Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucionais as restrições impostas, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde, para a doação de sangue por lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT+).  O parecer da Corte foi definido em maio, mas o comunicado formal aos hemocentros de todo o país para o cumprimento da medida só foi realizado pelo Governo Federal em junho. 

Marco Duarte: “Esta decisão é histórica. A partir do posicionamento do STF, o governo brasileiro é obrigado a tratar com igualdade a doação de sangue” (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

“A publicação de ofício pelo Ministério da Saúde acontece um mês depois da decisão do STF, após cinco entidades ligadas à comunidade LGBT, como a ABGLT [Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos], a Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais], a Abrafh [Associação Brasileira de Famílias Homtransafetivas], o GADvS [Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero] e o Mães pela Diversidade, mais o Partido Cidadania, acionarem o STF para exigir o imediato fim das restrições”, afirma o professor da Faculdade de Serviço Social e coordenador do Centro de Referência e Promoção da Cidadania LGBTQI+ da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marco José Duarte.

Duarte ressalta a relevância da decisão do STF, mas adverte acerca da inoperância dos poderes Executivo e Legislativo quando o assunto são os direitos da comunidade LGBT+.

“Esta decisão é histórica. A partir do posicionamento do STF, o governo brasileiro é obrigado a tratar com igualdade a doação de sangue por homens gays e bissexuais da mesma forma que por homens heterossexuais, bem como as travestis e mulheres e homens trans, que são tratados pelo gênero designado ao nascimento no momento da doação. Contudo, é bom lembrar, que é mais um direito da comunidade LGBTQI+ judicializado, na medida em que os poderes Executivo e Legislativo são conservadores e resistentes aos direitos dessa população.” 

Danielle Teles da Cruz (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

Danielle Teles: “É um marco dentro dos processos de luta por garantia dos direitos da população LGBTTI” (Foto: Maria Otávia Rezende/UFJF)

A avaliação é compartilhada pela professora do Departamento de Saúde Coletiva e coordenadora da Liga Acadêmica de Saúde Integral da População LGBTTI+ da UFJF, Danielle Teles.

“Essa decisão é um marco dentro dos processos de luta por garantia dos direitos da população LGBTTI e é de extrema importância, sobretudo, neste momento no qual vivenciamos o acirramento de forças e disputas imagéticas e de narrativas que apontam para retrocessos no respeito à diversidade e ao Estado Democrático de direito. Trata-se de uma decisão que contribui para o combate às normas e aos comportamentos discriminatórios no âmbito individual, mas também para a desconstrução da lgtfobia institucional e estrutural.”

Contexto de pandemia 

Ambos os professores salientam que a decisão do Judiciário ocorre em um contexto de excepcionalidade e alta demanda por parte dos hemocentros de todo o país. “Todos os direitos, mesmo que judicializados, são conquistas através de muitas lutas. Há mais de 20 anos que o movimento LGBTQI+ denuncia o preconceito e a discriminação quanto a essa questão da doação de sangue. Por outro lado, essa decisão do STF é realizada em um contexto de pandemia do coronavírus, quando os hemocentros de todo país estão fazendo campanhas para a doação de sangue neste momento de crise”, ressalta Marco Duarte.

“Há mais de 20 anos que o movimento LGBTQI+ denuncia o preconceito e a discriminação quanto a essa questão da doação de sangue” – Marco Duarte

Danielle Teles destaca que o parecer do Supremo Tribunal de Federal promove avanços para toda a sociedade. “Haverá maior abastecimento de sangue nos hemocentros do país que vão beneficiar a saúde de quem necessitar. Além de possibilitar a criação de diálogos que desconstroem a leitura patologizante da homossexualidade, da bissexualidade e da transexualidade, a decisão contribui para romper com atrasos e inadequações das respostas do poder público no enfrentamento do HIV/Aids e outras doenças. Outras questões importantes promovidas pela mudança são: colocar as diversas formas de violência – simbólica, mental e física – a que a população LGBTTI é alvo como pautas de discussão e, por fim, fortalecer a construção de uma sociedade que seja democrática de fato e que inclua e respeite a diversidade”. 

Capacitação dos profissionais 

Alice Prado: “Apenas o tratamento humanizado poderá de fato ampliar o quantitativo de pessoas trans doadoras de sangue” (Foto: Gustavo Tempone/UFJF)

Para a coordenadora do Coletivo Força Trans, Alice Prado, é fundamental que, a partir da decisão do STF, os hemocentros também invistam na capacitação de seus profissionais. “Eu achei que as coisas mudariam absurdamente com essa decisão mas na prática não tem funcionado assim até onde eu saiba. Sim, o despreparo é real. E isso é em toda a área da saúde, que é o que faz tantas pessoas trans seguirem rumos independentes em relação às suas transições. Ninguém gosta de ser destratado. Aí você chega num lugar que supostamente deveria te acolher e tem o resultado oposto disso.” 

Alice Prado enfatiza que apenas o tratamento humanizado poderá de fato ampliar o quantitativo de pessoas trans doadoras de sangue. “Falta filtro para o que pode ser aproveitado de bom, falta a percepção de que é preciso manter o profissionalismo acima dos valores pessoais. Isso vem com um trabalho de base na capacitação das pessoas em receber as outras. Pessoas cis [que se identificam com o gênero designado ao nascimento] não sabem como receber pessoas trans [que não se identificam com o gênero designado ao nascimento]. Mas eu acredito que não seja impossível. Tudo é possível se houver abertura para que aconteça. Pensando em probabilidade, qual a chance de uma trans se negar a ir doar sangue, se houver uma garantia de que o atendimento será humanizado? Saibam nos acolher e nós iremos até vocês.”

Parada Solidária JF

A decisão do STF estimulou uma fisioterapeuta e estudante do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Adulto do Hospital Universitário da UFJF a organizar uma campanha, visando à ampliação de doadores de sangue da comunidade LGBT+.  A iniciativa chama-se “Parada Solidária JF”.  

Clarissa Delgado: “A campanha foi pensada como uma forma de celebrar a conquista da doação de sangue pela Comunidade LGBTQIA+” (Foto: arquivo pessoal)

“A campanha foi pensada como uma forma de celebrar a conquista da doação de sangue pela Comunidade LGBTQIA+, além de ser uma estratégia para reforçar os estoques do banco de sangue, uma vez que o Hemominas tem divulgado já há algum tempo que seus estoques estão em situação de alerta”, explica a idealizadora Clarissa Delgado.

De acordo com a residente, quem quiser colaborar, seja por ser membro da Comunidade LGBT+ ou apoiador da causa, deve agendar o horário da doação através do site do Hemominas ou do aplicativo ‘MG App – Cidadão’. “O Hemominas tem usado a estratégia de agendamento para evitar aglomerações no serviço. Depois disso, é só comparecer no horário agendado e, ao chegar no balcão para cadastro, informar que irá fazer sua doação de sangue para a campanha Parada Solidária. Desta forma, a doação vai constar no sistema e será possível, ao fim da campanha, contabilizarmos o número de doações levantadas pela nossa causa.”

Antes do agendamento, destaca Clarissa Delgado, é preciso conferir as exigências para tornar-se um doador ou doadora.  “É importante, antes de agendar a doação, conferir se você se encaixa nos critérios para doar. Há algumas medicações e condições de saúde, por exemplo, que contraindicam a doação de sangue. Para conferir os critérios, você pode consultar o site do Hemominas.” 

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