Dando continuidade à série de reportagens especiais a respeito da política de ações afirmativas nas instituições federais de ensino superior brasileiras, iniciada neste mês pelas diretorias de Ações Afirmativas (Diaaf) e Imagem Institucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), esta matéria traz o relato sobre como e quando as referidas políticas públicas foram instituídas no âmbito da UFJF, além de traçar um paralelo histórico com as iniciativas do gênero no Brasil.
As ações afirmativas têm por objetivo corrigir desigualdades presentes na sociedade, acumuladas ao longo do tempo, buscando oferecer igualdade de oportunidades a todas e todos, bem como reverter representações negativas e combater preconceitos e discriminações.
Para o diretor de Ações Afirmativas e professor da Faculdade de Educação da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, as conquistas dos últimos anos, especialmente aquelas relacionadas às ações afirmativas, só vieram porque várias gerações de ativistas negros reivindicaram a sua implantação, visando superar os efeitos do racismo e da exclusão instalados estruturalmente no país.
“Entidades históricas do movimento negro, como a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, tiveram em suas pautas a inclusão do negro na sociedade brasileira. Com o movimento de redemocratização do país, a movimentação negra em torno de direitos ressurgiu com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, do Grupo de União e Consciência Negra (Grucon) e dos Agentes de Pastoral Negros (APN), no início dos anos 1980, quando verifica-se uma nova etapa nas lutas pela promoção e proteção da equidade de oportunidades no país”, conta.
Movimento Social Negro
As inúmeras iniciativas promovidas pelo Movimento Social Negro ao longo dos tempos fizeram com que, nos anos 2000, o Brasil se tornasse signatário da 3ª Conferência Mundial sobre o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e ocorrida em Durban, África do Sul. “A participação do país produziu ressonâncias no contexto nacional, fomentando a adoção de políticas afirmativas, como o Programa Nacional de Ações Afirmativas, em 2002, e o Programa Diversidade na Universidade, do mesmo ano, desembocando na Lei nº. 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, alterada pela Lei nº 11.645/08, com a inclusão de indígenas”, acrescenta Oliveira. Além dessas conquistas, também são destacados os decretos nº 5.296/04, sobre atendimento a pessoas com deficiência, e o nº 5.626/05, que regulamentou a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Foi nesse movimento que ocorreu o reconhecimento, pelo Estado, das desigualdades raciais presentes nas instituições federais de ensino brasileiras e a aprovação da Lei nº 12.711/2012, que institui a reserva de vagas para alunos oriundos de escolas públicas e que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas (PPIs) nas universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio. A Lei 12.711/2012 é conhecida como a “Lei de Cotas”.
A presidente do Conselho Municipal para Promoção da Igualdade Racial de Juiz de Fora (Compir) e doutoranda em Educação na UFJF, Jussara Alves, comenta que as cotas nos cursos de graduação e pós-graduação representam, para a história das universidades públicas, “um avanço contra o racismo estrutural e a garantia da reparação histórica frente às desigualdades educacionais de nossa sociedade”.
Jussara acrescenta que a população negra e de baixa renda, bem como as pessoas com deficiência, são as mais propensas a ficarem alijadas das oportunidades, “visto a sociedade ser preconceituosa e perpetuar as desigualdades. É preciso uma política forte e assertiva, como a de cotas, para que essas desigualdades sejam reparadas”, ratifica.
UFJF: pioneirismo na instauração de ações afirmativas no Estado
Anteriormente à Lei de Cotas, várias universidades no país já vinham implementando ações afirmativas, por meio de decisões de seus conselhos superiores. Este foi o caso da UFJF, que aprovou seu próprio sistema, em 2004. “Militantes do movimento negro daquelas entidades que surgiram no final da década de 1970 e início dos anos 1980 entraram nas universidades, primeiro como estudantes, depois como professores, e são esses ativistas que se tornaram os pesquisadores que construíram as políticas que foram sendo implementadas”, ressalta o diretor de Ações Afirmativas da UFJF.
“A aprovação das cotas na UFJF, em 2004, é fruto do contexto de lutas do movimento social negro brasileiro” – Julvan Oliveira.
Também no início dos anos 2000, foi articulada a criação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que se organizou como uma entidade nacional, fomentando em cada instituição a criação dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEAB’s). “A aprovação das cotas na UFJF, em 2004, é fruto desse contexto de lutas do movimento social negro brasileiro”, continua Oliveira.
A política de ação afirmativa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) teve início com a Resolução nº 16/2004, do Conselho Superior (Consu), sendo baseada em um sistema de cotas de vagas para ingresso nos cursos de graduação da instituição. O documento fixava a vigência de 10 anos para a ação afirmativa, que seria revisada após três anos de sua implantação.
A Resolução nº 05/2005 do Consu, por sua vez, fixou os percentuais a serem gradativamente aumentados e estabeleceu o critério de inclusão nos grupos de cotistas: (A) negros egressos de escolas públicas; (B) egressos de escolas públicas; e (C) não cotistas. Conforme a norma, haveria um aumento progressivo no percentual de vagas ofertadas aos cotistas.
Em 2006, para o vestibular, foram reservadas 30% das vagas; em 2007, 40%; e, a partir de 2008, 50% das vagas, sendo que cotistas “A” ocupariam a metade destas vagas. No caso do acesso pelo Programa de Ingresso Seletivo Misto (Pism), foram reservadas 50% das vagas para cotistas; a metade, da mesma forma, para autodeclarados negros.
Em 2012, a UFJF se adequou à Lei de Cotas nacional, afastando- se do modelo adotado em 2004. Atualmente, a instituição – assim como todas as outras universidades federais brasileiras – deve, graças à Lei nº 12.711/2012, destinar metade de suas vagas ao sistema de cotas ou ações afirmativas. Desta forma, durante a chamada regular do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), por exemplo, o candidato que optar por uma determinada modalidade estará concorrendo apenas com os estudantes que tenham feito a mesma opção.
“A implantação do sistema de cotas em toda a pós-graduação será mais um passo importante de inclusão, de uma política afirmativa que busca superar as desigualdades construídas historicamente no Brasil” – Julvan Oliveira
O sistema de ingresso engloba nove grupos diversos, sendo oito cotistas. Para se cadastrar a um dos grupos cotistas, é preciso que o candidato tenha cursado o Ensino Médio inteiro em escola pública, bem como respeitar as demais condições impostas a cada um deles, como renda familiar bruta mensal por pessoa de até 1,5 salário mínimo; e critérios de cor ou raça; tendo ainda um percentual das vagas reservadas às pessoas com deficiência, graças à Lei nº 13.409/2016.
O processo de implantação das cotas nos Programas de Pós-graduação da UFJF também já se iniciou. Segundo Julvan Oliveira, além de alguns Programas já terem aprovado a ação afirmativa, a expectativa é de que o Conselho Setorial de Pós-graduação e Pesquisa (CSPP) discuta uma minuta que implemente as cotas em todos os PPGs da Universidade. “É mais um passo importante de inclusão, de uma política afirmativa que busca superar as desigualdades construídas historicamente no Brasil”.
“É preciso promover a incorporação de conteúdos curriculares com os conhecimentos filosóficos e científicos, produzidos com as cosmovisões africanas e indígenas nas disciplinas de todos os cursos” – Julvan Oliveira
Para o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, para além do ingresso e da permanência de estudantes negros e indígenas na Universidade, é preciso promover a incorporação de conteúdos curriculares com os conhecimentos filosóficos e científicos, produzidos com as cosmovisões africanas e indígenas nas disciplinas de todos os cursos. “Sabemos que a exclusão dos conhecimentos dos povos originários existe por conta desse processo do racismo. Não há mais como desconsiderar os pesquisadores que produzem conhecimento a partir da filosofia africana, da história africana, da etnomatemática, da física, ou seja, das ciências afro-centradas”, pondera.
Combate a fraudes no sistema
Existem duas maneiras pelas quais a Universidade Federal de Juiz de Fora trata as denúncias de eventuais fraudes ao sistema de cotas destinadas a pretos, pardos e indígenas (PPIs). A primeira é a Comissão de Heteroidentificação, instalada em 2019, que durante a matrícula faz a análise do perfil do estudante para saber se ele se enquadra ou não no grupo pelo qual concorre, definindo ali se há ou não o direito a ser amparado pela ação afirmativa. “O candidato que optou pelas cotas PPI é avaliado presencial e individualmente pela banca de heteroidentificação. É assegurado um clima de acolhida, de afabilidade e absoluto respeito aos estudantes, além de garantir a privacidade e a boa comunicação”, explica Oliveira.
“O trabalho da Comissão de Heteroidentificação é essencial para que a política de ações afirmativas seja efetivada para quem lhe é de direito” – Jussara Alves
Os estudantes que tiverem suas matrículas indeferidas podem recorrer a uma Comissão Específica de Heteroidentificação, formada por cinco membros e marcada pela diversidade, seja pela identidade racial ou pela identidade de gênero de seus componentes. Sendo indeferida novamente a matrícula, existe a possibilidade de apresentação de recurso ao Conselho Superior da UFJF. “O trabalho da Comissão de Heteroidentificação é essencial para que a política seja efetivada para quem lhe é de direito. Sua importância é inquestionável, justamente por conta de ainda vivermos numa sociedade onde muitas pessoas agem de má fé”, ressalta a presidente do Conselho Municipal para Promoção da Igualdade Racial de Juiz de Fora (Compir), Jussara Alves
Há, ainda, as denúncias contra estudantes que ingressaram antes da criação da Comissão de Heteroidentificação. No início de 2018, a Reitoria aprovou a Portaria 307, pela qual foi instituída uma Comissão de Sindicância, para apurar possíveis casos de fraudes – em especial, no grupo reservado aos pretos, pardos e indígenas (PPIs). A UFJF, imediatamente, abriu processos de sindicância e formou comissões com pesquisadores para apurar e fazer o levantamento dos casos suspeitos. Os casos de estudantes que, nessa primeira análise, indicavam dúvida substancial, passaram para uma outra etapa de apuração mais aprofundada, com trabalhos conduzidos pela Pró-reitoria de Graduação (Prograd).
“A sociedade ainda se mostra extremamente preconceituosa, visto a quantidade de fraudes sendo apuradas em relação às cotas, que em muitas das vezes são utilizadas por pessoas que não seriam de direito” – Jussara Alves
As atividades contam com contribuições da Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), do Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI), de pesquisadores da temática e seus orientandos, assim como de professores e técnico-administrativos em Educação (TAEs). Paralelamente à apuração das possíveis tentativas de burlar o sistema, foram também desenvolvidas atividades formativas sobre a temática para docentes, TAEs e discentes de pós-graduação com vistas ao aprofundamento do conhecimento, na perspectiva, também, de ampliação do quadro de profissionais preparados para as ações de controle e supervisão da política.
De acordo com a presidente do Compir, Jussara Alves, apesar da instituição das cotas promover justiça social para grupos historicamente discriminados, as tentativas de fraudar o sistema são reflexos de distorções ainda existentes. “A sociedade ainda se mostra extremamente preconceituosa, visto a quantidade de fraudes sendo apuradas em relação às cotas, que em muitas das vezes são utilizadas por pessoas que não seriam de direito. Precisamos avançar muito em relação ao combate ao racismo e a todo tipo de preconceito”, pondera Jussara Alves.
Histórico das comissões de heteroidentificação
Oliveira acrescenta que a autodeclaração étnico-racial era a norma estabelecida pelas Leis nº 12.711/2012 e nº 12.990/2014. No entanto, se verificou um número significativo de pessoas que estavam ingressando de modo fraudulento nas vagas destinadas aos candidatos negros, ou seja, concorriam pelo sistema de cotas, apesar de não possuírem as características fenotípicas exigidas pela legislação.
Neste sentido, a partir de 2016, diversas instituições passaram a adotar a heteroidentificação como um procedimento complementar, na defesa de que a política de ações afirmativas pudesse ser aplicada, considerando seus aspectos teóricos, políticos, administrativos e jurídicos.
“A autodeclaração étnico-racial era a norma estabelecida pela legislação. No entanto, se verificou um número significativo de pessoas que estavam ingressando de modo fraudulento nas vagas destinadas aos candidatos negros” – Julvan Oliveira
“Esta foi uma posição retirada em Encontros de diversas Instituições Públicas de Ensino Superior, organizados pela ABPN e pelo GT 21 da Anped, o primeiro acontecido na UFPR, em 17 e 18 de maio de 2018, com a participação de representantes da UFJF e o segundo acontecido na UFMS, entre 29 e 31 de agosto de 2018. Desses encontros surgiram algumas orientações e procedimentos, dos quais a UFJF passou a adotar, que constam das ‘Carta de Curitiba’ e ‘Carta de Campo Grande’”, explica o diretor de Ações Afirmativas da UFJF.
Para avaliar as formas como as instituições públicas de ensino vêm implementando tais Comissões de Heteroidentificação, também foi realizado seminário virtual sobre o assunto este mês. “Com intuito de se aprimorar esse trabalho, aconteceu na Universidade Federal de Ouro Preto o II Seminário Nacional Políticas de Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras: desafios e avaliação de aspectos políticos, administrativos e jurídicos das cotas no ensino superior, entre os dias 13 a 19 de setembro de 2020, com a participação da UFJF”, relata Oliveira.
Ouvidoria Especializada
Com o objetivo de melhorar a infraestrutura e desenvolver políticas de identificação, apoio e prevenção aos casos de violência, sem fechar o acesso da comunidade não acadêmica aos campi, o Conselho Superior criou, em junho de 2016, por meio da Resolução nº 32/2016, a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas. O órgão, ligado à Diretoria de Ações Afirmativas, visa ao combate a quaisquer tipos de discriminação e violência e busca a utilização de mecanismos de gestão para o autoconhecimento institucional, com a consequente otimização dos serviços prestados pela Universidade.
A ouvidora especializada e professora da Faculdade de Serviço Social da UFJF, Cristina Simões Bezerra, explica que não há ligação entre a Ouvidoria e a Comissão de Heteroidentificação, o que garante autonomia a ambos os órgãos. “Assim, o objetivo é, justamente, que elas sejam instâncias separadas, para que, se houver algum problema nas bancas de heteroidentificação, a Ouvidoria possa ser o espaço em que as pessoas se sintam capazes de reclamar, denunciar, buscar os seus direitos”.
“Recebidas as manifestações, elas são encaminhadas para os setores – geralmente as unidades acadêmicas e administrativas – para serem apuradas” – Cristina Simões Bezerra
O setor foi pensado como um espaço de acolhimento das pessoas que passam por qualquer tipo de preconceito na Universidade e também um espaço de garantia de direitos. Recebidas as manifestações, elas são encaminhadas para os setores – geralmente as unidades acadêmicas e administrativas – para serem apuradas. “Ao mesmo tempo, fazemos todo um acompanhamento do caso, escutamos o que está sendo narrado, como objetivo de que o ocorrido não se repita e que seja resolvido dentro da Universidade, se possível”, acrescenta Cristina.
A Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas também tem uma função socioeducativa, no sentido de promover processos de formação dentro da UFJF, para que casos de racismo, lgbtfobia, negação de direitos, capacitismo, sejam identificados e resolvidos o quanto antes.
Saiba mais:
“Gênero e raça nos cursos de graduação e pós-graduação”
“As questões legais e a política de ações afirmativas”
“A democratização do ensino superior promovida pela Lei de Cotas”
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