como decisão de grande impacto. 

A UFJF tratou com muita transparência a situação da pandemia. O Conselho Superior (Consu) sempre tomou decisões balizadas em critérios epidemiológicos, dentro das perspectivas vividas em Juiz de Fora e Governador Valadares. O Comitê não sofre pressões. O seu papel de orientar é o objetivo principal. Ele recebe pedidos de orientações, que dentro daquele momento histórico, são feitos e  sempre acatadas. .

O Consu tem tomado suas decisões baseadas nessas orientações. Já para aquelas ações que não requerem a deliberação do Conselho, a Administração Superior tem encaminhado, considerando que o grupo é composto por especialistas e que os aconselhamentos são sempre no sentido de preservar e proteger a vida. Outro exemplo são os protocolos de biossegurança elaborados de acordo com o que vem acontecendo no Brasil e no mundo, e que têm nos possibilitado algum retorno de trabalho presencial na instituição.

A vacinação tende a avançar nos próximos meses, ainda que de forma bem mais lenta do que o desejado. Como a UFJF está se preparando para um possível retorno presencial? 

Nós gostaríamos de ver mais pessoas imunizadas no Brasil, mas nós não temos vacinas para todos. Nossa expectativa, na medida do avanço da campanha de vacinação, é retornar às atividades presenciais. Importante destacar que a UFJF, desde quando ainda não havia vacinas, já pautava esse regresso, entretanto, dentro de um processo criterioso dos protocolos de biossegurança.

Nós gostaríamos de ver mais pessoas imunizadas no Brasil, mas nós não temos vacinas para todos. Nossa expectativa, na medida do avanço da campanha de vacinação, é retornar às atividades presenciais

Dessa forma, na medida que a população vai sendo imunizada, e que vamos compreendendo as peculiaridades da pandemia, a Instituição vai se organizando para um retorno gradual e seguro, mas sempre atentos às questões relacionadas ao vírus.

Sem perder de vista a grande tragédia humana que vivenciamos, a pandemia deixa um enorme legado científico para pesquisadores de todas as áreas. Como a senhora vê a produção da ciência no mundo pós-Covid?

Se pensarmos no Brasil, foi o momento em que as universidades públicas deixaram claro para a sociedade o seu papel. O mundo todo produziu ciência e isso é espetacular. Nesse sentido, no pós-pandemia, teremos novos elementos para pensar às doenças infecciosas.

Os pesquisadores se reinventaram. Nessa crise vimos muita coisa ser produzida e colocada para uso de domínio público, o que tem sido muito importante.

Apesar de ser uma doença que tem exigido muito de quem faz ciência no Brasil e no mundo, as respostas foram muito rápidas. Se antes demorávamos quatro ou cinco anos para desenvolvermos uma vacina, neste caso, fomos obrigados a criar um imunizante em um tempo muito curto. Os pesquisadores se reinventaram. Nessa crise vimos muita coisa ser produzida e colocada para uso de domínio público, o que tem sido muito importante para o enfrentamento da situação. Desenvolver tecnologia e colocar serviço de quem não tem acesso, também tem sido uma marca dessa pandemia. 

No entanto, ainda precisamos melhorar a distribuição de vacina no mundo. Se não existir um olhar muito atento, há países e uma parte da população sem a menor possibilidade de receber os imunizantes, não porque vai demorar a chegar, mas por não haver condições de adquiri-los. Neste caso, não importa se apenas um país está imunizado, precisamos de vacinas para todos.

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