No mês em que é celebrado o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, o portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ouviu pesquisadores da instituição, sobre a importância dos trabalhos científicos que rompem com o racismo estrutural. 

As entrevistas resultaram em duas publicações. Esta é a segunda delas, e tem depoimentos dos professores Sônia Lages, do Departamento da Ciência da Religião; Willian Cruz, da Matemática; Francione Oliveira e Julvan Moreira de Oliveira, ambos da Faculdade de Educação (Faced). Julvan também é diretor de Ações Afirmativas da UFJF.

Confira aqui a primeira publicação: “Reafirmar a Diversidade na Ciência”

O Dia Internacional contra a Discriminação Racial é celebrado em 21 de março e foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em referência ao Massacre de Sharpeville, ocorrido em 1960, em  Joanesburgo, na África do Sul. Na ocasião, a polícia do apartheid vitimou quase duas centenas de pessoas que se manifestavam pacificamente contra o regime segregacionista.

Para a elaboração deste material, os pesquisadores da UFJF foram provocados com a seguinte questão: “Na sua avaliação, qual é a importância das pesquisas que rompem com o racismo estrutural e com o mito da democracia racial?”. 

Esta iniciativa é resultado de uma parceria entre as diretorias de Ações Afirmativas e de Imagem Institucional e reforça o compromisso da UFJF com o respeito à diversidade e com o combate às desigualdades.

Confira os depoimentos

Sônia Lages Departamento de Ciência da Religião

 

Sonia Lage: “O racismo no Brasil é estrutural e institucionalizado, e permeia todas as áreas da vida, inclusive a da educação” (Foto: Arquivo pessoal)

O racismo no Brasil é estrutural e institucionalizado, e permeia todas as áreas da vida, inclusive a da educação. O racismo faz parte da estrutura social brasileira, está enraizado em nossa sociedade, e se configura quando pessoas negras são excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas, e age numa perspectiva que privilegia as pessoas brancas, colocando em desvantagem as pessoas negras Isso se tornou possível devido ao “mito da democracia racial”, uma narrativa fantasiosa que diz que não há racismo no país, que somos todos iguais, que não há divisão de classes sociais e nem desprezo pelas identidades negras. Com referência à academia, o racismo institucional e estrutural sempre privilegiou o conhecimento eurocêntrico, concedendo superioridade e centralidade à visão europeia sobre as outras visões de mundo. A intenção da visão de mundo europeia é de universalizar o conhecimento a partir dela, considerando- o como único e portador da verdade. Boaventura de Sousa Santos, cunhou o termo epistemicídio para se referir à destruição dos conhecimentos, dos saberes e das tradições de povos que foram alvos da exploração colonial. O epistemicidio é a tentativa de apagamento e de invisibilização da cultura negra no Brasil. No caso da população negra, essa realidade se mostra como uma das facetas do racismo estrutural de nossa sociedade. Os sinais do racismo epistêmico aparecem não apenas nas limitações ao acesso de negras e negros nas universidades, mas também quando o conhecimento produzido por eles é desconsiderado. A importância das pesquisas que rompem com o racismo estrutural e com o mito da democracia racial atuam no sentido de denunciar e desvelar as diversas facetas da discriminação a que está submetida à população negra no Brasil em todos as esferas da vida. As pesquisas também podem desestruturar as concepções ideológicas de mestiçagem que predominam no Brasil e que tentam apagar a contribuição dos negros na história desse país. Uma ideologia que em nome de uma identidade nacional homogênea desconsiderou a história dessa população, sua ancestralidade, sua memória e sua contribuição à cultura brasileira. Mas o que é mais importante com referência às pesquisas realizadas sobre o racismo no Brasil é que elas sejam realizadas pelo próprio sujeito negro. Podemos afirmar, de forma geral, que as pessoas negras não fazem parte do quadro de docentes das universidades no Brasil. E de maneira geral, podemos afirmar, que é sempre uma pessoa branca que fala por elas. O ingresso de docentes negros, acredito eu, é o caminho para a desconstrução da discriminação racial social e cultural. São os pesquisadores (as) negros(as) que devem realizar as pesquisas que denunciam as mazelas que sofrem a população negra. São eles e elas que devem realizar as pesquisas que são de interesse do povo negro nas diferentes áreas de conhecimento, a partir de uma epistemologia negra e afro-centrada.

Julvan Moreira de Oliveira Faculdade de Educação

Julvan Oliveira: “As relações sociais são bastante complexas, sendo necessário compreender muito bem as principais vertentes dos estudos étnico-raciais, se quisermos superar as desigualdades existentes” (Foto: Arquivo UFJF)

As relações sociais são bastante complexas, sendo necessário compreender muito bem as principais vertentes dos estudos étnico-raciais, se quisermos superar as desigualdades existentes.

No caso brasileiro, pesquisadores apontam para a existência de quatro vertentes nos estudos étnico-raciais. A primeira vertente, reúne os que, na construção da nacionalidade brasileira, defenderam que a cultura brasileira deveria se constituir com os elementos da cultura ocidental, excluindo as culturas africanas e indígenas, por considerar essas últimas como inferiores.

O contraponto ao evolucionismo, surge no Brasil com a defesa de que somos uma mistura de “raças”, afirmando que a identidade nacional é mestiça, e que nesse país brancos, pretos e indígenas convivem harmoniosamente. Essa é a base do denominado “mito da democracia racial”. Esse “mito da democracia racial” tem sido um dos grandes entraves para a construção de políticas afirmativas voltadas especificamente para a população negra e indígena, com essa tese de que somos “um só povo”, de que “somos todos mestiços” e temos “a mesma cara”. Uma importante crítica a essa vertente é a tese de Kabengele Munanga, “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra”.

Há uma terceira vertente nos estudos étnico-raciais no Brasil que critica a “democracia racial”, afirmando que a nossa mestiçagem se constituiu nas relações de dominação, nas formas exploratórias, onde o senhor branco violentava as meninas e adolescentes escravizadas e o patrão “visitava” os aposentos das empregadas domésticas, surgindo daí grande parte dos mestiços brasileiros. No entanto, para estes pensadores, negros e indígenas são discriminados por serem pobres, ou seja, a questão étnico-racial está subordinada à questão econômico-social.

Eu compreendo que “raça”, não enquanto categoria biológica, mas social, é um elemento fundamental e determinante nas relações sociais brasileiras, para além da questão econômica. O processo de escravização que se deu, desumanizou os africanos, pois não foi somente uma exploração econômica, mas se deu a retirada da identidade étnica. Eu me posiciono nesta quarta vertente e penso que a minha contribuição é a de orientar as novas gerações, para que compreendam tais premissas e, a partir delas, possam iniciar a fazer ouvir nossas vozes na sociedade brasileira, vozes ainda hoje invisibilizadas e silenciadas.

Willian Cruz – Departamento de Matemática

Willian Cruz: “Só podemos entender a estrutura do racismo se compreendermos que ele é elemento constituinte da política, da economia, da educação, das práticas científicas, dentre outras” (Foto: Alexandre Dornelas/UFJF)

Sabemos que a naturalização de pensamentos e comportamentos sustenta o racismo estrutural. Sempre estamos nos deparando com atitudes e ações que, ao nosso ver, dão suporte  a este tipo de racismo, que muitas vezes aparecem em situações sutis no comportamento e na defesa da dita democracia racial, por exemplo. Pesquisas nos condicionam a identificar com mais clareza tais atitudes. Como entender, por exemplo, que o mito da democracia racial é um fenômeno que vai além das ideias de ordem  moral, apresentando um aspecto mais complexo de reorganização da dominação política, econômica e racial, como afirma Silvio Almeida? Pesquisas nesta direção são fundamentais para entendermos como o racismo se dá e também ajudam no direcionamento para o desenvolvimento de práticas antirracistas nas vertentes políticas, econômicas, educacionais dentre outras. Só podemos entender a estrutura do racismo se compreendermos que ele é elemento constituinte da política, da economia, da educação, das práticas científicas, dentre outras. E esta compreensão é possível por meio de estudos científicos, isto é, de pesquisas que visam essa discussão.

Francione Oliveira – Faculdade de Educação

Francione Oliveira: “A sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e racismo” (Foto: Arquivo UFJF)

Acho que as pesquisas científicas e as ciências sociais revelam que o racismo é sempre estrutural, ou seja, que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade.  Portanto,  como afirma Silvio Almeida, a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e racismo. Entretanto,  as pesquisas podem colaborar no rompimento do racismo estrutural desde que os conhecimentos, dados e explicações produzidos por elas ajudem não somente à conscientização sobre o tema, mas incidam na criação e na efetivação de políticas públicas que promovam a igualdade racial e a cidadania.